“Não gosto de política…gosto é do poder. Política pra mim é um meio para chegar ao poder”, diz Carlos Lacerda, em “Depoimento”, publicado em 1978, um ano após a sua morte. De fato, a paciência não era sua maior virtude. Em 1955, eleito JK, Lacerda defende a anulação das eleições. Juscelino não havia feito maioria, seu meio milhão de votos sobre Juarez Távora eram votos dos comunistas. Às favas com o jurisdicismo da ala legalista da UDN. O caso era apear Juscelino, e logo Jango, do poder. Lacerda tinha pressa.

Em abril deste ano, Lacerda faria cem anos. Nos manuais de história, ele é o corvo da terceira república. O apelido foi dado pelo pessoal de A Última Hora, de Samuel Wainer. Pegou. Lacerda mesmo incorporou o pássaro negro a sua propaganda. Proscrito da vida publica ainda relativamente jovem, assim prossegue. Nenhuma comissão da verdade pede o reexame de sua morte. Seu arquiinimigo, Getúlio Vargas, chefe de um regime de exceção de década e meia, com sua guarda pessoal, sua polícia política, que fechou o Congresso, extinguiu os partidos, prendeu, torturou, prossegue como herói da historiografia oficial.

Em parte, isto se dá pela sina incontornável da história: Lacerda foi um político derrotado. Nos dezenove anos da “república populista”, andou sempre no avesso do poder. Termina derrotado pelo regime militar, que ajudara a nascer, e que o baniu da vida política. Lacerda chegava à maturidade de seus 50 anos, em 1964. Aspirava à presidência, queria ser o candidato da “revolução”, nas eleições de 1965. Errou feio. De certo modo, terminou como Brizola, tolhido da chance de deixar um legado, como o fez Juscelino, e, por óbvio, Getúlio. Brizola, longevo, ainda sobreviveu. Teve sua chance, na redemocratização. Lacerda se foi em 1977, inglório, morto de uma complicação cardíaca na clínica São Vicente, na Gávea.

Vem daí o mérito do livro recém lançado, de autoria do historiador Rodrigo Lacerda, “A republica das abelhas”. Rodrigo é um escritor premiado, doutor em história pela Universidade de São Paulo. É também neto de Carlos Lacerda. De cara, isto o livra do debate sobre o “distanciamento”, do historiador. “Tentei tirar partido disso”, diz Rodrigo. E conseguiu. Rodrigo toma o avô como narrador de sua própria história e produz um livro cativante. Algo que ele mesmo chama, “por falta de definição melhor”, um “romance histórico”. Não gosto da expressão. Um livro de história sempre será, em maior ou menor medida, uma obra de ficção. A ficção sobre o tempo que se foi e do qual recolhemos os pedaços. Rodrigo recolhe os cacos da história dos Lacerda, desde o avô de Carlos, Sebastião, abolicionista e republicano de primeira hora, e estabelece seu ponto de vista.

Rodrigo conta a história do atentado da Rua Tonelero. Daria um bom hobbie colecionar versões sobre o acontecido, naquela madrugada, em Copacabana. Há livros de história que asseguram tudo não ter passado de uma jogada para incriminar Getúlio, a confissão do negro Gregório, o ferimento de Lacerda, tudo mentirinha. Quem se importa? O tempo vai apagando seus rastros. O fato é que Rodrigo escreve um livro cuidadoso, como devem ser os livros de história. Seu maior achado foi transformar Lacerda, desde seu jazigo, no cemitério São João Batista, em um homem ponderado.

Na classe média carioca, com alguma informação e bastante idade, Lacerda é lembrado como governador enérgico e competente, o primeiro do então recém criado Estado da Guanabara, na primeira metade dos anos 60. Seu governo universalizou o acesso ao ensino primário, chegando a publicar um decreto prevendo processo para os pais que não matriculassem seus filhos na escola. Modernizou a gestão, tornou obrigatório o concurso público, investiu em obras estratégicas, estação guandu, os túneis Rebouças, Santa Bárbara, mandou fazer o parque do Flamengo, projeto de Lota Macedo Soares, vivida por Glória Pires no filme Flores raras. Lacerda afirmou que sempre quis ser escritor, mas deixou sua melhor memória como gestor público.

Lacerda começou como aspirante a dramaturgo. Sua primeira peça, O Rio, estreou em julho de 1937, no Teatro Boa Vista, em São Paulo. Criação de seus vinte e poucos anos, foi recebida como uma obra de vanguarda, elogiada em O Globo como “o mais absoluto desrespeito a todas as regras secularmente estabelecidas no teatro”. Graciliano Ramos não gostou: “não há drama destes retalhos de vidas incongruentes. Não sei se é teatro”. Lacerda ainda escreveria A Bailarina Solta no Mundo e Amapá. Sua paixão intermediária foi a tradução. São mais de 30 obras. Julio Cesar, de Shakespeare; A vida de Ivan Ilitch, de Tólstoi; Minha mocidade, de Churchill. Ainda na noite do 31 de março, 1964, depois de passar o dia em guerra, no Palácio da Guanabara, trabalhava na tradução da peça de Abe Burrows, Como Vencer na Vida sem Fazer Esforço”. Em 1973, foi conferencista principal, com Antônio Houaiss e Paulo Rónai, do Primeiro Encontro Nacional de Tradutores. Nos anos 70, fora da política, dedicado à vida empresarial, na editora Nova Fronteira, escreveu seu livro de memórias, A Casa de meu Avô, que lhe valeu o elogio de Drummond, de que bastava o livro “para garantir-lhe esse lugar que importa mais do que os lugares convencionalmente tidos como importantes”.

Sua paixão definitiva foi, desde sempre, o jornalismo de combate. O articulismo enragés, tradição hoje desaparecida, quando nenhum governante perde o sono em razão de um artigo de jornal. Escreveu mesmo um livro apresentando sua visão sobre o jornalismo, A Missão da Imprensa, em que faz uma candente defesa da independência do jornalismo frente aos governos e grupos de poder, a profissionalização do jornalista, o rigor na verificação das fontes. É evidente que, definitivamente, este não foi o caso da Tribuna da Imprensa. Nem foi o caso da publicação da Carta Brandi. O Lacerda reflexivo, saído da mente de Rodrigo, quem sabe teria checado se aquela assinatura era mesmo verdadeira, antes de publicar a carta. Gosto de ver Lacerda como alguém que levou a contradição entre a palavra e a vida ao estado da arte.

Nos anos 30, foi comunista. Ao menos tentou. Nunca foi formalmente aceito no Partido, mas se tornou orador estudantil da Aliança Libertadora Nacional. Em 1935, fez a leitura do manifesto de Prestes, que levaria ao fechando da ALN. Rodrigo sugere um jovem Lacerda incomodado com a verborragia lunática de Prestes, que entre outras coisas convocava os índios brasileiros a aderir à causa proletária. É possível. De todo modo, seu divórcio com o comunismo vem apenas no final dos anos 30. Numa história confusa, escreveu um artigo, A Exposição Anticomunista, segundo Lacerda com o conhecimento do Partido, em que fazia crer que o PCB não tinha mais influência relevante na política brasileira. Foi expurgado. Seus amigos comunistas o largaram, sob o efeito do primitivo artigo 13 do estatuto do Partidão, que proibia seus integrantes de falar com os inimigos do partido. Foi sua experiência pessoal com a idéia totalitária.

Da crítica ao comunismo emerge, nos anos quarenta, o Lacerda conservador. Por volta de 1948, converte-se ao catolicismo, sob influência de Fulton Sheen, líder católico norte-americano, carismático e tele-evangelista, (atualmente em processo de beatificação), bem como por intelectuais católicos, como Alceu Amoroso Lima. Lacerda lapida sua concepção tory do universo político, segundo a qual “o liberalismo só pode funcionar em uma sociedade dotada de base moral”. Base moral que, por suposto, subordina qualquer ideia de pluralismo político e social. Não é um acaso que a Tribuna da Imprensa surge, no final de 1949, com o objetivo explicito de “cristianizar a sociedade”. No ambiente da guerra fria, o discurso conservador encontrava uma tradução fácil: o anticomunismo, mistura de “medo real com uma espécie de indústria do pavor”, na definição de Elio Gaspari. O comunismo, hoje, é um espantalho, e o moralismo católico saiu de moda. À época, dava audiência e um bom bocado de votos. O mundo andava em transição, nos anos 50 e 60. A juventude podia ler Kerouac e experimentar a liberdade sexual que a pílula oferecia, mas expressões como o “perigo vermelho” e a “destruição do nosso modo de vida” ainda mexiam com a cabeça das senhoras de Copacabana. Lacerda soube ser o seu porta-voz.

Suas posições, naqueles anos, são bem conhecidas. Em 1947, age como um liberal, reagindo à decisão do TSE de cancelar o registro do PCB. Em 1954, é o pivô da crise de agosto, que levou ao suicídio de Vargas. Logo a seguir defende o adiamento das eleições, defendendo a necessidade de um “estado de exceção”, um período de reforma constitucional destinado a corrigir os males de nossa democracia. Em 1955, decide zarpar no Cruzador Tamandaré, com o Presidente interino Carlos Luz, acossado pelos canhões do Forte de Copacabana, em oposição à posse de Juscelino. Em 1961, opõe-se à posse constitucional de Jango, e em 1964 lidera a mobilização golpista na cidade do Rio de Janeiro, com sua metralhadora INA a tiracolo, desde o Palácio Guanabara.

Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder freqüentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero, e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que Lacerda fez do “golpismo democrático” a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o “lacerdismo”, um traço, uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em por em cheque as instituições da república sempre que interessar possa. Uma arte sem ideologia, freqüentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.

Quem sabe o lacerdismo tenha um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo, alguém com a “trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos”. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda surge como a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido o seu personagem: o moralista da república. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, democrata, o “sonhador do Brasil”; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.

Fiel seguidor do “estilo dos Lacerda”, herdado de seu pai, Maurício, deputado na republica velha, pioneiro na defesa da legislação trabalhista, Carlos foi muito além. Luiz Nassif o definiu como “um animal sexual, no sentido amplo do termo”. Seu poder de atração residia essencialmente na palavra, no talento de orador. O maior de todos, na opinião insuspeita de Almino Affonso. Lacerda é menos estrategista do que o jogador impetuoso. Na dúvida, toma a iniciativa, arrisca. É o que fez entrar sozinho, em uma madrugada de dezembro de 1961, no pátio do presídio Lemos de Brito, para controlar a rebelião de algumas centenas de detentos, episódio em que teria sido ajudado pelo preso ilustre, Gregório Fortunato. Exagero ou não, está lá, na carta que Drummond, de 1976: “ninguém é indiferente ao charmeur irresistível que você é; e mesmo os que dizem detestá-lo, no fundo gostam de você. Gostam pelo avesso, mas gostam”.

A vocação de charmeur, quem sabe, fez com que conseguisse, a partir de 1966, uma improvável reaproximação com Juscelino e Jango, para a formação da Frente Ampla, em oposição ao regime militar. Também aí foi derrotado. São muitas as razões. Uma delas era a memória, ainda fresca. Mesmo que pensasse rápido, que não guardasse mágoa, era óbvia, para Lacerda, a dificuldade de ser reconhecido como um democrata, logicamente pela oposição ao regime. Em 1968, logo após a decretação do AI5, Lacerda tem seus direitos políticos cassados por 10 anos.

Rigorosamente, é só com a Constituição de 1988, e talvez após o impeachment do Presidente Collor, que a República adquire alguma estabilidade. Durante o governo do Presidente Fernando Henrique, é criado o Ministério da Defesa, que passa a ser ocupado por um civil, as forças armadas retiram-se por completo da cena política.

Logo que eleito, Fernando Henrique sugeriu que chegara o tempo de superar a era Vargas. A era do estado empresário, do sindicalismo oficial, empreguismo público, cooptação política via distribuição dos cargos e favores públicos. A lista dos arcaísmos brasileiros é extensa e velha conhecida. Fernando Henrique poderia ter acrescentado que também chegara o tempo de superar a “era Lacerda”. A era do tudo ou nada, do diálogo impossível, do logro permanente às regras do jogo. Havia chegado o tempo da convergência. Em nome deste aprendizado, havia sido feita a anistia, a transição pacífica ao poder civil, a nova Constituição, e finalmente, a normalização econômica do País, com o Plano Real. Nesta quinta república, é certo que o Lacerda moderno, defensor do fim do imposto sindical, do direito das famílias à escolha educacional, e, ainda mais, o Lacerda intelectual, teria algum papel a cumprir. O “corvo”, papel nenhum.

O fato é que Rodrigo, agora, nos deve um segundo volume, contando sobre seu avô nos anos de 1954 a 1977. Quem sabe um Lacerda, já veterano, entre suas abelhas, no São João Batista, nos conte sobre suas aventuras da maturidade. Não apenas sobre seu governo na Guanabara, sua vitória de Pirro, em 1964, mas arrisque um pouco mais. Diga se acreditava, realmente, no moralismo udenista, e se de fato errou, como teria reconhecido, em seu encontro de Lisboa, na perseguição que promoveu a Juscelino. Fale de suas amizades com os intelectuais, de John dos Passos a Erico Veríssimo, e nos confesse se, nos últimos anos, não fora se tornando mais um liberal, e menos um conservador. E, de passagem, nos conte sobre o que realmente aconteceu entre ele e Shirley Mclaine, naquele outono californiano de 1968.

(artigo publicado originalmente na revista Época, em 25 de janeiro, 2014)

 

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Atualmente é titular da Cátedra Insper Palavra Aberta. Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Columbia University, em NY. É Professor em tempo integral no INSPER, em São Paulo, e Curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Contato: fschuler@uol.com.br

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