Sempre fui fascinado pela ideia do “livre mercado de ideias”. Ela nasceu muito antes, mas foi consagrada por Oliver Holmes. Além de juiz da Suprema Corte Americana, Holmes era um pensador cético. O melhor era colocar as ideias para competir, em um ambiente aberto, sabendo que lidamos com um mundo de informação imperfeita.

É dele a definição de que só deveriam ser interditados discursos que representassem perigo “claro e real”. Com o tempo estas palavras foram sendo melhor compreendidas. O perigo deveria ser “imediato”, e também era preciso separar um risco real de um punhado de bravatas e conversa fiada.

Pra que tudo isso? Pra que tanta delicadeza? Ao invés de proteger, não seria melhor “higienizar” o mundo de tanta porcaria informacional que circula por aí?

Vem daí a longa e difícil tradição moderna da liberdade de expressão. Difícil porque se baseia em uma ideia contra-intuitiva: o progresso do conhecimento não depende do erro ou acerto desta ou daquela ideia, mas da preservação de um conjunto de princípios.

Uma das melhores representações que vi disso foi em um filme de Milos Formam, O Povo contra Larry Flynt. Acusado de pornografia, Flynt era um tipo difícil de defender. A um dado momento ele vira o jogo. Reconhece que é o pior dos americanos, e que se a Constituição protegesse “um canalha como eu, então protegerá todos vocês”.

Há alguns pressupostos nesta tradição. O primeiro deles é que somos falíveis. Julgamos o mundo de dentro do próprio mundo. Não somos isentos. Cada um pode parar e pensar por um instante pra saber se isto é verdade.

Outro diz que em algum momento os deuses estilhaçaram a verdade, e agora ela anda espalhada por aí, de modo que mesmo teses muito ruins podem conter uma informação relevante, que ajude a nos aproximar ainda mais um pouco do caminho da verdade

Estes argumentos são há muito conhecidos. John Stuart Mill foi seu mestre. O acerto se alimenta do erro, dizia ele, e suprimi-lo será sempre uma perda: sendo certa a opinião, perdemos a chance de trocar o erro pela verdade; sendo errada, “perdemos a percepção mais vívida da verdade, produzida pela sua colisão com o erro”.

Talvez tudo isto seja uma ilusão. A grande tradição moderna do livre pensamento pode ter sido um equívoco e precisa agora ser “ajustada”. Tenho escutado coisas do tipo, e a razão seria a internet. Ela teria dado espaço demais ao fake e ao ódio, e pessoas do lado do bem e da verdade simplesmente não podem ficar de braços cruzados.

Parece um pouco estranho, mas é o que sugerem, em geral sem muita explicação sobre o que fazer, livros como “The Misinformation Age”, de Cailin O’Connor e James Weatherall. A solução passaria não apenas por penalizar a distribuição intencional de fake News, como produzir uma ainda mais necessária “reengenharia nas instituições básicas da democracia”.

Não me atrevo a pensar o que exatamente caberia nesta “reengenharia” da democracia. Pensei nos banimentos da internet, nos cancelamentos, na volta da censura prévia, e até na ressureição recente de nossa lei de segurança nacional. Mas achei tudo muito pequeno. Imagino que uma reengenharia da democracia seja algo mais elegante.

O fato inequívoco é que a liberdade de expressão se tornou um tema inconveniente. Há alguns anos atrás promovíamos debates sobre o assunto e o consenso era quase tedioso. “É preciso estar sempre atento”, costumava-se dizer, para que ninguém roube este “bem precioso que conquistamos a tão duras penas”.

Hoje em dia escreve-se sem cerimônia que é preciso banir a “má informação”. As palavras variam, mas o sentido é sempre o mesmo: nós, que sabemos a verdade “para além da dúvida razoável”, precisamos de meios para calar estes imbecis.

Como se fará isto? Ninguém parece saber direito. Uma hipótese seria entregar a tarefa às redes sociais, desde que não apareçam novas redes controlados por gente do lado errado. Outra hipótese seria o “controle social”, via algum comitê ou algo ao estilo do inquérito das fake news, mas de caráter permanente, fazendo a curadoria do País.

Há muitas possibilidades. De minha parte, prefiro manter algum ceticismo. Intuo que nossas democracias tenham sabido, a duras penas, criar as instituições que asseguram a liberdade de pensamento. Ainda que a cultura que lhe dá suporte pareça viver, permanentemente, a sua infância.

(publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo).

Fernando L. Schuler é cientista político e professor do Insper

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Atualmente é titular da Cátedra Insper Palavra Aberta. Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Columbia University, em NY. É Professor em tempo integral no INSPER, em São Paulo, e Curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Contato: fschuler@uol.com.br

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