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Fernando Schuler: hora de superar o estado paternalista

Lembro da entrevisa de um jovem professor de história, à época do finado debate sobre a reforma da previdência. Ele parecia um cara articulado, 28 anos, “de esquerda”. Dizia que seu sonho era se aposentar aos 53 e abrir um clube de poesia, mas que tudo se perderia com a reforma. Se ela sair, teria que repensar as coisas. Quando li aquilo fiquei pensando: “O que há com esse cara? Podia pensar em ser empreendedor, não é mesmo? Abrir uma editora, um ‘TED poesia’, uma ‘casa do saber’, sei lá. Vai lá no Sebrae, pesquisa, pede alguns conselhos. O sujeito é jovem, sem uma ruga no rosto, joelhos em dia. Compra um livro de autoajuda”. Daqui a 25 anos não sei nem se ainda vão existir livros de papel ou computadores pessoais. E o sujeito preocupado em se aposentar pelo INSS? O Brasil velho é assim. Feito de 76% de jovens com até 24 anos e preocupados em se aposentar ainda cinquentões. Isso num país que gasta 12% do PIB com Previdência, quase três vezes a média do que gastam países com mesmo perfil demográfico. Não acho que as pessoas estejam preocupadas com números ou com a “sustentabilidade fiscal”. Estamos simplesmente imersos em uma cultura política que desconfia do “mercado”, foge do risco e das escolhas difíceis. País de cultura paternalista, da qual a “esquerda” é sem dúvida a vanguarda, mas está longe de andar sozinha. O Brasil velho gosta de coisas esquisitas como o imposto sindical. Criado na Constituição de 1937, a “polaca”, o tributo sustenta hoje uma enorme máquina feita de 10.817 sindicatos de trabalhadores, 5.251 sindicatos patronais, 549 federações, 43 confederações e 7 centrais sindicais. Lembranças nebulosas nos dão conta de que o sindicalismo liderado por Lula, nos anos 70, teria defendido a livre associação sindical, o princípio elementar de que as pessoas, querendo apoiar o seu sindicato, decidam pagar por isso. O tempo tratou de apagar tudo isto. A esquerda que um dia ensaiou alguns passos de independência caiu de boca no colo quente do Estado. O Brasil velho gosta de voto obrigatório. Dia desses fui a um debate com uma professora da Universidade de São Paulo. O debate andava meio morno e resolvi dar uma provocada. Disse que precisávamos acabar com a obrigatoriedade do voto. A senhora retrucou que não. Que isso iria apenas favorecer os “mais ricos”. Na sua visão, brasileiro pobre precisa de um empurrão do governo para votar. Se não acaba ficando em casa, no domingo, assistindo ao Faustão. Olhei pra ela e me lembrei de Kant. O velho filósofo dizia que a gente só aprende a ser livre exercitando a própria liberdade. É como andar de bicicleta. As pessoas, independentemente da renda, vão aprendendo a exercitar seus direitos. Leva algum tempo, mas aprendem. Olhei pra ela e fiquei quieto. Mudei de assunto e continuei o debate. O mesmo vale para o financiamento eleitoral. Sugeri, em um seminário, que os próprios indivíduos, eleitores, apoiadores, deveriam financiar, com recursos próprios, os partidos políticos. Cada um vai lá e apoia o partido de sua preferência. Meu debatedor, bom cientista político, pareceu irritado. O Brasil não tem tradição de apoio individual a coisa nenhuma, disse ele. Ninguém põe dinheiro, ninguém acredita. Não tem jeito, o Estado tem que bancar. Ato seguinte sugeriu um aumento do fundo partidário para coisa de R$ 2,5 bilhões. Lembrei a ele que o tempo “gratuito” de TV, para os partidos, já custa R$ 500 milhões e que o fundo partidário era de pouco mais de R$ 300 milhões antes das últimas eleições. Ele olhou pra mim com cara de tio sabido e disse: “Democracia custa caro, Fernando”. O debate seguiu, e hoje estamos perto de aprovar no Congresso um fundo partidário “turbinado” de algo mais do que R$ 2 bilhões. O ponto é que vivemos em um tempo surpreendente, neste ano confuso de 2017. Há a reforma da Previdência, há a chance real de acabar com o imposto sindical e há mesmo a chance de fazer uma minirreforma política, que devolva ao voto o sentido de um direito. Há um Brasil que tenta se livrar de velhos fantasmas do Estado Novo, da velha conversa fiada de que nossa gente é incapaz de andar com as próprias pernas. Há um país que, talvez embalado por essa crise toda, tenta andar um bocadinho à frente. Oxalá. (publicado originalmente na Revista Voto, em junho de 2017) Fernando Schuler é é cientista político e professor do Insper

O Brasil precisa aprender a fazer escolhas difíceis

O ex-Presidente Fernando Henrique afirmou, tempos atrás, que o Brasil precisa de uma nova onda de privatizações. “O que puder privatizar, privatiza”, disse FH, “ou você terá outro assalto ao Estado por parte dos setores políticos e corporativos”. O diagnóstico deixou muita gente surpresa. Na algazarra das redes sociais, Fernando Henrique costuma ser tratado como um teimoso social democrata, avesso a reformas de mercado e à retórica liberalizante. Injustiça. Em seu governo, o ex-Presidente estabilizou a economia e comandou um amplo programa de privatizações. Mas isto são aguas passadas. Seu diagnóstico é para hoje. Seu foco é apontar um dos tantos caminhos que o País terá de trilhar se quiser sair desta crise, lá adiante, melhor do que entrou. O raciocínio de FH é simples: quanto mais áreas da economia funcionarem sob a logica do mercado político, mais incentivo existirá para sua “captura” – por vias legais ou ilegais. Na prática: se há boa chance de obter um financiamento a juros subsidiados no BNDES por que as empresas buscariam competitividade no mercado de crédito privado? O mesmo vale para temas de regulação e política fiscal. Os economistas Marcelo Curado e Thiago Curado conduziram um estudo mostrando que as isenções fiscais (envolvendo incentivos para a indústria automobilística, Zona Franca de Manaus e uma enorme gama de benefícios setoriais) saltaram de R$ 24 bilhões para R$ 218 bilhões entre 2004 e 2013. Ao invés de optar por um modelo de impostos baixos e igualdade diante da lei, escolhemos o caminho inverso: carga tributária alta e alocação desigual, segundo a capacidade de pressão de cada setor econômico. Curiosa lógica tropical: oneração fiscal para todos e desoneração para muitos, de acordo com critérios e regras frequentemente difíceis de compreender. A mesma lógica invade o sistema político. Exemplo perfeito é o curioso sistema de fatiamento do orçamento federal com base nas chamadas “emendas parlamentares”. Cada parlamentar pode apresentar até 25 “emendas individuais,” no valor total de R$ 15,3 milhões (ano base 2017). Os recursos vão para as regiões e prefeituras da base eleitoral do parlamentar. Servem como moeda eleitoral e criam uma enorme vantagem competitiva para os candidatos detentores de mandatos. Geram desigualdade eleitoral e dificultam a renovação política. O Governo, por sua vez, dita o ritmo da liberação das emendas conforme sua conveniência política. Patrimonialismo em dose dupla: do deputado em relação a sua base política e do governo em relação ao parlamento. O custo, como de hábito, vai para o contribuinte. O País apostou, desde o processo de redemocratização, em uma combinação explosiva: um Estado grande e interventor, com ampla capacidade de alocação discricionária de recursos, e um sistema de financiamento empresarial de campanhas. Durante décadas, incentivamos nossos candidatos, de vereador a presidente, a sentar em uma mesa e pedir dinheiro aos mesmos empresários que logo ali à frente concorreriam para administrar um sistema de abastecimento de agua, no município, ou fariam lobby, no Congresso, para obter um regime fiscal especial. Um modelo fadado a produzir os resultados que ora estamos colhendo. O problema foi, em parte, corrigido em 2015, quando o STF proibiu o financiamento empresarial de campanhas. Tratou-se da face mais simples do problema, e em grande medida ilusória. Empresários podem fazer contribuições na “pessoa física”, para não falar da praga do caixa dois. A questão central é enfrentar o lado mais difícil do problema: diminuir a vulnerabilidade do Estado brasileiro à pressão dos interesses especiais. À lógica das corporações, do lobby empresarial e do próprio sistema político. Para que isto aconteça, não há outra saída: o Estado precisa diminuir de tamanho. Fernando Henrique tem razão, neste sentido. É preciso transferir os recursos do FGTS para gestão privada e concorrencial; privatizar as empresas que produzam bens e serviços de mercado; migrar o sistema previdenciário para modelos de capitalização; contratualizar a prestação de serviços públicos não exclusivos de Estado com o setor privado (como já se faz com as organizações sociais da saúde); fechar velhas autarquias e fundações estatais criadas no período anterior à Constituição e que hoje perderam relevância social e econômica. Há uma extensa agenda aí. Uma agenda de desestatização da sociedade e despatrimonialização do sistema político. Sua execução exige clareza e liderança política. Exige mais: um novo “consenso majoritário” da sociedade voltado à modernização do Estado. Algo da mesma dimensão que soubemos produzir, nos anos 80, em torno da redemocratização do País. Não se trata de tarefa simples. Fazer escolhas difíceis nunca foi uma especialidade brasileira. Ainda sofremos para consolidar a reforma trabalhista e para fixar uma idade mínima para a previdência que países como Chile e Argentina há muito estabeleceram. Nosso maior risco, no fundo, é a inércia. Ver o tempo passar, jogar fora o esforço feito com a aprovação da PEC do gasto público, assistir o custo previdenciário corroer lentamente as contas públicas. Tropeçar na armadilha da renda média e das velhas ilusões. Envelhecer, quase sem notar, antes mesmo de nos tornarmos jovens. (publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 25 de junho de 2017) Fernando Schuler é cientista político e professor do Insper