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AS DORES DO PARTO DE UM NOVO COMEÇO

(publicado originalmente no em PODER 360, dia 28/01/2018) Caso ganhe Fernando Haddad, de algum modo estaremos de volta ao início de 2016, sem saber direito se teremos um governo com a cara da primeira gestão Lula, com Palocci no comando da economia, ou o desenvolvimentismo da era Dilma, que nos levou à brutal crise econômica de 2015/2016. Caso ganhe Bolsonaro, teremos uma experiência radicalmente nova, e como tal plena de incertezas. Talvez exista mesmo uma sabedoria oculta, nesta hipótese: a democracia é um metabolismo destinado a integrar e incluir. Uma máquina surpreendente que, de tempos em tempos, busca a turma da periferia e coloca no centro do jogo. Bolsonaro é isto: o sujeito do canto da sala que aos poucos vai abrindo seu espaço. O Deputado ranzinza, que não liderava, ocupava cargos ou aprovava projetos. Com o tempo, soube se tornar um ponto de convergência da insatisfação difusa da sociedade. O primeiro líder majoritário conservador desde a transição. O nosso neopopulista. Nossa mistura tropical de Beppe Grilo e Donald Trump, ainda que muito diferente de todos eles. Se ele ganhar, o metabolismo democrático fará seu trabalho: irá finalmente integrar a direita conservadora ao grande jogo, assim como fez com a esquerda, nos anos 80 e 90. Há riscos neste processo? De um modo geral, diria que sim. A frase tem algo de protocolar. Somos uma democracia jovem, a política anda judicializada, elegemos parlamentares de 30 partidos, para o Congresso, e vivemos a mais aguda polarização política desde a transição. É de imaginar que uma nova elite política pouco experiente e algo voluntarista, como é o grupo de Bolsonaro, com posições claramente hostis ao establishment político, prenuncie forte instabilidade, à frente. O difícil é ir além disso. Nesta última semana, uma jornalista me perguntava o que aconteceria se Bolsonaro enviasse “projetos antidemocráticos” para o Congresso. Observei que a pergunta me parecia algo contraditória. O Congresso é, por definição, o lugar em que a democracia faz as suas leis. Pedi que ela me desse um exemplo do que poderia ser um projeto autoritário. Mudou de assunto. Na conversa, percebi que seu conceito de risco democrático era, de verdade, a agenda conservadora de Bolsonaro. A ideia difusa de que ele poderia fazer alguma coisa contra grupos minoritários, e quem sabe obter apoio do Congresso. Tentei ajudar a repórter. Bolsonaro tem, de fato, uma agenda conservadora a ser implementada. Ela é feita de ideias como a redução da maioridade penal, inscrição de ações violentas de movimentos sociais na lei antiterrorismo, excludente de ilicitude, flexibilização do estatuto do desarmamento e a escola sem partido. Ninguém sabe bem os detalhes dessa agenda, mas ela parece a melhor expressão de Jair Bolsonaro. A agenda é conservadora, sem dúvida, ainda que qualquer conceito, no mundo plástico da política, não tenha a objetividade que por vezes imaginamos. O ponto não é este: seja ou não um programa conservador e de traços regressivos, ele foi aberto e exaustivamente defendido pelo candidato, nas eleições. Se ele for eleito, é esta a agenda aprovada pela maioria do eleitorado brasileiro. Ela será, goste-se ou não, a agenda parida pela democracia brasileira. Por óbvio, o mesmo vale para a tramitação que cada um desses pontos demandará, no parlamento brasileiro, e, em alguns casos, no STF. Há um caminho longo e difícil pela frente, a ser trilhado em cada um desses temas. O que não é possível é imaginar que uma agenda qualquer, pelo simples fato de expressar uma posição conservadora, seja menos legítima, na democracia. Não faço juízo de valor. O ponto é simplesmente aceitar a regra do jogo. O autoproclamado progressismo precisa aprender mais sobre essas coisas: é preciso argumentar, disputar eleições, ganhar ou perder e apostar no sistema de freios e contrapesos que é próprio da democracia. E definitivamente parar de deslegitimar o adversário, quando a maré vem na direção contrária. Do contrário, alguém poderá desconfiar que o autoritarismo não venha exatamente daqueles a quem obsessivamente chamamos de fascistas e nazistas, mas da gente do bem. Da turma que, talvez pelo costume de sempre ganhar o jogo, tem dificuldades de aceitar a chegada de novos atores para dividir o palco da democracia. Vai aí uma das marcas da eleição: a ideia de que “do outro lado” estava não um adversário, mas aquele cuja indignidade sequer permite que que nós, os puros, lhe pronunciemos o nome. Aquele que não pode ser nominado visto que não deveria, efetivamente, existir. O insano, o patético, o coisa ruim, prenúncio do fim da “civilização e da humanidade”, como li em um post, nesta última semana, de um pacato acadêmico paulista. Tudo isso é um tanto grotesco, e, imagino, será objeto de pesquisa antropológica no futuro. Intuo que foi precisamente o cansaço e a por fim a revolta contra esta retórica da superioridade moral (junto com seu primo-irmão, o politicamente correto) que embalou a emergência desajeitada do homem comum e seu estranho herói. Tudo feito de um jeito torto, inadequado, fora do tom há muito estabelecido, para o deboche e logo o horror da gente de bom gosto, pelas ruas, happenings em aeroportos, igrejas sem pedigree e no universo selvagem das redes sociais. Há outras leituras do processo, talvez ainda mais interessantes. Nossa propensão ao exagero, que talvez seja o novo normal, das democracias, na era digital, atingiu o estado da arte. Exemplo irretocável disso foi a narrativa de certo modo predominante, no processo eleitoral, curiosamente formulada por um professor americano: Steven Levitsky. Levitsky pontificou e deu algum verniz acadêmico à retórica de fim do mundo, sobre Bolsonaro, que acabou pautando –com algum sucesso– o marketing da campanha de Fernando Haddad. Na visão do professor americano, Bolsonaro será o Hugo Chavez brasileiro. Caso Levitsky tenha razão, muito em breve teremos hordas de brasileiros fugindo pela fronteira, talvez na região da Foz do Iguaçu, tentando escapar para o Paraguai e Argentina. A estratégia Bolsonaro residiria em forçar nossas instituições ao seu limite. “Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei”, diz o professor. Quando li a frase, fiquei curioso.

Essa eleição é o fim de um ciclo

Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Columbia University,

DINHEIRO – Qual é a lição que se pode tirar destas eleições? Fernando Schüler – É uma eleição inteiramente diferente de todas as outras. Até 2014, vivemos um ciclo da política, marcado pela disputa entre variantes da social democracia brasileira. Dilma (Rousseff, PT) e Aécio (Neves, PSDB) tinham divergências de natureza política e econômica, mas não divergência de natureza cultural. Isto é curioso. Gastamos vinte anos acreditando que o mundo se dividia entre esquerda e direita e que Fernando Henrique era um perigoso neoliberal. Agora descobrimos que o mundo é mais complicado. Bolsonaro representa uma ruptura desse ciclo histórico. Ele introduz um tipo de cisão no terreno da guerra cultural. Temas morais invadem a política. A obsessão com as identidades, de um lado, e a reação conservadora, de outro. No fim todos perdem, pois este é um debate impossível. Ele vai muito além dos limites possíveis da política. DINHEIRO – Isso significa que o Bolsonaro é a novidade na política nacional? Schüler – Evidente. De certo modo fomos globalizados: temos o nosso populista conservador. Um tipo de conservadorismo popular, de costumes, que representa uma tradução brasileira da ideia de “lei e ordem”. Nada a ver, por óbvio, com a grande tradição conservadora anglo-saxônica. Nosso conservadorismo não trata de Burke, mas do pastor Malafaia. Podemos não gostar disso, mas é tudo legítimo. Expressa o pensamento de parcela relevante da sociedade, que andava dispersa por aí. Em quem estas pessoas votavam, até 2014? Em Aécio, Dilma, ou na Rede, de Marina Silva? A democracia vai criando suas próprias soluções. Eu não gosto do vezo populista, mas o que isto importa? O Brasil foi pautado, ao longo das gestões do PT, por uma retórica excludente, do “nós contra eles”. O “nunca antes neste país”. É evidente que isto criaria um efeito reativo. Demorou, mas aconteceu. Custa caro, para a democracia, apostar o tempo todo na lógica do dissenso. Bolsonaro é o produto extremo de uma sociedade que já vem polarizada há muito tempo. É evidente que a crise ética, política e econômica que vivemos funcionou como o estopim do processo. Terreno fértil para um líder populista e antissistema. Agora lide-se com ele. DINHEIRO – Ele se aproveitou do cenário atual? Schüler – O Bolsonaro não criou esse cenário, ele é seu resultado. Ele verbalizou e deu viabilidade política a um descontentamento difuso na sociedade com o sistema político. Não é simples explicar a emergência de um fenômeno populista. Em regra, combina-se crise econômica, exclusão (por vezes cultural) de amplos setores, polarização e instabilidade política  a nova lógica da democracia digital. O líder populista fala diretamente com as pessoas, dispensando os partidos e instituições tradicionais de mediação. É o que faz Bolsonaro: ele não está interessado em alianças ou no dinheiro do fundo público de campanhas. Usa a internet e seu movimento se propaga de modo caótico, nas redes sociais. Daí sua força. DINHEIRO – A democracia está em risco por conta disso?   Schüler – Tudo isto é fruto da democracia, ainda crie um brutal desconforto. Não acho que isto se resolva apostando na retórica do medo e da “ameaça fascista”. Isto é um jeito fácil e tolo de lidar com um problema muito mais profundo. Quem se acostumou a jogar o jogo sozinho não percebe um aspecto crucial: a democracia é uma formidável máquina de moderar posições políticas. Inclusive aquelas que eventualmente nascem de uma retórica autoritária. Isso aconteceu com muita gente da esquerda, que nos anos 80 ainda falava em revolução. Lula perdeu três eleições, moderou o discurso, ganhou o jogo e foi incorporado ao main stream político. A democracia é inclusiva. Ela agora também pode inclui a direita, o conservadorismo, mesmo que você, eu e muita gente possa torcer o nariz. DINHEIRO – As posições do Bolsonaro não são radicais? Schüler – É evidente que o Bolsonaro tem um traço autoritário e alimenta teses insustentáveis, como o elogio a torturadores. A esquerda fazia isso com o elogio reiterado, que acontece até hoje, à ditadura castrista, em Cuba, e o apoio explícito ao autoritarismo na Venezuela? É curioso como nós “normalizamos” essas coisas. Nós cultivamos uma curiosa indignação seletiva, que chegou a um esgotamento, nos dias de hoje. A forma de lidar com essas coisas é dobrar a aposta na democracia. Tenho dito que não adiante pregar o diálogo e a moderação e, ato seguinte, chamar o adversário de fascista. O pior caminho para a nossa democracia é excluir as novas formas de representação e de setores importantes para a sociedade brasileira, que eventualmente estiveram fora do poder, mas agora querem fazer parte do jogo. DINHEIRO – Quais são os outros exemplos de excluídos? Schüler – Isso acontece com os liberais no Brasil. Pela primeira vez, eles têm uma clara expressão política representada com o Partido Novo, que é um dos grandes vencedores dessa eleição. O NOVO é um partido inovador, no Brasil, pois nasce de um conjunto de ideias, e não de um arranjo político. Em quem votavam os liberais, no Brasil? No PSDB? Talvez. Mas agora há um partido, e por isso nossa democracia está mais completa. O mesmo vale para o PSOL, que é uma alternativa de esquerda mais nítida que o PT, e cresceu nestas eleições. DINHEIRO – As redes sociais vão ser um marco importante na análise dessas eleições? Schüler – Estas foram as eleições do cidadão comum, dos sem-retórica. O tipo que não se enquadra e mesmo reage a qualquer disciplinamento ideológico. Ele ganhou poder com a tecnologia, e vem produzindo um enorme barulho. Em geral, a elite intelectual não o suporta. Umberto Eco deu perfeitamente o tom: é o idiota da aldeia. Poucas vezes eu vi em uma democracia um divórcio tão grande entre o pensamento do homem comum e o pensamento da elite política intelectual. É uma espécie de incompreensão. Isso vem de um crescimento do politicamente correto, das restrições ao humor, à imposição de códigos identitários e a obediência a uma certa estética. Bolsonaro, em grande medida, se fez a representação do tipo que

A tranquila força da nossa democracia

A turma que apostou na teoria do “risco democrático”, agora, está com um problema: a internet. A internet é uma máquina de não esquecimento. Está tudo lá, registrado. Milhares de artigos, entrevistas, manifestos e “alertas” afirmando que a democracia iria ser destruída, de um modo ou outro, caso Bolsonaro ganhasse as eleições. Pois bem. Ele ganhou, e agora o tempo está correndo. Se a democracia de fato soçobrar, no Brasil, logo saberemos. Em um ou dois anos teremos já uma boa imagem do que ocorrerá com nossas instituições. Caso nossos ilustres acadêmicos estiverem certos, nos tornaremos uma nova Venezuela ou alguma variação próxima. O catálogo de grandes alertas é inesgotável. Agora é “civilização contra a barbárie”, diz Wagner Moura, com um olhar que só ele saberia fazer. Do exterior, a imaginação flutuou nas estrelas. Leio de um professor americano que andou por aqui como uma espécie de Roger Waters da ciência política, durante as eleições, que Bolsonaro irá mover uma guerra às facções criminosas do país, e quando a violência explodir suspenderá a Constituição e dará fim a nossa democracia. Leio outro que nos convoca a resistir enquanto for tempo. Enquanto ainda dispusermos de algum espaço e antes que “nossas liberdades sejam retiradas” pelo novo presidente. Não há nenhuma necessidade de discutirmos muito sobre a correção, ou não, da retórica catastrofista sobre o Brasil. Basta esperar. Estamos diante de uma espécie de experimento natural. Se o grande alerta estiver errado e nossa democracia sobreviver ao inominável monstro de Glicério (cidade natal do novo presidente), tenho convicção de nossos bons intelectuais farão uma discreta e silenciosa autocrítica. Não será preciso nenhum texto ou declaração pública (eles não o fariam, de qualquer maneira), nem mesmo um post, nas redes sociais. Sugiro apenas um brinde solitário em homenagem a nossa democracia e a nossas instituições, que julgaram tão mal. E quem sabe algum arrependimento pelo pecadinho tão impróprio a um acadêmico: ceder à tentação da militância. Ou pior: dar trela e transformar em tese acadêmica aquilo que não passava, no fim das contas, de retórica de campanha de um partido político. Não vale, neste debate, fazer uma confusão bastante elementar: caso a catástrofe não aconteça, sair pela tangente sugerindo que a democracia não terminou, mas que passamos por um retrocesso democrático, por conta da agenda conservadora do governo Bolsonaro. Vamos imaginar. O Congresso aprova, a partir de uma proposta apoiada pelo governo, a redução da maioridade penal para 17 anos. O projeto alcança 308 votos na Câmara e 49, no Senado, em dois turnos. Haveria algum problema democrático em uma decisão como esta? De minha parte, sou contra a redução da maioridade penal, o que é irrelevante. O aspecto relevante é: foi eleito um presidente com esta proposta, explicitamente defendida por anos a fio. Ato seguinte, ela recebe apoio do governo e é aprovada pelo Congresso. Sua aprovação será, portanto, um resultado da nossa democracia, ainda que possa desagradar uma imensa legião de brasileiros. O mesmo raciocínio vale para os demais itens da pauta conservadora, como a (ainda vaga) ideia de flexibilizar o estatuto do desarmamento. Tudo por uma simples razão: a democracia não se decide pelo que eu, você, um punhado de intelectuais, ou o maracanã lotado de gente movida pelas melhores intenções achamos que é certo fazer. A democracia, como não se cansava de repetir Norberto Bobbio, é o império das regras do jogo. É um sistema feito de freios e contrapesos, equilíbrio entre poderes e respeito à Constituição. Respeitadas as regras do jogo, nada diz sobre a qualidade da democracia se os seus resultados, isto é, se as decisões tomadas pelos cidadãos (nas eleições), pelo parlamento, sob a vigilância da Suprema Corte, forem consideradas por alguns como progressistas ou conservadoras. O que me espantou, nesta eleição, mais uma vez, é o mais completo desprezo que boa parte do mundo intelectual tem pela simples ideia do pluralismo e da tolerância como uma modo de ser que é próprio da democracia. Mais de 55 milhões de pessoas votam em um candidato, mas no dia seguinte isto é tomado como a mera expressão de um erro, tragédia, piada ou, como escutei de um bom amigo e intelectual, de uma campanha que não passou de “estridência ideológica vazia”. O novo governo já começa a enfrentar os problemas do mundo real da política, a necessidade de votos para a reforma da Previdência, a pauta da autonomia do Banco Central, no Congresso, a composição do ministério e formação da base partidária. O curso da política de carne e osso segue, a ritmo acelerado, enquanto uma estranha parte da sociedade parece não ter percebido que a campanha eleitoral terminou, que a democracia fez valer sua voz, e as instituições, talvez para desgosto de muitos, cumpriram exemplarmente o seu papel. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 31/10/18)

Existe ou não, afinal de contas, doutrinação ideológica em nossas escolas?

O projeto Escola se Partido é um tema difícil de tratar. Ele produz um debate necessário e toca em um problema real, ainda que não necessariamente ofereça a melhor solução para este problema. Meu ponto não é discutir o projeto, mas o tipo de debate que se criou ao seu redor. Acho curioso, em particular, um certo efeito avestruz que parece ter tomado conta de boa parte de nossa elite intelectual. A turma que simplesmente nega o fato óbvio de que existe um problema de doutrinação ideológica em nossas escolas. Há várias estratégias nesta direção. Alguns dizem que até pode existir algum viés político em nosso ensino, mas que é difícil medir seu tamanho. Faltaria algo como um “doutrinômetro”, um método ou instrumento para medir quantas horas/aula de doutrinação os estudantes receberiam, ano a ano, país afora. Outros apelam a argumentos com algum efeito retórico: se há doutrinação, como é possível que Bolsonaro tenha ganhado as eleições? Por esta lógica, deveria haver doutrinação quando Lula ganhava, com folga. Isto não quer dizer nada. É puro jogo de palavras sugerir alguma relação direta entre resultados eleitorais (por definição afetados por múltiplas circunstâncias) e o que se passa nas aulas de humanidades em nossas escolas. Há ainda os que apelam ao argumento da irrelevância: temos mais o que fazer do que pensar em livros didáticos ou no que dizem os professores nas salas de aula. A reforma da Previdência, por exemplo, ou quem sabe o desmatamento da Amazônia. E por aí vai. De minha parte, digo o seguinte: fiz uma pesquisa sobre o tema. Avaliei os livros de história e sociologia mais usados em nosso ensino médio. Observei o uso dos conceitos, a seleção factual, as fontes de informação e as indicações de livros e filmes. O viés ideológico é claro e brutal. Exemplo rápido: FHC é um desastroso neoliberal (“apesar de tentar negar”), que vendeu nosso patrimônio em meio a “denúncias e escândalos por todos os lados”, e Lula, o primeiro presidente “que não é da elite”. Seu governo foi acusado de um certo “mensalão” amplamente explorado pela “imprensa liberal”. É só um aperitivo. Está tudo lá. O problema é real. Parte de nossa elite intelectual não se importa com isso simplesmente porque concorda com o viés político. Inclui-se aí boa parte da academia. Outro tanto não concorda muito, mas não quer se incomodar. Gente que descobriu o óbvio: o melhor jeito de escapar da patrulha ideológica é concordar com ela, ou ao menos fazer de conta. Falácia bastante comum no debate sobre a doutrinação, na educação, é sustentar que a discussão se dá entre os que defendem a censura e os que defendem a liberdade de pensamento para os professores e alunos em sala de aula. Sejamos claros: o professor, em sala de aula, não detém nada parecido com uma liberdade absoluta para expressar suas posições políticas e visões de mundo. Ele não é livre, por exemplo, para dizer aos alunos em quem eles devem votar nas eleições. Foi este o sentido dado por Kant, no final do século 18, quando estabeleceu a distinção entre o que chamou de uso privado e uso público da razão. Qualquer um de nós, na condição de um cidadão, é perfeitamente livre para expressar suas convicções sobre a vida e o mundo da política. O mesmo não é verdade quando fazemos um uso privado da razão, isto é, quando cumprimos um determinado papel social. O âncora de um programa jornalístico, por exemplo. Ele simpatiza com esta ou aquela posição política, não há problema, mas no exercício de sua função profissional trata a informação com isenção e apego aos fatos. O mesmo ocorre com o professor. Sua função é promover o aprendizado e criar o melhor ambiente possível para o crescimento intelectual dos alunos. Seu papel não é convencer os alunos sobre esta ou aquela doutrina ou posição política, religiosa ou cultural. Para usar a expressão de Max Weber em “A Ciência como Vocação”, ele não deve agir como “profeta ou demagogo”, usando de sua posição de poder e sua audiência cativa para fazer a cabeça dos alunos. Isto é particularmente relevante para o ensino médio e fundamental, quando se está lidando com crianças e adolescentes no início de seu processo de formação intelectual. Dito isto, não é claro que o projeto Escola sem Partido ofereça a solução mais adequada para o problema da doutrinação, em nossas escolas. Confesso não gostar da ideia de incentivar que alunos denunciem seus professoresa órgãos de Estado. Considero bizarra a imagem de alunos gravando professores para posterior acusações públicas ou coisas do tipo. Isto sem prejuízo de que as direções de escolas, secretarias e mesmo o Ministério Público façam o seu trabalho, quando abusos de qualquer ordem forem cometidos. Que se coloque um cartaz nas salas de aula, contendo princípios consagrados na Constituição e nos documentos que regem nossa educação? Não vejo problema, mas desconfio que não irá adiantar muita coisa. Seja qual for a solução a ser dada ao tema da doutrinação ideológica em nossas escolas, ela começa com o reconhecimento simples de que o problema existe e deve ser discutido com franqueza. Dias atrás li um artigo sustentando que ideologização do ensino não tem nada a ver com a qualidade da educação oferecida a nossos alunos. Tem sim. Doutrinar, seja para que lado for, significa desprezar a lógica mais elementar do pensamento científico. Significa abrir mão do cultivo de competências analíticas fundamentais à vida profissional e à vida do cidadão, que envolvem apego ao dado empírico, distanciamento crítico e recusa do viés de confirmação. Não se trata apenas de induzir os alunos a apoiarem este ou aquele partido ou ideologia. Isto é ruim para a democracia, mas não é o maior problema. A questão central é recusarmos um tipo de educação que forma torcedores, em vez de pessoas capazes de pensar com racionalidade, isenção e método. E que possam, a partir daí, defender com propriedade as ideias que julgarem mais apropriadas, em qualquer terreno. Fernando Schüler