Deirdre

Deirdre McCloskey visita o Brasil, esta semana. Concorde-se ou não com suas ideias, é alguém que merece atenção. Ela é autora de uma trilogia monumental Bourgeois Virtues, sobre a formação do mundo moderno, e recentemente lançou “Why Liberalism Works”, com um bom resumo de suas visões, ainda sem tradução no Brasil. Não faço ideia do porque a palestra que daria na Petrobrás foi cancelada. O que é irrelevante, visto que todos, como sempre, já sabem de tudo, não é mesmo? Mas o episódio me dá uma boa pista sobre como começar explicando quem é a Sra. McCloskey. Em primeiro lugar, é uma liberal em tempo integral. Não brinca com essa história de separar a liberdade econômica das liberdades na cultura e nos costumes. O liberalismo nasce do direito de dizer “não”. Ponto. Seu vértice é a “igualdade de consideração e respeito.” Vem daí seu horror a qualquer forma de reacionarismo, à esquerda e à direita, e seu mau humor com o bolsonarismo. Em especial sua ideia de inflexionar políticas públicas para a “maioria cristã”, real ou imaginária. O liberalismo, na sua visão, não se situa em um algum ponto intermediário entre esquerda e direita. Socialistas e conservadores gostam do Estado, por diferentes razões. Liberais gostam do fluxo espontâneo da vida. Isso vale tanto para quem quer enquadrar aplicativos de transporte na CLT, padronizar as escolas ou dizer que tipo de arte vale e qual a estrutura “verdadeira” de uma família. Sua visão do mundo atual contrasta com o catastrofismo reinante em boa parte do universo intelectual. Em duzentos anos, diz ela, a renda média cresceu perto de 30 vezes, e a miséria foi virtualmente extinta, no mundo avançado. Nos anos recentes, o avanço migrou para o mundo em desenvolvimento. A igualdade cresceu entre os países. Entre o início dos anos 90 e 2015, segundo dados do Banco Mundial, caiu de 36% para 10% o número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, sendo a China a maior responsável por este resultado. É no acesso a bens essenciais para o bem estar, no entanto, que a qualidade de vida, e um sentido básico de igualdade, vem avançando mais rapidamente. O US Bureau of Labor Statistics mostrou que “em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com alimentação; contra apenas 13,2%, em 2002”. Os dados são amplamente conhecidos e deixam muita gente nervosa. Eles põe água fria na retórica de que estamos nos tornando uma enorme Gotham City, povoada por palhaços abandonados e bilionários malvados. Deirdre vai na contramão desse discurso, argumentando que são exatamente políticas de abertura e inclusão ao mercado que vêm retirando milhões de pessoas da miséria, mundo afora. Ela não vê problema na desigualdade econômica ou na multiplicação do número de bilionários, desde que sua riqueza venha da competição, da inovação, da melhora da vida dos outros e não da captura do estado. Lhe perguntei qual a sua ideia mais original. Ela não pensou muito para mencionar a tese de que é o livre fluxo de ideias e a inventividade humana, não o capital, a geopolítica ou a educação formal, que estão na base da prosperidade. Seu foco são as ideias e a narrativa. A virada para o século XIX assistiu a uma mutação em vastas regiões da Europa e na América. O homem comum, o padeiro, o comerciante, o inventor de coisas ganhou dignidade, e sucessivas barreiras foram quebradas. Uma narrativa honrando o “inovismo”, termo que ela por vezes usa no lugar de capitalismo, cumpre ai um papel vital. Coisa que vai muito além do terreno econômico, invadindo a cultura, os direitos, o sexo e os estilos de vida. Deirdre chamava-se Donald, e resolveu trocar de sexo, no final dos anos 90. Fez de si mesma um exemplo dessas coisas. Seus filhos não a perdoaram. Os netos sequer conheceu. Em algumas noites tristes, costumava estacionar o carro perto da casa do filho mais velho e observar seus amores, solitária. Com o tempo, parou de fazer isto. Tornou-se uma professora bem humorada com um evidente gosto para desafiar o senso comum. Ela parece saber que, na vida pessoal ou intelectual, a liberdade cobra seu preço. E que é preciso seguir vivendo. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, janeiro de 2020)
Em que momento nos tornamos reguladores obsessivos da vida dos outros?

O Cacique de Ramos teve que se explicar. O bloco desfila com fantasias de índio desde 1960, mas agora a coisa complicou. “Os pioneiros do bloco tinham nomes indígenas e eram ligados à umbanda”. Não entendi a relação com a umbanda. Possivelmente era um salvo-conduto. Alessandra Negrini também não escapou. Teve que se explicar, e se saiu bastante bem. “A luta indígena é de todos nós, por isso tive a ousadia de me vestir assim”. Bingo. Ao invés de pedir desculpas, disse simplesmente o que pensava. Com um pouco de retórica política. Contra-ataque perfeito. Curiosa esta invasão da retórica política sobre a indisciplina e a irreverência que sempre marcou (ao menos é isto que imaginávamos), nosso carnaval. Não se trata da sátira política (sempre bem vinda, aliás), mas o seu contrário: o disciplinamento da sátira pela correção política. O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da Prefeitura de Belo Horizonte, com orientações sobre o que os foliões deveriam evitar. Fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de Lamartine Babo, touca com tranças, homem vestido de mulher. Este último item com um requinte: nem de “noiva”. Talvez tenha sido nosso primeiro carnaval de cartilha, mas presumo que seja o primeiro de muitos. Nessas coisas todas, o que me surpreende é o excesso de convicção. A certeza de que alguém tem o direito de mandar na vida dos outros. Antônio Risério chamou isto de “fascismo identitário”, em seu livro recente. Fascismo, aqui, é o culto do dogma, a negação do diálogo, a sede de controle. Se o termo é adequado cada um pode julgar. Vai aí uma marca do nosso tempo: a hiperpolitização do cotidiano. Jonathan Haidt trata do tema em seu “The Coddling of the American Mind”. A vigilância coletiva nos campi universitários, os safe spaces, a supressão da divergência e proteção a qualquer coisa que caiba sob o rótulo de ofensivo. Parece evidente que as redes sociais tem muito a ver com isso. A conexão digital fez com que, subitamente, passássemos a viver juntos”. Da multiplicidade que marca as grandes sociedades abertas, passamos a funcionar como uma comunidade. Comunidade de bisbilhoteiros e “reguladores da vida dos outros”, como escutei de um amigo professor, tempos atrás. Sobre a atual histeria identitária, Risério toca na questão central: como é possível que movimentos que iniciaram “como luta pelo reconhecimento do outro tenham terminado como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade”? Não vejo resposta simples a esta pergunta. Mas ela deve ser feita. De um movimento múltiplo e generoso, afirmativo de direitos, migramos a uma guerra mesquinha pelo disciplinamento do humor, pela correção da literatura, supressão de marchinhas, regulação de fantasias e festas populares. Talvez tudo tenha saído um pouco de controle quando as guerras culturais invadiram o mundo da política e qualquer alegação de fragilidade tenha se tornado um caminho fácil para a virtude. Tudo feito à moda banal da radicalização e do exagero que marca a democracia atual. Há muitos riscos aí. Um deles é a descredibilização dos temas de fato pertinentes à exclusão e o preconceito. Submeter a luta antirracista ao julgamento seletivo e à politização barata é perder de vista a seriedade dos temas que ela de fato envolve, no dia a dia. Há um elemento político: só quem tem ganhado, com a histeria identitária, é um certo direitismo conservador que declara guerra ao politicamente correto e passa a ser visto, por irônico que pareça, como libertador. Há muitos bons trabalhos de sociologia mostrando isto, infelizmente não aqui pelos trópicos. No mais, arriscamos terminar convertendo o país da transgressão e da antropofagia em uma nação puritana. Depois do ódio político, a chatice cultural. Terminaremos cantando hinos gospel no carnaval. Nesse dia vai bater, não duvidem, uma saudade danada de algumas velhas marchinhas que deixamos para trás. (Publicado originalmente na Folha de São Paulo, fevereiro de 2020)
O Fundeb e a Constituição

O debate em torno do Fundeb está em pauta no Congresso. Ele não diz apenas respeito ao financiamento da educação brasileira mas também à definição sobre como se fará a gestão de nossas escolas. Isto é: como se fará para garantir que o direito à educação básica, inscrito na Constituição, seja efetivo. Há temas que mereceriam especial atenção no parecer apresentado pela Deputada Professora Dorinha, relatora da PEC do Fundeb. Um deles é a determinação de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam aplicados, nos estados e municípios, no pagamento de “profissionais da educação em efetivo exercício”. Mais do que criar um engessamento impróprio para um país continental e diverso como Brasil (como saber se, daqui a dez anos, nos 5570 municípios brasileiros, será este o percentual requerido?) a redação parte da premissa, que parece implícita no projeto, de que a oferta da educação básica será necessariamente estatal. Caso aprovada, teríamos uma contradição com o Artigo 213 da Constituição, que trata do uso dos recursos públicos para a educação. O parecer sugere que o referido Artigo trata como “exceção” as parcerias com o setor publico não estatal (escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias), e não como uma possibilidade aberta aos gestores das redes públicas de educação. Há um claro equívoco aí. As restrições estabelecidas pelo constituinte para a gestão por contratos, com o setor público não estatal, são bastante precisas e dizem respeito à natureza filantrópica, isto é, sem fins lucrativos das instituições. A condicionante mencionada no parecer, relativa à falta de vagas nas redes públicas, diz respeito ao mecanismo de oferta de bolsas de estudo. De modo resumido, a Constituição determina que modelos de bolsas (ou “voucher”) são excepcionalidades. Parcerias e contratos de gestão com instituições sem finalidade lucrativa são uma opção aberta aos gestores públicos. É este o sentido dado pelo Artigo 213: recursos serão destinados ao sistema A, podendo ser dirigidos ao sistema B. Fosse o contrário, o constituinte o teria explicitado. Como ocorreu com a saúde pública. O Artigo 199 da Constituição prevê que as instituições privadas poderão participar “de forma complementar” do sistema único de saúde. No âmbito da educação, o modelo é plural, estatal ou não estatal, desde que com escolas sem fins lucrativos. A questão central é saber como esta escolha será feita. É com isto que deveríamos nos preocupar. Em saber o que funciona, a partir do que a Constituição faculta, ao invés de tentar fixar a qualquer custo o monopólio deste ou daquele modelo de gestão. Modelos de gestão evoluem, através do tempo. O Brasil é exemplo disso. Após à Constituição de 88, criamos a lei das concessões, em 1995; das organizações sociais, em 1998; das PPPs, em 2004, e ainda recentemente instituímos o novo marco da sociedade civil, com a Lei 13.019/14, que permite um amplo espaço de colaboração entre setor público e o terceiro setor. Ou seja, o próprio ordenamento legal brasileiro evoluiu, ao longo das últimas três décadas, gerando novas alternativas de gestão. Estas alternativas são usadas hoje na saúde pública, área ambiental, social, saneamento básico e virtualmente em todas as atividades que não integram as chamadas funções exclusivas de estado. No campo da educação elas igualmente já vem sendo utilizadas, em experimentos inovadores e ainda de pequena escala. Exemplos disso são as escolas construídas e administradas via PPP, em Belo Horizonte, e a parceria via termos de fomento e colaboração com escolas como a Lumiar e outras, em Porto Alegre. Por que estas alternativas deveriam ser excluídas, prima facie, da gestão educacional? Com base em que evidência empírica? Não me parece que elas venham dos resultados que nosso modelo de monopólio estatal vem apresentando, como nos mostram os dados do PISA. Congelar um modelo de gestão da educação pública no texto da Constituição é um equívoco para o País. Garantia de direitos não é sinônimo de execução estatal de serviços, nem o seu contrário. Precisamos estar abertos ao que se passa no mundo, saber o que funciona, observar dados empíricos não apenas na teoria, mas na prática. Reescrever desse jeito a Constituição Brasileira é uma enorme precipitação. O Congresso deveria refletir sobre isto (Publicado originalmente na Folha de São Paulo em março de 2020)
Ódio do Bem

Ódio do bem Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais. Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo? É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir dai achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitaozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”? No caso de Holiday, a justiça não caiu nesta conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime, no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou. Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou. Há muito o que aprender, com estas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano. Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fakenews vinham apenas de um lado do jogo. Fascinante é este fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo. Tudo isto vem de muito longe mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral. Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump, achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi. A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política? A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 50, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes”. Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto. Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo. Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 30, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso, em nossa democracia. É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale à pena pensar a respeito. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2020)