O que realmente queremos com a renda básica?

O tema da exclusão racial tomou o centro do debate e é bom que isso tenha acontecido. Pedro Fernando Nery sintetizou em um dado o drama brasileiro: 60% dos meninos negros como o Miguel, abandonado no elevador daquele apartamento bacana no Recife, vivem abaixo da linha da pobreza. O país precisa avançar em políticas sociais inteligentes e esta pode ser uma das principais lições da crise. O primeiro tema diz respeito à renda básica. O governo anunciou que irá apresentar a Renda Brasil. E o faz do seu jeito estranho, com pouco amor ao detalhe sobre como vai funcionar e de onde sairá o dinheiro. Mas OK, a pauta é boa. O Brasil vem experimentando um modelo bastante amplo de transferência de renda emergencial. Seu desenho é precário, e o custo proibitivo. O modelo custaria em torno de 7% do PIB e implicaria um completo redesenho de nosso pacto social. O que parece viável é avançar com moderação. Estudo apresentado por Sergei Soares, Letícia Bartholo e Rafael Osorio, do Ipea, sugere a unificação do Bolsa Família, abono salarial, salario-família e as deduções-criança do Imposto de Renda. Haveria ganhos de focalização e coordenação. 77% dos recursos do Bolsa Família vão para o terço mais pobre da população, enquanto as deduções-criança vão direto para o terço mais rico. Não parece haver muita dúvida sobre o que fazer. Há duplicações de benefícios e uma ampla parcela de famílias pobres que não recebem benefício algum. O simples ganho de eficiência na aplicação dos recursos duplicaria seu efeito, com impacto fiscal zero, na redução da pobreza e da desigualdade. A economista Monica de Bolle sugere algo distinto (e correto, na minha visão): o foco em uma renda básica infantil. Famílias com crianças de 0 a 6 anos receberiam um complemento de até meio salário mínimo, com impacto fiscal esperado entre 1% e 1,5% do PIB. No fundo, estamos diante de uma discussão que envolve elementos normativos e funcionais. O país quer priorizar a proteção da infância? A ideia é simplesmente não deixar que ninguém viva abaixo de um certo padrão de dignidade? Ou o objetivo é mais arrojado e envolve a redução e, por fim, a eliminação da miséria? Não acho que exista clareza alguma sobre estas coisas, e acho curioso que o país (a começar pelo governo) se dedique a desenhar programas sem explicitar sua visão normativa de longo prazo. Seria como ir levantando paredes sem antes perguntar em que tipo de casa se quer morar. Definido o sentido normativo do programa, seu desenho fica mais fácil de fazer, e os economistas, como observou provocativamente Samuel Pessoa, podem calcular quanto tudo irá custar. De minha parte, digo que a renda básica brasileira deveria atender a quatro pontos normativos: ter um foco claro nos mais pobres e definir condicionalidades (além das hoje existentes no Bolsa Família, envolvendo formação profissional, por exemplo). Deveria integrar programas a partir do Bolsa Família, que pode ser corrigido em seu alcance e valor, hoje irrisório. Integrar, aqui, tem um sentido amplo: substituir programas menos eficientes pela oferta direta de renda às pessoas. Esta a reconversão de longo prazo que assistimos no “welfare state” contemporâneo: menos intermediação das burocracias públicas e mais poder para que as pessoas façam suas escolhas, com liberdade. Por fim, o caráter emancipatório. Se o objetivo de um programa de renda básica é superar a pobreza, seu foco civilizatório deve ser a autonomia das pessoas frente ao Estado, de modo que elas possam viver do seu trabalho e senso empreendedor. A transferência de renda é apenas um dos elementos que podem nos ajudar a superar a pobreza. Pouco adianta garantir uma renda básica se a escola não funciona e 56% dos lares mais pobres não têm acesso à coleta de esgoto. É por isso que a repactuação do país precisa ser muito mais ampla do que costumamos reconhecer. Oxalá a crise nos ajude a esquecer um pouco a querela política e pensar nas coisas que de fato importam. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (texto originalmente publicado na Folha de São Paulo em 11,06,20)
Ghandi encaixotado: a mudança social e a simples intolerância

A estátua de Mahatma Gandhi amanheceu coberta por uma caixa metálica, dias atrás, na Parliament Square, em Londres. O monumento foi inaugurado em 2015 para homenagear o líder pacifista indiano, mas agora há uma campanha para retirá-lo de lá sob a acusação de racismo. Um dos colegas de praça de Gandhi é Jan Smuts, ex-primeiro-ministro segregacionista da África do Sul. Smuts também circula em uma lista de derrubamentos, mas tem merecido menos atenção. Churchill é o mais famoso da praça e já foi devidamente vandalizado. A menção a Gandhi não vem por acaso. Valeria o mesmo para as diversas estátuas de Cristóvão Colombo queimadas ou decapitadas em cidades americanas, ou para o nosso padre António Vieira, gentilmente vandalizado no centro de Lisboa. João Pereira Coutinho associou nosso tempo a uma certa revivescência medieval. A época pré-iluminista das inquisições. Diria que vivemos uma Idade Média mais bem educada. As multidões de hoje não se reúnem mais em praça pública para amaldiçoar algum infiel ardendo na fogueira. As bruxas em geral queimam na internet e não importa muito a ideologia. Na vida real (ao menos por enquanto e com algumas tristes exceções), a multidão derruba apenas estátuas e vandaliza espaços públicos. Coutinho estaria errado se a raiva popular estivesse sempre do lado certo da história. O antirracismo contemporâneo, por exemplo, na trilha de Martin Luther King. As multidões trariam consigo o germe da razão e do progresso moral. Saberiam escolher entre a civilização e o que deve ir para o lixo da história. De minha parte sou cético. Se alguém quer entregar à multidão irada a decisão sobre proibir um filme, retirar a palavra a um orador ou derrubar uma estátua, boa sorte. Só lembre-se que um dia desses a multidão pode errar e sua fúria se voltar exatamente contra as ideias que mais prezamos. Não foram poucas vezes que isso aconteceu, e nem muito longe daqui. É exatamente por isso que inventaram essa coisa quase insuportável chamada liberdade de expressão. Exatamente a coisa que está no centro do debate atual e que vem desafiando a nossa democracia. Há um lado curioso nisso tudo. Nos anos 1990 muita gente imaginava que a internet iria aproximar as pessoas e melhorar o debate público. Ocorreu o contrário. Cresceu a paixão tribal no mundo do pensamento. Numa expressão, a tecnologia nos medievalizou. Os riscos disso tudo são evidentes. O mais óbvio é a perda de referência. A incapacidade de distinguir entre demandas legítimas de transformação social, como o antirracismo, e a simples intolerância. Barack Obama acertou na mosca pedindo que os movimentos antirracistas que incendiaram os EUA não “racionalizassem” a violência. Mencionou uma velha senhora que teve a loja de rua destruída e disse que todos sabiam como aquilo tudo estava fadado a terminar. E arrematou: “Se queremos a justiça e a sociedade funcionando sob um código ético mais exigente, precisamos nós mesmos agir desse modo”. Obama é o cara que disse, um dia após a eleição de Trump, que a democracia era assim, um jogo de vitórias e derrotas em que todos ganham, no longo prazo. Mas pouca gente entendeu, como sempre. Outro risco é a contaminação das instituições. Não há que se esperar muito da multidão digital. Por vezes ela irá acertar, por vezes errar, e mesmo sobre o erro e o acerto não haverá acordo. A paixão e o ódio político serão o feijão com arroz das democracias. No Brasil atual me surpreende (em que pese não deveria) que tenhamos ressucitado a “famigerada” Lei de Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo em 1983. Para alguns, a lei que era um entulho autoritário se transformou em instrumento da democracia; para outros, que com ela simpatizavam, se tornou ferramenta do arbítrio. Num e noutro caso, o apelo indignado à liberdade de expressão. Não deixa de ser uma perfeita imagem do nosso tempo. Não vejo chance de essas coisas mudarem, e o máximo que me permito é acreditar que nossas instituições e liderança pública não irão embarcar nesse jogo. Acreditar com cada vez menos força, confesso. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.