A educação deve ser assim “porque sempre foi”?

Na votação do Fundeb, em agosto, o Congresso atendeu à pressão corporativa e inscreveu na Constituição a obrigatoriedade de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam para gasto com pessoal. Na contramão de tudo que se discute hoje em termos de autonomia federativa e redução da rigidez orçamentária. Agora o Congresso vota a regulamentação final do Fundeb. Entre outras coisas, a votação dirá o que fazer com os 30% restantes dos recursos do fundo. O tema muitas vezes surge como sendo uma discussão sobre modelos de gestão educacional. Existem os modelos de gestão estatal direta, os modelos de escolas contratualizadas, de natureza filantrópica, e há modelo de concessão de bolsas, cujo maior exemplo no Brasil é o Prouni. No ensino público básico o país adotou, historicamente, o primeiro modelo. A gestão estatal direta, feita pela máquina pública de estados e municípios. Construir escolas, abrir concurso, regime jurídico único, lei 8.666, sindicatos fortes e mandonismo político. Os resultados todos conhecemos. O país fez mais do que isso: impôs um quase monopólio estatal na educação pública. E o fez em contradição direta com o texto constitucional, que diz, em seu artigo 213, com perfeita clareza, que “os recursos públicos da educação serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”. É tão claro quanto ao tema que o país discutiu dias atrás sobre a possibilidade de reeleição nas casas do Congresso. A Constituição criou um sistema misto de provisão da educação pública. O objetivo era precisamente dar aos gestores estaduais e municipais a autonomia para avaliar modelos e fazer o melhor pelos estudantes. A pressão corporativa e inércia do mundo político sempre impediram que esse debate fosse feito. O monopólio estatal foi simplesmente dado como norma e única alternativa disponível. O resultado foi um crescente abismo social: a classe média foi rapidamente migrando para o ensino privado e os mais pobres presos à escola estatal. Criou-se no país algo muito mais grave do que desigualdade nos resultados que surgem no Ideb ou a cada três anos no Pisa. Criamos dois mundos sociais que vivem à parte e reproduzem nossa desigualdade estrutural: o mundo dos que podem escolher, nas redes privadas, majoritariamente branco e de maior renda, e o mundo dos sem escolha, majoritariamente negro e de menor renda, presos ao Estado. Este é o País que o monopólio estatal da educação pública ajudou a “cristalizar”. Agora estamos diante de uma nova decisão. E sob o risco de consagrar em lei, à revelia do que diz a Constituição, a obrigatoriedade de que todos os recursos do Fundeb, e logo os alunos que dependem desses recursos para estudar, fiquem presos às redes estatais de ensino. Como tem observado o deputado Tiago Mitraud, não se trata de uma discussão sobre este ou aquele modelo de gestão da educação. O ponto é perguntar se será possível a discussão de qualquer modelo que não seja o monopólio estatal. A questão central é se vamos basear escolhas educacionais em “evidências” ou isto termina por ser pura retórica. No mundo real da política, impõe-se desde Brasília que os 27 estados e 5.570 municípios brasileiros só poderão adotar, muito longe de qualquer dado ou evidência, um único modelo. O mesmo praticado desde sempre e com os resultados que sabemos. Essa decisão será um erro. Mais um dos tantos que já se cometeram em nossa educação pública. Reverter isso supõe alguma vontade política de pensar de maneira diferente. Coisa rara neste país do “assim é porque sempre foi”, a máxima de nosso tradicionalismo político tão bem definida pelo mestre Raymundo Faoro. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (Originalmente publicado na Folha de SP)
Reforma administrativa ou reforma do Estado?

Acho ótimo que o governo e o Congresso avancem na pauta da reforma administrativa. Nosso setor público quebrou. O governo deve investir 0,3% do PIB no ano que vem, e as despesas obrigatórias engessam 94% do Orçamento federal. E há um problema de qualidade nos serviços públicos, cuja conta é paga pelos mais pobres. O Brasil andou na contramão nos anos 1980. Enquanto o mundo tratava de ajustar o Estado à globalização e modernizar a gestão pública, o Brasil apostou em um super Estado burocrático na Constituição de 1988. Oferecemos estabilidade rígida no emprego para os servidores, misturamos carreiras de Estado com carreiras comuns do serviço público, criamos a lei das licitações, engessamos os orçamentos e eliminamos qualquer espaço para a meritocracia na área pública. Criamos um Estado competente para administrar amplos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o BPC, mas cronicamente incapaz de gerenciar uma escola ou um posto de saúde. O resultado é conhecido. A classe média tratou de fugir dos serviços públicos e migrou para o setor privado. Escola particular, saúde e previdência privadas. Os mais pobres ficaram reféns do Estado e sua tragédia. Nas filas do SUS, na escola que não funciona. E não raro nas unidades socioeducativas, quando tudo dá errado. O Estado, que era para produzir equidade, produziu o oposto: aumentou ainda mais o fosso da nossa desigualdade. Não porque “concentrou renda”, como anda na moda discursar, mas pela incapacidade de garantir oportunidades básicas minimamente iguais para todos. Nos anos 1990, ensaiamos um ciclo virtuoso de reforma do Estado. Surgiu a figura das organizações sociais e a contratualização de serviços públicos. Aprovou-se a emenda 19 à Constituição, que, entre outras coisas, determinou a avaliação dos servidores públicos e a possibilidade da demissão por insuficiência de desempenho. Em 2000, veio a Lei de Responsabilidade Fiscal Depois disso, andamos em marcha lenta. O modelo das organizações sociais pouco andou, na esfera federal, ainda que tenha avançado em muitos estados, a começar por São Paulo, com as OSs de saúde e cultura. A avaliação dos servidores nunca foi regulamentada pelo Congresso. Faz 20 anos, e não consta que o Supremo tenha se mexido para lidar com isso, sob o argumento da “omissão legislativa”. A PEC do Teto, no final de 2016, terminou por escancarar a falência do Estado brasileiro. Ou colocamos um artigo, na Constituição, que nos obriga a fazer reformas de verdade, ou afundamos de vez. É o ponto em que nos encontramos. O risco é cair na ilusão de que basta uma reforma fiscal, que corte despesas, combata “privilégios”, mas mantenha intacta a lógica de um Estado estruturalmente ineficiente. Isso seria a cara de um país medíocre. O desafio é ir além: mexer na governança do Estado, na qualidade da oferta dos serviços públicos. O país deu passos tímidos nesta direção com a lei de governança das estatais e, mais recentemente, a nova lei das agências reguladoras. O governo anuncia um amplo programa de privatizações e concessões de parques e presídios, o que é positivo, mesmo que tudo pareça ainda bastante incerto. Não acho que deveríamos reinventar a roda neste tema. Há uma experiência brasileira em reforma do Estado, que sinaliza um caminho. Basta ir ao oeste do Paraná e observar a concessão do parque do Iguaçu, no entorno das Cataratas; visitar a periferia de Belo Horizonte e conhecer as escolas em modelo PPP; andar pelo antigo centro do Rio de Janeiro e fazer uma visita ao Museu do Amanhã, e depois dar um pulo na Floresta da Tijuca para conhecer o Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). E quem sabe terminar a semana assistindo a um concerto da Osesp, na Sala São Paulo. Os exemplos têm um ponto em comum: o governo abriu mão de executar serviços e terminou produzindo resultados muito melhores. O governo recuou, não abriu concurso, não inchou a máquina do Estado ou a previdência pública. Manteve seu perfil enxuto e sua função de inteligência, deixando de fazer o que a sociedade e o mercado podem fazer melhor. Não há nenhum grande mistério aí. Basta um pouco de bom senso, disposição para aprender e não pensar o Brasil a partir dos interesses corporativos. No fundo é este o desafio da reforma do Estado, se é que desejamos pensar com alguma ousadia. Fernando Luis Schüler, Cientista Político. (publicado originalmente no Jornal Folha de SP)