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Escolher a escola dos filhos deveria ser um direito, não um privilégio

De toda minha experiência com debates sobre o Brasil, não há nada que mais irrite a elite brasileira do que a simples ideia de assegurar que as famílias mais pobres possam escolher a escola dos filhos. Ainda me lembro da primeira vez em que sugeri isso, anos atrás. Era um desses eventos bacanas focado no “gap” social brasileiro. Na saída, uma senhora elegante me perguntou, pensativa: então quer dizer que os mais pobres vão estudar no Colégio do Rosário? “Sim”, respondi, ao que ela me retrucou: “E irão também nas festas de 15 anos?”. Ela preparava a festa de 15 anos da filha e parecia preocupada com aquilo. Não era apenas a questão de receber a mesma educação. O problema era a invasão de um mundo social que ela via como devidamente “protegido”. Na sua visão, era óbvio que os mais pobres tinham o direito à educação, mas no “lugar certo”, isto é, nas redes estatais. Não importava muito a desigualdade nem a supressão do direito de escolha para quem não tinha dinheiro para pagar uma mensalidade. As coisas eram assim porque sempre haviam sido. Me lembrei disso quando li, aqui na Folha, que há apenas 10% de alunos negros nas escolas particulares de São Paulo. A reportagem diz que “a qualidade das escolas privadas supera a das escolas públicas” e sugere que seria bom que mais alunos negros e menos favorecidos pudessem estudar lá. Também acho. O texto sugere que a solução poderia estar na oferta de bolsas pelas próprias escolas. Seria ótimo, mas obviamente não é uma solução com escala. O Estado deveria garantir isso. Foi com esta visão que o ativista de direitos civis Howard Fuller, no início dos anos 1990, a partir de uma demanda por inclusão educacional de famílias negras, criou o primeiro programa americano de bolsas em larga escala. Hoje há 64 programas desse tipo nos Estados Unidos. Bem desenhados, eles geram oportunidades reais de integração para alunos menos favorecidos. Não se trata de substituir o sistema tradicional de ensino. Trata-se de produzir diversidade, trabalhar em escala experimental e comparar os resultados com diferentes modelos. Tudo que nos recusamos a fazer no Brasil. Por aqui, ao mesmo tempo que nos indignamos com o fato de haver tão poucos alunos negros na rede particular, não fazemos nada. Apelamos à uma vaga filantropia privada enquanto fixamos de vez o monopólio estatal do ensino público, como vemos agora na tramitação do novo Fundeb. É interessante que o Brasil já possui uma boa experiência nesta área com um programa criado pelo governo Lula: o Prouni. Talvez seja o maior programa de bolsas e liberdade de escolha educacional do mundo. Mesmo assim, é curioso que nosso establishment continue dizendo que coisas assim não têm como funcionar. Ainda este ano participei de um debate sobre o tema e um “especialista” foi taxativo: os mais pobres não teriam condições de “analisar indicadores e fazer escolhas”. Minha visão de mundo era tão distante daquilo que encerrei a conversa. Fiquei pensando se aquela pessoa realmente acha que o governo tem feito boas escolhas em nome das famílias mais pobres, na educação, ou se era apenas o velho preconceito segundo o qual alguém só aprende a tomar decisões a partir de um certo padrão de renda. Vamos lá. É difícil levar a sério a ideia de reduzir desigualdades e manter, a ferro e fogo, o hiato educacional brasileiro. Sem permitir, em algum momento, que alunos negros e brancos, de maior ou menor renda, compartilhem não apenas as mesmas escolas, mas também de um universo social comum. A reportagem da Folha traz o depoimento de Lucas Rodrigues, que ganhou uma bolsa no Colégio Bandeirantes. Ele fala do choque de trajetórias sociais, mas diz que “é positivo. Descobrimos que todos vivemos em bolhas e aprendemos a desfazer preconceitos”. No fundo, todos sabemos disso, mas permanecemos na mais perfeita inércia. Nos especializamos em retórica bacana para garantir que o direito de escolha educacional continue sendo, como tantos direitos neste país, um privilégio de poucos. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (Originalmente publicado na Folha de SP, em outubro de 2020)

Um novo modelo de Estado, voltado para o cidadão

Pergunta rápida. O que há em comum entre instituições tão diferentes quanto a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a OSESP, o Projeto Sirius, o acelerador de partículas e um dos mais complexos empreendimentos científicos brasileiros, em Campinas, e o Hospital Regional de Jundiaí? Em primeiro lugar, são instituições de excelência, mas este não é o ponto. Elas tem em comum o fato de que representam inovações estratégicas para a gestão pública brasileira. São iniciativas fomentadas pelo poder público mas gerenciadas via contratos de gestão, com o setor privado. A OSESP tem o comando da Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; o Projeto Sirius tem a gestão do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM, e o Hospital Regional de Jundiaí é gerenciado pelo Instituto Sírio Libanês. Vai aí uma tendência da gestão pública contemporânea. Assim como aconteceu com o setor privado, a integração global e a pressão por eficiência fez com que os governos passassem por um processo de especialização. Ao invés do antigo modelo do governo horizontalizado, prestador de serviços, do governo que “faz de tudo”, vem crescendo a ideia do governo que regula, fixa metas de longo prazo, garante a vigência de direitos, mas deixa que o setor privado e o terceiro setor executem a gestão de serviços. Com isso, produz-se uma equação ganha-ganha: o governo faz o que sabe fazer melhor e tem um mandato democrático para fazer: o macroplanejamento social, enquanto o setor privado, com ou sem fins lucrativos, igualmente faz o que sabe: o gerenciamento na ponta, em uma ambiente competitivo. Esta metamorfose das funções dos governos de sua relação com o mundo privado remonta à chamada Nova Gestão Pública, que explodiu nos anos 80 e 90 com o processo de globalização. A integração dos mercados pressionou os países a reduzir custos, tributos e burocracia, sob pena de perda de espaço e competitividade diante da abertura global. No Brasil chegamos um tanto atrasados a este processo. A Constituição de 1988, em que pese todos os seus méritos democráticos, consagrou um modelo pesado de burocracia pública, baseado na centralização orçamentária, regime jurídico único dos servidores, estabilidade no emprego, ausência de meritocracia e engessamento dos processos de gestão, cuja expressão mais conhecida é a lei das licitações (Lei 8.666/93) A adoção do modelo burocrático levou a uma contínua perda de qualidade na oferta dos serviços públicos. O resultado foi a migração da classe média para os mercado privado. Para as escolas particulares para saúde privada. Os mais pobres permaneceram atados aos serviços oferecidos pelo Estado, em regime de monopólio. O resultado final foi o progressivo agravamento da desigualdade social brasileira. A reversão desse estado de coisas começa com o processo da reforma do Estado, nos anos 90. Seu aspecto crucial foi a criação da lei das Organizações Sociais e a introdução, em maior escala com a devida base jurídica, dos processos de contratualização na administração pública brasileira. A ideia básica está contida nos exemplos que trouxemos no inicio do texto: se o Sirio Libanês pode disponibilizar toda sua expertise, firmar um contrato de gestão com o governo e gerenciar um hospital público, aberto a toda a população, por que isto não deveria ser feito? A essência dos processos de contratualização é oferecer à população mais desfavorecida o mesmo padrão de serviços de que dispõe a classe média e os mais ricos, no mercado. Trata-se de uma política de equidade. Sua base filosófica é o entendimento claro de que para que um serviço seja público ele não necessariamente precisa ser estatal. Esta foi uma confusão que por muito tempo marcou a cultura politica brasileira, e que aos poucos vem sendo desfeita. Nos últimos anos, criou-se no Brasil uma base de legislações abrangente e sofisticada que permite que os governos criem modelos inovadores e sistemas de parcerias público-privadas em todas as atividades não exclusivas de Estado. Além das legislações de Organizações Sociais, que hoje existem em praticamente todos os Estados, tivemos a lei das PPPs, em 2004, e mais recentemente a criação do Marco Regulatório da Sociedade Civil, a lei 13.019/14. Com base nestes modelos, o País vem se transformando em um canteiro de inovações surpreendentes e que apontam para o futuro da gestão pública brasileira. É o que vemos, por exemplo, na rede de escolas infantis construídas e gerenciadas via PPP, em Belo Horizonte; é o que vemos na experiência pioneira de gestão, igualmente via PPP, do Hospital do Subúrbio, em Salvador. É o que vemos em experiências que vão desde uma instituição de impacto internacional, como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, até a prestação de serviços de atenção à saúde. Apenas na cidade de São Paulo, mais de 60% das unidades básicas de saúde já são prestadas via contratos de gestão. Há muito o que caminhar pela frente. Talvez a educação seja o maior desafio que temos pela frente. O Brasil soube desenvolver modelos inovadores, como o ProUni, no ensino superior, mas ainda pouco evoluiu no que diz respeito ao ensino básico. Dias atrás o Congresso aprovou, pela primeira vez, a possibilidade de parcerias de gestão com instituições filantrópicas no ensino fundamental e médio. São boas notícias no final de um ano difícil. E um chamado à responsabilidade que temos com a construção de um País mais justo para todos. Escrito em conjunto com Regina Esteves Publicado originalmente na Revista Exame, em dezembro de 2020