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A democracia aprendiz

Desde o início do governo, e mesmo antes, escutamos que nossa democracia está por um fio, que estamos muito perto do abismo, que andamos, a cada duas ou três semanas, na iminência de um “golpe”. Nos últimos tempos tivemos o golpe do General Braga Neto, que teria ameaçado o presidente do Congresso (ambos negaram); o golpe do desfile de tanques, em Brasília, que terminou no impagável fumacê. E, claro, o 7 de setembro, com direito a toneladas de anúncios de invasão do Congresso ou de um novo 64. No dia seguinte, a sensacional explicação: “o golpe fracassou”. Bom humor à parte, a democracia supõe um estado permanente de atenção. Isto vale especialmente para Bolsonaro, que nunca escondeu seu gosto pelo regime autoritário e sua quase veneração por tipos como o Coronel Brilhante Ustra. É razoável supor que se ele pudesse entrar em um túnel do tempo e se transformar no Presidente Médici, nos anos 70, ele o faria com gosto. O problema é que ele não pode. Daí seu repertório de bravatas e ameaças vazias. Não acatar determinações do Supremo, não aceitar eleições sem o voto impresso, e por aí vai. E a mais curiosa, que alguém sugeriu lembrar o velho Getúlio: “daqui só saio morto”. Na sequência da fanfarronice, os sucessivos recuos. Sendo o último o mais espetacular. A “carta à nação”, explicando seus arroubos como “calor do momento”, dois dias depois daquela fala desastrosa na Avenida Paulista. O episódio é ilustrativo. O presidente diz algo fora de propósito e é logo enquadrado pela reação das instituições. Formais e informais. A opinião pública, redes e organizações da sociedade, partidos e lideranças no Congresso. E a linha dura: os pronunciamentos dos Ministros Fux, do STF, e Luís Fernando Barroso, do TSE, seguidos pela ação moderadora do ex-Presidente Temer. Tudo isto sinaliza resiliência democrática. E não é de hoje. Nos processos de impeachment de 1992 e 2016 já foi assim. O País vem mostrando, como li tempos atrás de um teórico da “crise da democracia”, que “seu arcabouço institucional é mais robusto do que havíamos imaginado”. Isto vem do pacto democrático dos anos 80 e da Constituição. Ela nos legou um modelo disfuncional de gestão pública, mas soube fortalecer instituições de Estado, em especial do mundo jurídico, e consolidou um sistema sofisticado de freios e contrapesos. Nosso modelo de coalisões majoritários, como enfatiza o cientista político Carlos Pereira, tem se mostrado inclusivo das elites políticas, e nossa Suprema Corte vem atuando como real poder de contenção e moderação do Executivo. Um dos efeitos da consolidação democrática foi a crescente organização da sociedade civil. Eram poucos os grupos de advocacy, à época da transição. Hoje há um tecido social estruturado, potencializado pelas redes de cidadãos na internet. O País desenvolveu uma tradição de grandes manifestações de rua, em regra pacíficas, desde as manifestações de 2013. Além disso, há um fator essencial: o apoio difuso na sociedade. Pesquisa recente do Datafolha mostrou que 75% das pessoas apoiam a democracia como “melhor forma de governo”. Maior suporte desde o início da série, em 1989. É igualmente interessante observar o retrospecto histórico. Adam Przeworski observou que “nenhuma democracia ruiu em países com renda per capita superior à da Argentina em 1976, com exceção da Tailândia em 2006”. Maior a renda média, maior a chance de sobrevivência democrática, e é fácil observar como somos diferentes hoje do que eramos em 64. O argumento mais forte de Przeworski, porém, diz respeito ao processo de “auto institucionalização” das democracias. Pesquisando mais de três mil processos eleitorais, desde o final do século XVIII, ele observou como o sistema democrático se reforça a si mesmo. A cada alternância pacífica de poder, vai se consolidando o processo, e que as chances de ruína democrática, “tendem a zero a partir de seis alternâncias”. Ano que vem teremos nossa nona eleição, desde 1989. Todas pacíficas, feitas com lisura e com direito a passagem de faixa, como manda o figurino. Se Bolsonaro perder e não quiser passar a faixa, como um dia insinuou, apenas repetirá o que fez o ex-Presidente Figueiredo. Sairá pela porta dos fundos. O fato é que fomos internalizando os procedimentos da democracia. Já sabemos como fazer. A cada novo ciclo, com suas dores e dramas, nos tornamos mais reativos a qualquer cheiro de virada de mesa. Há outro aspecto a considerar. Jogar “fora das quatro linhas” demandaria o ingresso dos militares em um tipo de aventura autoritária inteiramente estranha ao que as Forças Armadas vêm construindo. “Os militares não darão apoio a qualquer desvio constitucional”, diz Raul Jungmann, ex-Ministro da Defesa. Ele faz uma distinção entre os militares mais antigos, hoje na reserva, talhados na cultura da guerra fria, e os militares hoje no comando. Esta nova geração concebe a atividade militar como essencialmente profissional. “A cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores”, diz Jungmann, “pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia”. É evidente que há riscos. O mundo digital incentiva a radicalização, a guerra cultural envenenou o debate e há os novos populismos eletrônicos. Nossas democracias podem preservar a competitividade eleitoral e ao mesmo tempo andar ladeira abaixo em sua vida institucional. Sintoma disso, no Brasil, foi o uso generalizado, nos últimos tempos, da Lei de Segurança Nacional. A primeira lição a tirar disso é estar em alerta. Outra é a isenção: a democracia demanda um olhar dirigido a todos os lados do jogo. De nada vale o olhar seletivo. São inaceitáveis as falas do Presidente, relativizando o respeito a regras do jogo, assim como a censura prévia e as restrições indevidas à liberdade de expressão. Por fim, é preciso senso de proporção: não confundir, à direita ou à esquerda, a divergência quanto a políticas públicas com identificação de riscos à democracia. O tema da democracia não deve ser instrumentalizado como arma da guerra política. Seu debate não deve se tornar, ele mesmo, fonte permanente de toxina ideológica obstruindo o debate sereno dos problemas do País. A defesa da democracia supõe fidelidade a princípios,

O que vamos aprender disso tudo?

Lucas tem 17 anos e foi trabalhar, leio em uma reportagem. Cursava o último ano do fundamental e largou. Foi no ano passado, em meio à pandemia. A internet em casa não era das melhores para fazer as tarefas da escola e a situação econômica apertou. Quem sabe um dia volta em algum supletivo. Lucas não é exceção. A evasão escolar sempre foi alta, no Brasil. Um estudo do INEP mostrou que (entre 2010 e 2016) apenas 49,3% dos alunos e 61,3% das alunas do sexto ano do fundamental concluiram, no tempo certo, o ensino médio. A pandemia irá piorar isto e ampliar ainda mais o gap de gênero. A Unicef mostrou que o Brasil é um dos cinco países que mais permaneceu com escolas fechadas. Foram 191 dias entre março de 2020 e fevereiro de 2021, contra 52 dias na média europeia. São evidentes os danos que isto irá gerar. A “geração covid” terá um deficit de aprendizagem. Terá desvantagem quando for disputar espaços, no mercado. O Banco Mundial diz que o percentual de estudantes sem o conhecimento mínimo para ler adequadamente um texto irá de 55% para 77%, se as escolas fecharem por 13 meses. Exagero? Não creio. Há muitas questões aí. A primeira e mais inconveniente é sobre a real utilidade das medidas de fechamento. Estudo da Universidade de Zurique não mostrou alteração do ritmo da pandemia em 131 municípios paulistas que reabriram as escolas. Guilherme Lichand, coordenador da pesquisa, sugere que “é difícil para a população de menor renda ficar em casa”, e que “o ganho marginal de fechar escolas não supera o alto custo de deixar as crianças sem aulas” Há muitos estudos nesta direção. O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças apresentou uma ampla revisão de dados, concluindo que as escolas devem fechar apenas em última instância e que “o impacto negativo sobre a saúde física, mental e educacional das crianças, e o impacto econômico na sociedade, provavelmente superaria os benefícios”. O tema é difícil e é compreensível o receio dos professores. A reabertura, de todo modo, precisa ser feita com prudência, e a vacinação de professores deveria ser prioritária. Outro resultado da crise será o aumento da desigualdade. O estudo do Banco Mundial diz que irá a quase três anos letivos a diferença de aprendizagem entre os alunos de menor e maior renda. No Brasil, essa cisão equivale basicamente aos alunos que frequentam as redes públicas e privadas de ensino. Surge aí a pergunta: o que houve com o setor público? O argumento mais cruel que escuto por aí sugere que o problema são os próprios alunos. Dado que boa parte não possui um computador e boa internet, não haveria muito o que fazer. É um argumento confortável, que toma um dado óbvio da realidade brasileira e o transforma numa bela desculpa para nossa inércia. É evidente que a condição econômica pesa, e é exatamente para isto que existe o Estado. Para dar conta dessas carências e garantir o acesso ao ensino. Se não souber fazer isto, é preciso reconhecer e mudar a nossa maneira de gerir a educação. Daria para fazer diferente? O Peru, logo no início da pandemia, fez uma compra maciça de equipamentos para os alunos vulneráveis. No Brasil isto custaria R$ 3,9 bilhões, segundo dado do IPEA, percentual ínfimo do que foi gasto com a pandemia. Não fizemos, não nos antecipamos, não compramos, e agora não passa de desculpa fácil dizer que o problema é a condição social dos alunos. O que falta ao sistema é agilidade e senso de urgência. Na tomada de decisão, na compra de equipamentos, no treinamento dos professores para adaptação ao ensino remoto, para oferecer aulas híbridas, com uma parte dos alunos em casa, outra na escola. Tudo que o setor privado fez não por generosidade, mas pelo risco dos pais irem bater na porta da escola concorrente. A conta, como de hábito, será paga pelos alunos e famílias que não têm outra porta para bater, que dependem do monopólio do Estado, e sequer têm poder para fazer pressão no sistema político. Meu colega Naercio Menezes sugeriu uma medida audaciosa: colocar os alunos para cursarem dois anos em um. Dobrar o uso das escolas, se for preciso, de modo a recuperar o máximo do prejuízo educacional. “Acho possível fazer”, diz ele, “mas conhecendo o Brasil, acho difícil que aconteça”. Também acho. Mas se ao menos pudermos aprender um pouco com este strip-tease feito pelo nosso sistema educacional, já será alguma coisa Fernando Schuler é Cientista Político e Professor do Insper Publicado originalmente na Folha de São Paulo

Por que não o voto distrital?

Fazia um bom tempo que não se falava sobre reforma política em Brasília. Por estes dias voltou-se a falar. Arthur Lira criou um grupo de trabalho para reformar as regras eleitorais e temas mais amplos entraram na pauta, como a revisão da cláusula de desempenho e da vedação a coligações nas eleições proporcionais. A notícia preocupa. O país fez uma minirreforma eleitoral em 2017, proibindo coligação nas proporcionais e instituindo uma cláusula de barreira progressiva. Começou no ano passado, no pleito municipal.Nas eleições nacionais, há a exigência de 1,5% dos votos válidos ou nove deputados eleitos em um mínimo de nove estados e vai até 2030, com a exigência de um mínimo de 3% dos votos ou 15 eleitos. A pergunta que surge: há algo que justifique interromper o processo no meio do caminho? Alguma coisa deu errado ou é só a reclamação dos partidos que não cumpriram as exigências da cláusula ou estão com medo de não cumprir? O fato é que as medidas da minirreforma vêm dando certo. Diria que é uma das raras reformas institucionais que o país conseguiu fazer, nos últimos anos, com resultados inequivocamente positivos. Nove dos 30 partidos que elegeram deputados em 2018 não cumpriram a cláusula e perderam o acesso ao fundo partidário e ao tempo de televisão. O deputado federal Arthur Lira (PP-AL) durante discurso na Câmara na votação da reforma da Previdência; líder do centrão é hoje candidato à presidência da Câmara Luis Macedo – Algum problema nisso? Na minha visão, nenhum. Nos 15 anos após as eleições de 1998, nossa fragmentação partidária cresceu 62%. Entre 1986 e 2018, fomos de 12 para 30 partidos na Câmara. Nos tornamos o país com a maior fragmentação partidária do planeta. Resultado? Mais dificuldade de formação de consensos e tomada de decisão no Congresso. Nos dois governos de FHC, os quatro maiores partidos da Câmara formavam quórum para aprovar emendas à constituição (310 e 347, em cada mandato); no governo Bolsonaro, os quatro maiores partidos somam 187 deputados, muito abaixo da maioria requerida para projetos de lei. Se a fragmentação partidária expressasse diversidade de visões programáticas em um país continental e complexo, como o Brasil, haveria ali alguma virtude. Não é o caso. Nosso festival de siglas, com honrosas exceções, é uma resposta artificial aos incentivos do próprio sistema (fundos, tempo de TV e etc.) e se mostra como um conjunto vazio de ideias. Outro sinal positivo da minirreforma de 2017 veio com as recentes eleições municipais. Nas cidades com até 20 mil habitantes (mais de dois terços dos municípios), o número efetivo de partidos nas Câmaras de vereadores caiu de 5,1 para 3,5. O mesmo não ocorreu nas cidades grandes, ainda que se tenha estancado o aumento da fragmentação. E casos extremos ainda se verificam, como na Câmara de Vitória, onde 13 partidos ocupam as 15 cadeiras do Legislativo municipal. A melhor solução para esse problema viria de uma ideia discutida há muito: a migração do sistema eleitoral para o modelo distrital misto. O sistema cria um claro incentivo à aglutinação partidária ao tornar majoritária a escolha de parte das vagas ao Parlamento. Ele facilita a comparação de programas e focaliza a representação parlamentar, fazendo com que a comunidade saiba quem a representa e vice-versa. De quebra, reduz custos de campanha e a influência do dinheiro nas eleições. Arthur Lira faria história se levasse à frente essa ideia, em vez de fazer o país olhar pelo o retrovisor. Como inspiração, poderia prestar atenção à reforma feita pela Nova Zelândia, no inicio dos anos 1990, em que um conjunto de modelos eleitorais, definidos pelo Parlamento, foram submetidos a plebiscito. Isso permitiu um amplo debate nacional sobre a qualidade da representação política e sua repactuação. Vamos lembrar que nossa fórmula republicana e presidencialista foi objeto de consulta direta, em 1993, mas não o sistema eleitoral. Há mecanismos na Constituição que facultam essa opção, e talvez tenha chegado a hora de pensar sobre isto. De qualquer modo, fica o alerta. O maior erro seria jogarmos pela janela os avanços que tivemos com a minirreforma. Se for para mudar, o melhor é andar para frente, não para trás. Fernando L. Schuler é cientista político e professor do Insper Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo

E aí, vale pra todo mundo?

A lei de segurança nacional voltou a ser pop. Foram 77 processos em 2019 e 2020, contra 44 nos quatro anos anteriores. Ela vem chancelada pelo Supremo, que ao utilizá-la dá a senha de que a vê como compatível com a Constituição. Mas é a reação das pessoas ao seu uso que revela muito sobre o que nos tornamos. A lei vem sendo usada por diferentes lados do mundo político. Pelo executivo, pelo Supremo e mesmo pelo Congresso. Deste último foi, aliás, seu uso mais patético (se é possível classificar isto), naquela tentativa de enquadrar o perigoso humorista Danilo Gentili por um tuite “convocando” o povo brasileiro para “socar os deputados”. A Câmara caracterizou o tuite como “grave ameaça ao livre exercício do Congresso Nacional”. Aparentemente estavam errados, visto que ninguém atendeu à convocação de nosso humorista revolucionário. Mas enfim, pela lógica da máxima birutice nacional (ou quem sabe de um país que perdeu o senso de humor), ele deveria ser preso, não? O executivo também entrou de cabeça. A Lei passou a ser usada como um forma de intimidação. Um caso curioso foi o do advogado Marcelo Feller, acusado de “expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do Presidente”, nos termos da LSN, por ter chamado Bolsonaro de genocida, na TV. Lendo a papelada do processo, impressiona, à parte o gesto autoritário, a incrível perda de tempo (e dinheiro do contribuinte). Dias depois, o caso foi encerrado pela juíza Pollyanna Maciel, que não identificou crime nenhum ali e disse algo essencial para este debate: que a lei só deve servir para “casos extremos”, que tenham possam “verdadeiramente atingir” a segurança do Estado. E deu por resolvida a questão. Se estes casos envolvendo os críticos do Presidente, em geral, não têm prosperado, o mesmo não se dá nos que atingem o outro lado do jogo. Os casos são conhecidos. Derivam, em geral, dos inquéritos das Fake News e dos “atos antidemocráticos”, conduzidos pelo Supremo. São inúmeros casos. Um deles envolveu um jovem negro de Salvador, o “mito show”, dançarino popularesco que costumava animar as passeatas bolsonaristas com uma coreografia típica do carnaval baiano. Um dia resolveu ir para Brasília, com uma mão na frente e outra atrás, e berrar contra o Supremo. Foi em cana, e até hoje tenta se virar por aí com uma tornozelera eletrônica. Caso mais notório é o de Oswaldo Eustáquio, preso por meses. Em geral, ele é apresentado como “blogueiro bolsonarista” e isto parece resolver a questão. É óbvio que não resolve. Recentemente, a Polícia Federal disse num relatório não ter encontrado elementos contra os acusados no inquérito em que foi arrolado. Ler sobre estes casos todos nos dá o retrato de um País doente e intolerante. São basicamente delitos de opinião, frutos da raiva política. Xingamentos, ameaças, discursos de ódio e palavrões. É isto. Nos tornamos uma espécie de democracia do palavrão. O que mais chama a atenção é a seletividade das pessoas sobre o tema. É como se houvesse palavrões “autorizados”, e mesmo virtuosos, e palavrões marginais. Quem tem a hegemonia cultural define estas coisas. O mesmo vale para o uso da LSN. Com honrosas exceções, quando ela é usada do lado A do espectro político, o lado B vibra. E vice-versa. O fato é que o debate em torno do tema diz muito sobre a fragilidade de nossa cultura democrática, à direita e à esquerda. O uso de uma lei do arbítrio como ferramenta de guerra política, nos tempos atuais, é apenas um sintoma. E talvez a triste conclusão, no fim deste debate todo, é que as pessoas no fundo gostam de um instrumento como a LSN, desde que sempre usada para o lado “certo”. De minha parte, faria o que sugeriu a pesquisadora Clarissa Gross, da FGV, dizendo que não cabe ao Estado punir o simples uso da palavra, mesmo se uma ameaça. “Ela tem que ser crível”. Nas agressões ao STF, demandaria “indícios de que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas” impedindo o trabalho da Corte. Respeitado este critério, a maioria dos atuais usos da Lei cairiam no vácuo. A solução óbvia seria a aprovação no Congresso de uma nova lei, adaptada aos tempos democráticos. O ponto é que não existe o mínimo consenso no País sobre o tema. O mais provável é que o Supremo decida a parada, a curto prazo, e ficam as perguntas: a lei será clara? vai valer pra todo mundo? teremos um Estado que trate a todos com igualdade? Estamos muito longe do consenso mínimo que Países como os Estados Unidos construíram em torno da Primeira Emenda, ou como a Alemanha, em torno da nova legislação combatendo o discurso de ódio na internet (NetzDG). Enquanto isto não ocorre, vamos nos arrastando (para o deleite do general Figueiredo, onde estiver), com a velha e rasgada Lei de Segurança Nacional. Fernando L Schüler é cientista político e professor do Insper (Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo)

A liberdade de expressão se tornou uma ideia inconveniente?

Sempre fui fascinado pela ideia do “livre mercado de ideias”. Ela nasceu muito antes, mas foi consagrada por Oliver Holmes. Além de juiz da Suprema Corte Americana, Holmes era um pensador cético. O melhor era colocar as ideias para competir, em um ambiente aberto, sabendo que lidamos com um mundo de informação imperfeita. É dele a definição de que só deveriam ser interditados discursos que representassem perigo “claro e real”. Com o tempo estas palavras foram sendo melhor compreendidas. O perigo deveria ser “imediato”, e também era preciso separar um risco real de um punhado de bravatas e conversa fiada. Pra que tudo isso? Pra que tanta delicadeza? Ao invés de proteger, não seria melhor “higienizar” o mundo de tanta porcaria informacional que circula por aí? Vem daí a longa e difícil tradição moderna da liberdade de expressão. Difícil porque se baseia em uma ideia contra-intuitiva: o progresso do conhecimento não depende do erro ou acerto desta ou daquela ideia, mas da preservação de um conjunto de princípios. Uma das melhores representações que vi disso foi em um filme de Milos Formam, O Povo contra Larry Flynt. Acusado de pornografia, Flynt era um tipo difícil de defender. A um dado momento ele vira o jogo. Reconhece que é o pior dos americanos, e que se a Constituição protegesse “um canalha como eu, então protegerá todos vocês”. Há alguns pressupostos nesta tradição. O primeiro deles é que somos falíveis. Julgamos o mundo de dentro do próprio mundo. Não somos isentos. Cada um pode parar e pensar por um instante pra saber se isto é verdade. Outro diz que em algum momento os deuses estilhaçaram a verdade, e agora ela anda espalhada por aí, de modo que mesmo teses muito ruins podem conter uma informação relevante, que ajude a nos aproximar ainda mais um pouco do caminho da verdade Estes argumentos são há muito conhecidos. John Stuart Mill foi seu mestre. O acerto se alimenta do erro, dizia ele, e suprimi-lo será sempre uma perda: sendo certa a opinião, perdemos a chance de trocar o erro pela verdade; sendo errada, “perdemos a percepção mais vívida da verdade, produzida pela sua colisão com o erro”. Talvez tudo isto seja uma ilusão. A grande tradição moderna do livre pensamento pode ter sido um equívoco e precisa agora ser “ajustada”. Tenho escutado coisas do tipo, e a razão seria a internet. Ela teria dado espaço demais ao fake e ao ódio, e pessoas do lado do bem e da verdade simplesmente não podem ficar de braços cruzados. Parece um pouco estranho, mas é o que sugerem, em geral sem muita explicação sobre o que fazer, livros como “The Misinformation Age”, de Cailin O’Connor e James Weatherall. A solução passaria não apenas por penalizar a distribuição intencional de fake News, como produzir uma ainda mais necessária “reengenharia nas instituições básicas da democracia”. Não me atrevo a pensar o que exatamente caberia nesta “reengenharia” da democracia. Pensei nos banimentos da internet, nos cancelamentos, na volta da censura prévia, e até na ressureição recente de nossa lei de segurança nacional. Mas achei tudo muito pequeno. Imagino que uma reengenharia da democracia seja algo mais elegante. O fato inequívoco é que a liberdade de expressão se tornou um tema inconveniente. Há alguns anos atrás promovíamos debates sobre o assunto e o consenso era quase tedioso. “É preciso estar sempre atento”, costumava-se dizer, para que ninguém roube este “bem precioso que conquistamos a tão duras penas”. Hoje em dia escreve-se sem cerimônia que é preciso banir a “má informação”. As palavras variam, mas o sentido é sempre o mesmo: nós, que sabemos a verdade “para além da dúvida razoável”, precisamos de meios para calar estes imbecis. Como se fará isto? Ninguém parece saber direito. Uma hipótese seria entregar a tarefa às redes sociais, desde que não apareçam novas redes controlados por gente do lado errado. Outra hipótese seria o “controle social”, via algum comitê ou algo ao estilo do inquérito das fake news, mas de caráter permanente, fazendo a curadoria do País. Há muitas possibilidades. De minha parte, prefiro manter algum ceticismo. Intuo que nossas democracias tenham sabido, a duras penas, criar as instituições que asseguram a liberdade de pensamento. Ainda que a cultura que lhe dá suporte pareça viver, permanentemente, a sua infância. (publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo). Fernando L. Schuler é cientista político e professor do Insper

Rawls em tempo de barricadas

Imagine o seguinte: você é convidado a decidir sobre os princípios que irão organizar a sociedade. Direitos, liberdades, igualdade, o que for. Você tem ampla informação sobre economia e as motivações humanas. Só não sabe quem você é. Não sabe se é homem ou mulher, rico ou pobre, religioso ou ateu. Se é um jogador audacioso, como Elon Musk, ou alguém avesso ao risco. Nestas condições, que tipo de princípios de justiça você escolheria? Este desafio atiçou a imaginação de gerações de estudantes de filosofia e politica, no último meio século. John Rawls o chamou de escolha sob o véu da ignorância. Foi um dos pontos de partida de sua obra monumental, “Uma Teoria da Justiça”, lançada nos inícios de 1971, e que por estes dias completa seu cinquentenário. A resposta dada por Rawls tornou-se ponto de referência para o debate liberal. Ele diz que, naquelas condições de incerteza, trataríamos primeiro de assegurar liberdades básicas para todos. Em segundo lugar, uma base de oportunidades iguais para cada um. E por fim, admitiríamos desigualdades econômicas, desde que elas produzissem maiores vantagens aos grupos sociais menos favorecidos, ao longo do tempo. Rawls formulou sua tese em um mundo muito diferente do nosso. Eram os anos 60, época dos direitos civis e da “grande sociedade”, de Lyndon Johnson. Os anos pós-Rawls foram marcados pela explosão da riqueza em um mundo globalizado, pela integração planetária produzida pela internet, pelo redução da pobreza global, ainda que às custas da explosão da desigualdade em muitas regiões do mundo. A pergunta óbvia: sua teoria prossegue válida, nos tempos atuais? Muita gente acha que não. “Vivemos em um mundo de barricadas”, dizia um interlocutor cético, para que a ideia de um consenso liberal em torno de normas de justiça não é mais que uma quimera. Para muitos, como Charles Mills, professor da Universidade de Nova Iorque e autor de “O contrato racial”, é simplesmente “bizarra” a idealização gentil da “sociedade como empreendimento cooperativo para benefício mútuo”. Espécie de “ignorância branca” sobre um mundo feito de exclusões e exige soluções bastante mais radicais. Há quem sustente o contrário. Que o argumento de Rawls permanece mais vivo do que nunca. Por muitas razões. Uma delas define sua teoria como um convite à humildade. Em um mundo marcado pelas cisões de identidades e pela guerra cultural, é ainda mais atual uma visão que nos lembra sobre os limites do contrato político. Vai aí a primeira grande lição de Rawls: somos uma sociedade irremediavelmente cindida por um conflito ético, em sentido amplo, e neste terreno simplesmente não há acordo possível. Temas envolvendo religião e crenças morais arraigadas sobre sexualidade ou o sentido da família. Muitos deles nos dividem hoje mais do que há trinta anos, e surgem no espaço público com velocidade e intensidade inéditas. Eles não serão objeto de consenso algum visto que somos uma grande sociedade aberta, não uma comunidade. O acordo possível se dá no terreno da política. E neste sentido o experimento de “desenraizamento” que ele nos propõe, ainda que difícil e por vezes irritante, permanece perfeitamente válido. Uma segunda lição de Rawls diz respeito à justiça econômica. Seu ponto é defender o que chama de “principio da diferença”. Um trade-off: aceita-se a desigualdade econômica, dentro de certos parâmetros, desde que todos os botes subam com a maré. Isto é: o arranjo escolhido deve ser o melhor, dentre as alternativas viáveis, para os menos favorecidos. Aqui é preciso evitar alguns equívocos de interpretação. Li em um artigo recente que Rawls aceitaria alguma “recompensa extra aos superprodutivos”, mas vetaria coisas como um contrato milionário de Lionel Messi (fiquei imaginando o que dizer da fortuna de Jeff Bezos e outros tantos). Completo equívoco. Sua teoria não diz respeito a esta ou aquela transação econômica. Não importa o salário deste ou daquele jogador, ou a rentabilidade de uma empresa, desde que o arranjo econômico, isto é, as instituições atendam ao critério ético. Rawls chegou a dizer que gostaria de ver seu princípio da diferença como um preâmbulo da Constituição. Um fim civilizatório, que diz respeito à continua abertura de oportunidades aos desfavorecidos pelas circunstâncias sociais, e não uma teoria mesquinha sobre o quanto cada um pode ganhar. A justiça, dizia ele, não exige conformidade à qualquer “padrão observável” de igualdade. Ou grau de desigualdade que possa ser medido “a partir de um certo intervalo do coeficiente de Gini”. Não acho que uma teoria pedindo que nos abstenhamos, por um momento, de julgar o mundo com base no “principio da inveja”, e que solicite respeito a um amplo leque de visões de mundo, opostas e não raro excludentes entre si,  possa ser particularmente popular em um mundo conflagrado como o nosso. Somos de um tempo muito pouco rawlsiano, neste sentido. O que me parece certo é que sua teoria prosseguira sendo lida e discutida mesmo quando nossos rancores e desavenças já fizerem, há muito, parte do passado. Fernando L. Schüler é Cientista Político e Professor do Insper (publicado, resumidamente, na Folha de SP, em fevereiro de 2021)

Os curadores do mundo

Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa “ágora digital”. Ainda lembro do projeto Gwan, que conheci nos anos 90, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro gótico. A ideia era forjar uma música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000. A ideia me pareceu muito boa. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da “sociedade civil mundial”. Era isto que embalava aquela turma esquisita, nas madrugadas frias de Barcelona, no  sótão empoeirado e forrado de computadores. Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas logo ali adiante as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal. Elas funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e suas regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí o diálogo aberto e a aproximação dos divergentes. O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas. Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinaliza a recente onda de “etiquetagem” e supressão de postagens, restrição de compartilhamento de mensagens (sendo exemplar o caso das notícias envolvendo Hunter Biden) e finalmente os desligamentos de usuários, pura e simplesmente. Tudo envolvendo evidentes juízos políticos, com os quais se pode ou não concordar. Não é o ponto aqui. As redes agem assim porque podem. São empresas privadas, suas regras vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e “bom senso”, e que censurar estas ou aquelas contas, e não aquelas outras, terminaria sempre sendo o melhor para a civilização e para democracia. Não sei porque (talvez seja a idade), me tornei cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a “verdade” e a infalibilidade de seus juízes. É o sentido da frase desconfiada da Chanceler Ângela Merkel, dizendo “problemático” o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um “bem fundamental”, a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas. É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase-monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. À longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo. Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século XVII. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, “os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo”. Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas. A ideia das “ágoras universais” vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso. A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no ziguezague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas, nem o seu direito de pensar com a própria cabeça. Fernando Schüler é Cientista Político e professor do Insper (originalmente publicado na Folha de São Paulo, 13.01,21)

A sociedade dos militantes

Goste ou não de Bari Weiss, vale à pena ler sua entrevista a Folha, dias atrás. É bom escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos dançam a Macarena (já me aconteceu). Sua história é conhecida. Ela foi contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de pensamento hegemônica da redação, e terminou caindo fora pelo mesmo motivo. A redação do The Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a responder a um agenda política. E o fez a partir da cisão que marcou a imprensa americana nos anos recentes, entre a gente bacana e esclarecida, “cujo trabalho é informar os outros” e os caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald Trump. Daí aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o “diabo laranja”. Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado e avesso às “ideias inconvenientes”. Foi o caso do editor James Bennet, banido por publicar um artigo controverso do senador Tom Cotton. O editor provavelmente discordasse do Senador, mas acreditava “dever aos leitores a exposição de contra-argumentos”. Ingenuidade dele. Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha. O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em uma coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes sociais. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré. Intuo que se trata de um caminho sem volta. O Twitter se tornou bem mais do que o “editor último” do The Times, como diz Weiss em sua carta-renúncia. Se tornou, junto com as redes, o editor do debate público, e o faz de modo anárquico, numa constante guerra civil em que cada um imagina ganhar, a cada momento, e todos perdem, ao longo do tempo. Weis diz que nos tornamos um grande campus, ou um grande departamento de estudos de gênero. Prefiro outra formulação: nos tornamos uma sociedade de militantes. Nas redes, nas universidades, no jornalismo e, mais recentemente, na vida das empresas e hábitos de consumo. É evidente que muita gente se mantém serena em meio à tempestade, para o horror das hordas de qualquer lado. Mas o espírito do tempo é outro. É o “espírito de partido”, como disse Madame de Stäel sobre o clima intelectual francês à época da revolução, e de quem me lembrei por estes dias. O ponto é que isto não irá mudar. Nos anos trinta do século passado, Ortega y Gasset vaticinou que o homem-massa havia ingressado de vez na cultura. Cem anos depois, graças à internet, quem domina o palco é o cidadão-pregador, o cidadão-dedo-em-riste. Seu destino ainda é incerto. Ele pode conduzir mudanças positivas, mas pode também agir como uma nuvem de Black Mirror. É positivo que as pessoas façam promessas de fim de ano e apostem que a pandemia vai mudar as coisas e que voltaremos a agir com mais empatia e sentido de comunidade. Quem sabe a esperança de Gabeira, a quem sempre leio, apostando que a politica, depois de nos ter afastado, possa novamente nos aproximar. Ele lembra que já fomos mais gentis uns com os outros, mesmo divergindo, como na época das diretas. Minha hipótese é que a política continuará a nos separar. A lógica da tribo, da reação imediata e baixa empatia veio pra ficar. Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados. Nossa melhor chance é fugir da querela política. Sugiro experimentar algo nessa linha nos encontros deste verão. Fugir da postura do sujeito que um dia me disse que iria “perdoar” seu irmão por apoiar o político que ele detestava. Presunção tola. Vale muito mais um abraço e a descoberta de coisas interessantes que todos temos em comum. E elas não são poucas, podem acreditar. Fernando Luis Schüler é Professor do Insper (artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 31/12/20)

Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?

Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”. Observe-se como mesmo um político moderado como Biden tropeça. Se um lado, ele “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado? Torço para que sido apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América”, como ele gosta de dizer, do diálogo de surdos em que se transformou aquela grande democracia. Vamos finalmente testar a tese, que canso de ouvir por ai, de que é fundamentalmente o exemplo de cima que define a qualidade do debate público. Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo. Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso. Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade. Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. Vai aí a dicotomia “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda). Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público determinada, em boa medida, pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia. Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate. Temas de identidade migraram para o centro do debate político, o mesmo ocorrendo com a defesa da tradição e crítica do politicamente correto, na direção contrária. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional. Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família. Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho. John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural. Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política. Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia. Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Escolher a escola dos filhos deveria ser um direito, não um privilégio

De toda minha experiência com debates sobre o Brasil, não há nada que mais irrite a elite brasileira do que a simples ideia de assegurar que as famílias mais pobres possam escolher a escola dos filhos. Ainda me lembro da primeira vez em que sugeri isso, anos atrás. Era um desses eventos bacanas focado no “gap” social brasileiro. Na saída, uma senhora elegante me perguntou, pensativa: então quer dizer que os mais pobres vão estudar no Colégio do Rosário? “Sim”, respondi, ao que ela me retrucou: “E irão também nas festas de 15 anos?”. Ela preparava a festa de 15 anos da filha e parecia preocupada com aquilo. Não era apenas a questão de receber a mesma educação. O problema era a invasão de um mundo social que ela via como devidamente “protegido”. Na sua visão, era óbvio que os mais pobres tinham o direito à educação, mas no “lugar certo”, isto é, nas redes estatais. Não importava muito a desigualdade nem a supressão do direito de escolha para quem não tinha dinheiro para pagar uma mensalidade. As coisas eram assim porque sempre haviam sido. Me lembrei disso quando li, aqui na Folha, que há apenas 10% de alunos negros nas escolas particulares de São Paulo. A reportagem diz que “a qualidade das escolas privadas supera a das escolas públicas” e sugere que seria bom que mais alunos negros e menos favorecidos pudessem estudar lá. Também acho. O texto sugere que a solução poderia estar na oferta de bolsas pelas próprias escolas. Seria ótimo, mas obviamente não é uma solução com escala. O Estado deveria garantir isso. Foi com esta visão que o ativista de direitos civis Howard Fuller, no início dos anos 1990, a partir de uma demanda por inclusão educacional de famílias negras, criou o primeiro programa americano de bolsas em larga escala. Hoje há 64 programas desse tipo nos Estados Unidos. Bem desenhados, eles geram oportunidades reais de integração para alunos menos favorecidos. Não se trata de substituir o sistema tradicional de ensino. Trata-se de produzir diversidade, trabalhar em escala experimental e comparar os resultados com diferentes modelos. Tudo que nos recusamos a fazer no Brasil. Por aqui, ao mesmo tempo que nos indignamos com o fato de haver tão poucos alunos negros na rede particular, não fazemos nada. Apelamos à uma vaga filantropia privada enquanto fixamos de vez o monopólio estatal do ensino público, como vemos agora na tramitação do novo Fundeb. É interessante que o Brasil já possui uma boa experiência nesta área com um programa criado pelo governo Lula: o Prouni. Talvez seja o maior programa de bolsas e liberdade de escolha educacional do mundo. Mesmo assim, é curioso que nosso establishment continue dizendo que coisas assim não têm como funcionar. Ainda este ano participei de um debate sobre o tema e um “especialista” foi taxativo: os mais pobres não teriam condições de “analisar indicadores e fazer escolhas”. Minha visão de mundo era tão distante daquilo que encerrei a conversa. Fiquei pensando se aquela pessoa realmente acha que o governo tem feito boas escolhas em nome das famílias mais pobres, na educação, ou se era apenas o velho preconceito segundo o qual alguém só aprende a tomar decisões a partir de um certo padrão de renda. Vamos lá. É difícil levar a sério a ideia de reduzir desigualdades e manter, a ferro e fogo, o hiato educacional brasileiro. Sem permitir, em algum momento, que alunos negros e brancos, de maior ou menor renda, compartilhem não apenas as mesmas escolas, mas também de um universo social comum. A reportagem da Folha traz o depoimento de Lucas Rodrigues, que ganhou uma bolsa no Colégio Bandeirantes. Ele fala do choque de trajetórias sociais, mas diz que “é positivo. Descobrimos que todos vivemos em bolhas e aprendemos a desfazer preconceitos”. No fundo, todos sabemos disso, mas permanecemos na mais perfeita inércia. Nos especializamos em retórica bacana para garantir que o direito de escolha educacional continue sendo, como tantos direitos neste país, um privilégio de poucos. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (Originalmente publicado na Folha de SP, em outubro de 2020)