Pode Zoar todo mundo, mas a regra vale para todos

Elena Landau disse algo interessante,em uma entrevista recente. Não dá pra ser um liberal pela metade. Isto é, defender a liberdade econômica, mas ser avesso às liberdades no terreno da cultura e dos costumes. Acho que a Elena quis dizer o seguinte: no plano pessoal, você pode professar a religião que quiser e escolher o tipo de vida que deseja levar, desde que isto não danifique a liberdade dos outros. O que você não pode é usar a força ou recorrer ao Estado para promover suas crenças, sejam elas ligadas ou não à religião. Não é pouca coisa. Ronald Dworkin escreveu um belo texto, fruto de uma conferência dada no Metropolitan Museum, em Nova Iorque, em que se pergunta se um Estado liberal pode apoiar as artes. Sua resposta é sim, mas com uma condição: apoiar de um modo geral, sem tomar partido por esta ou aquela corrente estética ou visão de mundo. A Lei Rouanet sempre pretendeu agir desse modo, e não sei se sempre conseguiu. De qualquer maneira recomendo a leitura do texto de Dworkin para o pessoal que lida com cultura, hoje no país. Essas coisas vão longe. Um estado liberal deveria impedir a ideologização de livros didáticos, deveria proibir o governo de fazer propaganda de si mesmo ou de seus projetos com dinheiro público, deveria se abster de comandar emissoras de comunicação ou escolher a escola em que os pais devem matricular os filhos. E não deveríamos ser obrigados a votar. A lista é longa, e é certo que estamos muito longe disso, aqui pelos trópicos. Este tema emergiu com força, no Brasil, com a polêmica envolvendo o filme de final de ano do Porta dos Fundos, com o Jesus gay. Afora toda a conversa fiada em torno do filme, que no final imagino lhe ter dado ótima publicidade, a pergunta que ficou no ar é bastante direta: caberia ao Estado fazer alguma coisa para proibir o filme? Há algum delito sendo cometido ali? Fábio Porchat escreveu um artigo dizendo o seguinte: a lei divina vale para os indivíduos, não para o país. Cada um pode ter a sua própria lei divina. O sujeito pode, inclusive, proclamar a si mesmo como o autor da referida lei (está cheio por aí, em particular nas redes sociais), mas os outros tem direito de zoardo jeito que quiserem. Entendi que o limite que não pode ser ultrapassado é o da violência: pode esculachar, ridicularizar, mas não invadir terreiro, jogar coquetel molotov e coisas do tipo. O ponto é que, numa sociedade liberal, o critério deve valer para todos. Não dá pra fazer uma listinha e dizer: você pode zoar esses grupos, sejam regionais, étnicos, comportamentais, religiosos, o que for, e esses outros aqui, na coluna da esquerda, você não pode. Foi por essas razões que os americanos consagraram, ao longo do tempo, a Primeira Emenda à Constituição. O Congresso não criará leis restringindo a liberdade de expressão. Ponto. Imagino que seja um pouco isso que o Fábio queira dizer. Pode zoar todo mundo, sem problemas, só não pode chutar a santa. OBrasil anda muito longe disso tudo. E não apenas por um problema legal. A revolução digital fez explodir, no mundo da política, o fenômeno das guerras culturais. Passamos a imaginar que alguém, algum grupo de opinião, alguma vertente religiosa, ideológica ou estética vai ganhar o jogo e pautar a vida pública em uma grande sociedade plural, como a brasileira. Não vai. Essa é a boa notícia. A má notícia é que as pessoas continuarão tentando. A guerra cultural é uma dança sincronizada de pequenos donos da verdade, que se retroalimentam, e a grande ilusão é imaginar que eles pertencem a este ou aquele lado do espectro político. Sempre acho graça do sujeito que se apresenta como paladino da democracia, campeão da tolerância, da “compreensão do outro”, mas que não pisca o olho pra sair chamando de fascista, e daí para baixo, a quem diverge, mesmo que no detalhe, de sua pequena lei divina de todos os dias. Não sei se isso irá mudar, algum dia, ou é um fenômeno que veio para ficar, na democracia digital. De qualquer jeito, meu desejo para 2020 é o de um país com menos raiva, que vocifere menos e vá aprendendo devagarinho a rir um pouco mais de si mesmo. (Publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo, em jan 2020)
Deirdre

Deirdre McCloskey visita o Brasil, esta semana. Concorde-se ou não com suas ideias, é alguém que merece atenção. Ela é autora de uma trilogia monumental Bourgeois Virtues, sobre a formação do mundo moderno, e recentemente lançou “Why Liberalism Works”, com um bom resumo de suas visões, ainda sem tradução no Brasil. Não faço ideia do porque a palestra que daria na Petrobrás foi cancelada. O que é irrelevante, visto que todos, como sempre, já sabem de tudo, não é mesmo? Mas o episódio me dá uma boa pista sobre como começar explicando quem é a Sra. McCloskey. Em primeiro lugar, é uma liberal em tempo integral. Não brinca com essa história de separar a liberdade econômica das liberdades na cultura e nos costumes. O liberalismo nasce do direito de dizer “não”. Ponto. Seu vértice é a “igualdade de consideração e respeito.” Vem daí seu horror a qualquer forma de reacionarismo, à esquerda e à direita, e seu mau humor com o bolsonarismo. Em especial sua ideia de inflexionar políticas públicas para a “maioria cristã”, real ou imaginária. O liberalismo, na sua visão, não se situa em um algum ponto intermediário entre esquerda e direita. Socialistas e conservadores gostam do Estado, por diferentes razões. Liberais gostam do fluxo espontâneo da vida. Isso vale tanto para quem quer enquadrar aplicativos de transporte na CLT, padronizar as escolas ou dizer que tipo de arte vale e qual a estrutura “verdadeira” de uma família. Sua visão do mundo atual contrasta com o catastrofismo reinante em boa parte do universo intelectual. Em duzentos anos, diz ela, a renda média cresceu perto de 30 vezes, e a miséria foi virtualmente extinta, no mundo avançado. Nos anos recentes, o avanço migrou para o mundo em desenvolvimento. A igualdade cresceu entre os países. Entre o início dos anos 90 e 2015, segundo dados do Banco Mundial, caiu de 36% para 10% o número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, sendo a China a maior responsável por este resultado. É no acesso a bens essenciais para o bem estar, no entanto, que a qualidade de vida, e um sentido básico de igualdade, vem avançando mais rapidamente. O US Bureau of Labor Statistics mostrou que “em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com alimentação; contra apenas 13,2%, em 2002”. Os dados são amplamente conhecidos e deixam muita gente nervosa. Eles põe água fria na retórica de que estamos nos tornando uma enorme Gotham City, povoada por palhaços abandonados e bilionários malvados. Deirdre vai na contramão desse discurso, argumentando que são exatamente políticas de abertura e inclusão ao mercado que vêm retirando milhões de pessoas da miséria, mundo afora. Ela não vê problema na desigualdade econômica ou na multiplicação do número de bilionários, desde que sua riqueza venha da competição, da inovação, da melhora da vida dos outros e não da captura do estado. Lhe perguntei qual a sua ideia mais original. Ela não pensou muito para mencionar a tese de que é o livre fluxo de ideias e a inventividade humana, não o capital, a geopolítica ou a educação formal, que estão na base da prosperidade. Seu foco são as ideias e a narrativa. A virada para o século XIX assistiu a uma mutação em vastas regiões da Europa e na América. O homem comum, o padeiro, o comerciante, o inventor de coisas ganhou dignidade, e sucessivas barreiras foram quebradas. Uma narrativa honrando o “inovismo”, termo que ela por vezes usa no lugar de capitalismo, cumpre ai um papel vital. Coisa que vai muito além do terreno econômico, invadindo a cultura, os direitos, o sexo e os estilos de vida. Deirdre chamava-se Donald, e resolveu trocar de sexo, no final dos anos 90. Fez de si mesma um exemplo dessas coisas. Seus filhos não a perdoaram. Os netos sequer conheceu. Em algumas noites tristes, costumava estacionar o carro perto da casa do filho mais velho e observar seus amores, solitária. Com o tempo, parou de fazer isto. Tornou-se uma professora bem humorada com um evidente gosto para desafiar o senso comum. Ela parece saber que, na vida pessoal ou intelectual, a liberdade cobra seu preço. E que é preciso seguir vivendo. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, janeiro de 2020)
Em que momento nos tornamos reguladores obsessivos da vida dos outros?

O Cacique de Ramos teve que se explicar. O bloco desfila com fantasias de índio desde 1960, mas agora a coisa complicou. “Os pioneiros do bloco tinham nomes indígenas e eram ligados à umbanda”. Não entendi a relação com a umbanda. Possivelmente era um salvo-conduto. Alessandra Negrini também não escapou. Teve que se explicar, e se saiu bastante bem. “A luta indígena é de todos nós, por isso tive a ousadia de me vestir assim”. Bingo. Ao invés de pedir desculpas, disse simplesmente o que pensava. Com um pouco de retórica política. Contra-ataque perfeito. Curiosa esta invasão da retórica política sobre a indisciplina e a irreverência que sempre marcou (ao menos é isto que imaginávamos), nosso carnaval. Não se trata da sátira política (sempre bem vinda, aliás), mas o seu contrário: o disciplinamento da sátira pela correção política. O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da Prefeitura de Belo Horizonte, com orientações sobre o que os foliões deveriam evitar. Fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de Lamartine Babo, touca com tranças, homem vestido de mulher. Este último item com um requinte: nem de “noiva”. Talvez tenha sido nosso primeiro carnaval de cartilha, mas presumo que seja o primeiro de muitos. Nessas coisas todas, o que me surpreende é o excesso de convicção. A certeza de que alguém tem o direito de mandar na vida dos outros. Antônio Risério chamou isto de “fascismo identitário”, em seu livro recente. Fascismo, aqui, é o culto do dogma, a negação do diálogo, a sede de controle. Se o termo é adequado cada um pode julgar. Vai aí uma marca do nosso tempo: a hiperpolitização do cotidiano. Jonathan Haidt trata do tema em seu “The Coddling of the American Mind”. A vigilância coletiva nos campi universitários, os safe spaces, a supressão da divergência e proteção a qualquer coisa que caiba sob o rótulo de ofensivo. Parece evidente que as redes sociais tem muito a ver com isso. A conexão digital fez com que, subitamente, passássemos a viver juntos”. Da multiplicidade que marca as grandes sociedades abertas, passamos a funcionar como uma comunidade. Comunidade de bisbilhoteiros e “reguladores da vida dos outros”, como escutei de um amigo professor, tempos atrás. Sobre a atual histeria identitária, Risério toca na questão central: como é possível que movimentos que iniciaram “como luta pelo reconhecimento do outro tenham terminado como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade”? Não vejo resposta simples a esta pergunta. Mas ela deve ser feita. De um movimento múltiplo e generoso, afirmativo de direitos, migramos a uma guerra mesquinha pelo disciplinamento do humor, pela correção da literatura, supressão de marchinhas, regulação de fantasias e festas populares. Talvez tudo tenha saído um pouco de controle quando as guerras culturais invadiram o mundo da política e qualquer alegação de fragilidade tenha se tornado um caminho fácil para a virtude. Tudo feito à moda banal da radicalização e do exagero que marca a democracia atual. Há muitos riscos aí. Um deles é a descredibilização dos temas de fato pertinentes à exclusão e o preconceito. Submeter a luta antirracista ao julgamento seletivo e à politização barata é perder de vista a seriedade dos temas que ela de fato envolve, no dia a dia. Há um elemento político: só quem tem ganhado, com a histeria identitária, é um certo direitismo conservador que declara guerra ao politicamente correto e passa a ser visto, por irônico que pareça, como libertador. Há muitos bons trabalhos de sociologia mostrando isto, infelizmente não aqui pelos trópicos. No mais, arriscamos terminar convertendo o país da transgressão e da antropofagia em uma nação puritana. Depois do ódio político, a chatice cultural. Terminaremos cantando hinos gospel no carnaval. Nesse dia vai bater, não duvidem, uma saudade danada de algumas velhas marchinhas que deixamos para trás. (Publicado originalmente na Folha de São Paulo, fevereiro de 2020)
O Fundeb e a Constituição

O debate em torno do Fundeb está em pauta no Congresso. Ele não diz apenas respeito ao financiamento da educação brasileira mas também à definição sobre como se fará a gestão de nossas escolas. Isto é: como se fará para garantir que o direito à educação básica, inscrito na Constituição, seja efetivo. Há temas que mereceriam especial atenção no parecer apresentado pela Deputada Professora Dorinha, relatora da PEC do Fundeb. Um deles é a determinação de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam aplicados, nos estados e municípios, no pagamento de “profissionais da educação em efetivo exercício”. Mais do que criar um engessamento impróprio para um país continental e diverso como Brasil (como saber se, daqui a dez anos, nos 5570 municípios brasileiros, será este o percentual requerido?) a redação parte da premissa, que parece implícita no projeto, de que a oferta da educação básica será necessariamente estatal. Caso aprovada, teríamos uma contradição com o Artigo 213 da Constituição, que trata do uso dos recursos públicos para a educação. O parecer sugere que o referido Artigo trata como “exceção” as parcerias com o setor publico não estatal (escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias), e não como uma possibilidade aberta aos gestores das redes públicas de educação. Há um claro equívoco aí. As restrições estabelecidas pelo constituinte para a gestão por contratos, com o setor público não estatal, são bastante precisas e dizem respeito à natureza filantrópica, isto é, sem fins lucrativos das instituições. A condicionante mencionada no parecer, relativa à falta de vagas nas redes públicas, diz respeito ao mecanismo de oferta de bolsas de estudo. De modo resumido, a Constituição determina que modelos de bolsas (ou “voucher”) são excepcionalidades. Parcerias e contratos de gestão com instituições sem finalidade lucrativa são uma opção aberta aos gestores públicos. É este o sentido dado pelo Artigo 213: recursos serão destinados ao sistema A, podendo ser dirigidos ao sistema B. Fosse o contrário, o constituinte o teria explicitado. Como ocorreu com a saúde pública. O Artigo 199 da Constituição prevê que as instituições privadas poderão participar “de forma complementar” do sistema único de saúde. No âmbito da educação, o modelo é plural, estatal ou não estatal, desde que com escolas sem fins lucrativos. A questão central é saber como esta escolha será feita. É com isto que deveríamos nos preocupar. Em saber o que funciona, a partir do que a Constituição faculta, ao invés de tentar fixar a qualquer custo o monopólio deste ou daquele modelo de gestão. Modelos de gestão evoluem, através do tempo. O Brasil é exemplo disso. Após à Constituição de 88, criamos a lei das concessões, em 1995; das organizações sociais, em 1998; das PPPs, em 2004, e ainda recentemente instituímos o novo marco da sociedade civil, com a Lei 13.019/14, que permite um amplo espaço de colaboração entre setor público e o terceiro setor. Ou seja, o próprio ordenamento legal brasileiro evoluiu, ao longo das últimas três décadas, gerando novas alternativas de gestão. Estas alternativas são usadas hoje na saúde pública, área ambiental, social, saneamento básico e virtualmente em todas as atividades que não integram as chamadas funções exclusivas de estado. No campo da educação elas igualmente já vem sendo utilizadas, em experimentos inovadores e ainda de pequena escala. Exemplos disso são as escolas construídas e administradas via PPP, em Belo Horizonte, e a parceria via termos de fomento e colaboração com escolas como a Lumiar e outras, em Porto Alegre. Por que estas alternativas deveriam ser excluídas, prima facie, da gestão educacional? Com base em que evidência empírica? Não me parece que elas venham dos resultados que nosso modelo de monopólio estatal vem apresentando, como nos mostram os dados do PISA. Congelar um modelo de gestão da educação pública no texto da Constituição é um equívoco para o País. Garantia de direitos não é sinônimo de execução estatal de serviços, nem o seu contrário. Precisamos estar abertos ao que se passa no mundo, saber o que funciona, observar dados empíricos não apenas na teoria, mas na prática. Reescrever desse jeito a Constituição Brasileira é uma enorme precipitação. O Congresso deveria refletir sobre isto (Publicado originalmente na Folha de São Paulo em março de 2020)
Ódio do Bem

Ódio do bem Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais. Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo? É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir dai achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitaozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”? No caso de Holiday, a justiça não caiu nesta conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime, no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou. Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou. Há muito o que aprender, com estas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano. Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fakenews vinham apenas de um lado do jogo. Fascinante é este fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo. Tudo isto vem de muito longe mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral. Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump, achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi. A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política? A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 50, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes”. Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto. Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo. Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 30, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso, em nossa democracia. É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale à pena pensar a respeito. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2020)
E se Bloomberg fosse brasileiro?

No final do ano passado, Michael Bloomberg anunciou a doação de US$ 1,8 bilhão para a Universidade Johns Hopkins. Bloomberg se formou lá, em 1964, e de alguma forma queria retribuir. O dinheiro vai para um fundo financeiro, um endowment. Vai financiar bolsas para alunos de menor renda, do mundo inteiro, que queiram ter a mesma oportunidade que ele teve, um dia. Observem bem. O dinheiro vai para um fundo financeiro, boa parte lastreado em ações. A universidade é privada, sem fins lucrativos. É ela mesma uma grande organização social. E um enorme caso de naming rights, em homenagem ao empreendedor Johns Hopkins, que no final do século 19 doou US$ 7 milhões para criar a instituição. Caso Bloomberg fosse brasileiro e quisesse fazer sua doação para uma de nossas universidades federais, possivelmente não conseguiria. Enfrentaria uma discussão bizantina sobre criar um “fundo financeiro”, dar seu nome a alguma coisa, sobre suas “reais intenções” em doar a dinheirama toda e, por fim, sobre o risco de que tudo não passe de uma forma disfarçada de “privatização” da universidade. Sobre naming rights, tive uma aula interessante, semanas atrás, visitando o novíssimo African American Museum, em Washington. O teatro do museu chama-se Oprah Winfrey; o centro de memória, Robert Frederick Smith; o centro de imagem, Earl W. And Amanda Stafford. Museu público não estatal, acervo e gestão impecáveis e entrada franca. E aparentemente nenhuma discussão bizantina em torno do nome dado a alguns espaços a partir de generosas doações. No Brasil, criamos um modelo de gestão de universidades e museus dependente do Estado. Nossas universidades são enormes autarquias manietadas pela malha burocrática brasileira, feita de rigidez orçamentária, de pessoal, lei de licitações e quase ausência de fontes próprias de receita. Quando museus pegam fogo, banheiros não funcionam e a verba das universidades é cortada, nos dedicamos ao velho jogo de empurrar responsabilidades, cobrar que o outro lado é culpado, que o partido A ou B é que está no governo, na reitoria, seja o que for. O fato é que nos acostumamos. Pessoas observam incêndio que atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do Brasil, na noite deste domingo (2) Ricardo Moraes /Reuters O Ministério da Educação acaba de apresentar o programa Future-se. O programa ainda é bastante vago, mas aponta na direção correta. Ele propõe, no fundo, que se complemente o modelo estatal brasileiro com mecanismos de filantropia, fundos financeiros e rentabilização de patrimônio típicos do mundo universitário anglo-saxônico. Nada, diga-se de passagem, que o Brasil já não faça, em escala reduzida. É o caso, por exemplo, do uso das organizações sociais. Elas têm funcionado bastante bem na gestão do Impa, de hospitais públicos e de algumas de nossas melhores instituições culturais, como a Osesp e o Museu do Amanhã. A pergunta óbvia é: por que elas não serviriam como apoio à gestão nas universidades? O mesmo vale para os fundos de endowment. Um ex-ministro da Educação atacou a ideia sob o argumento de que ações, no mercado, “podem subir ou cair”, e que não se poderia submeter a educação a esse risco. Perfeita lógica sem nenhuma lógica. Milhares de universidades, mundo afora, usam fundos lastreados em ações para seu custeio. A começar pela mais renomada de todas, a Universidade Harvard, que formou uma multiplicidade de fundos que hoje somam US$ 39 bilhões. Não precisamos ir tão longe. O Brasil tem exemplos altamente meritórios, como o fundo criado pelos ex-alunos do ITA em 2014, o Fundo Amigos da Poli, ligado à Escola Politécnica da USP, e o Fundo Centenário, criado pelos formados na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eles têm algo muito simples em comum: são feitos por gente que decidiu tomar a iniciativa. Por que isso não poderia ser feito nas demais universidades, de maneira coordenada, com apoio federal e tudo mais? Penso que, no fundo, todos sabemos disso. O ponto é que andamos em um ambiente carregado de toxina ideológica, que não vem apenas do governo ou da oposição, mas é algo entranhado em nosso mundo político. Oxalá a lógica da polarização política não destrua, no nascimento, uma pauta que no fundo vai muito além deste ou de qualquer governo. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, 01/08/19)
Rápida visita ao american dream

Desci do metrô na altura da Broadway com a Dr. Martin Luther King Jr Boulevard. Mal passava das sete e meia de uma manhã fria e clara de outono, em Nova Iorque. À saída da estação, não encontro o The New York Times, e sim o Daily News, ao lado do “Diário de México”. Ônibus escolares amarelos circulam apressados. O dia começa, no Harlem, enquanto me dirijo até a KIPP Infinity Midle School, algumas quadras adiante. A Kipp é uma charter school, escola comunitária, privada, dirigida por uma organização sem fins lucrativos, que recebe estudantes gratuitamente, por sorteio, e é financiada pelo governo de Nova Iorque, além de receber contribuições privadas. Charters Schools são um modelo relativamente novo nos Estados Unidos. Criadas há pouco mais de vinte anos, hoje compõem um universo de mais de seis mil escolas, em 42 estados americanos. Trata-se de um novo modelo para a educação pública, semelhante ao das Academies, na Inglaterra, e de certa forma semelhante ao modelo das OSs, utilizadas nas áreas de saúde e cultura, no Estado de São Paulo. Logo na entrada da escola, leio a frase, que serve como lema, para os estudantes: “No shortcuts, no limits” (sem atalhos, sem limites). Caminhando pelos corredores da escola, me chama atenção o silêncio. Sou acompanhado por Tonia Casarin, do Teachers College, da Columbia University, e Fellow da Fundação Lemann. Tonia trabalhou na escola durante um semestre e me explica que a salas funcionam com portas abertas. Pode-se entrar e acompanhar a aula. É o que faço, algo constrangido, e os alunos sequer me percebem. A sala tem as paredes cobertas de informação. Imagens e frases de estímulo, cartazes feitos pelos alunos, o ranking da classe, com o nível de conhecimento de palavras. No quadro, as regras de participação e organização dos alunos, em aula. A idade média é de 12 anos. Assisto à Character Class, conduzida por Miss Leyla, jovem professora formada em Harvard. A aula tem apenas 30 minutos, tempo aproveitado rigorosamente. O foco da disciplina é discutir atitudes e comprometimentos éticos. Leyla propõe a discussão, alternando o debate rápido em duplas de estudantes, com a discussão no grande grupo. A cada resposta dada por um aluno, os demais estalam os dedos, no lugar de aplausos, com menor ou maior intensidade, conforme sua avaliação das ideias do colega. A participação é intensa, mas ninguém toma a palavra sem levantar o braço e receber a autorização da professora. Os tópicos são discutidos com objetividade, e sempre quando um aluno termina o seu diálogo mais rápido, com o colega, abre um livro para aproveitar o minuto restante, para ler. No final da aula, três batidas com a palma das mãos, ritmadas, em uma rápida coreografia. Alguns alunos recolhem as pastas, outros os papéis e anotações, dos demais, e a sala se encontra preparada para a próxima turma. Me retiro. Sigo para conversar com a Principal Allison Holley, para entender um pouco mais sobre o funcionamento da escola. Principal é o nome que se dá, aqui, à diretora ou diretor da escola, e Miss Allison parece perfeitamente confortável na função. Peço que ela me defina seu maior desejo, na gestão da escola. Ela me diz que há muitas metas a cumprir, em especial referentes à ida dos alunos para a universidade. Mas o que define seu sentimento é fazer uma escola na qual ela e seus professores desejem colocar os próprios filhos. Depois eu descobriria que os professores, ou ao menos a maioria deles, de fato colocam os filhos para estudar na escola. Allison explica que praticamente todos os professores atuam em tempo integral. Os alunos idem. Pergunto se ela considera as Charters Schools um modelo para a educação pública, ou ao menos uma alternativa ao ensino estatal tradicional. Ela sugere que isto dependerá da região, incluindo-se ai a força das comunidades, o empenho do setor público, e a abertura à inovação. Ela não tem dúvidas de que, em uma cidade como Nova Iorque, o modelo irá prosperar. O mercado é forte, a cidade é inovadora e exigente. Pergunto sobre a cultura meritocrática que se vê em cada iniciativa da escola. Ela se mostra surpresa com a questão, como se quisesse dizer: como a educação poderia não apostar na meritocracia? A escola criou um sistema de paychecks, espécie de moeda interna, com a qual são premiados os alunos, quando se destacam, pelo seu esforço, em inúmeras atividades, e na qual também são “descontados”, caso cometam uma infração nas regras acordadas entre todos. No final do ano, os alunos que alcançaram a pontuação esperada, participam do passeio anual. Na vitrine do corredor, vejo uma miniatura da Casa Branca, e um pequeno boneco de Barack Obama. Quem cumprir a meta irá até lá, no final do ano, e quem sabe conhecerá um de seus ícones, que estudou, aliás, ali pertinho, quando jovem. As regras são simples, claras, bem explicadas e aceitas por todos. São a base de convivência e a senha para a eficiência da aprendizagem. Se um aluno não lê o texto solicitado pelo professor, irá prejudicar o colega ao lado, nos debates em duplas; caso se comporte mal na sala de aula, irá distrair a turma e atrapalhar o andamento da aula, que é essencialmente participativa. A coisa toda soa meio dura, mas no fundo não é. Dura é a vida lá fora, que ele se preparam para enfrentar, aqui dentro. O ambiente da escola é colorido, e tem mais a cara de uma startup californiana, numa grande garagem, do que de um colégio convencional. Há espaço para a criatividade, para o pensamento crítico e expressão dos alunos. O segredo é apenas não confundir criatividade com desorganização. Talvez a palavra que defina o funcionamento de toda a escola seja “produtividade”. Uma eficiência alegre, auto-regulada, que torna o processo de aprendizagem mais rápido e efetivo. A aula começa e termina na hora marcada, não se perde tempo com alunos atrasados ou desorganização na sala, e o material de aula esta sempre à mão. A escola reproduz, de certo modo, um traço do mercado de
Jonatan e os especialistas

Jonatan tem 20 anos recém completados, é negro e morador da Baixada Fluminense. Estuda economia, em uma instituição de ponta, no centro do Rio de Janeiro. No verão passado fez um intercâmbio em Oxford, para melhorar o inglês. Leciona matemática para uma turma de ensino médio, na Tijuca, e acaba de voltar de uma gira pelo Cone Sul. Jonatan quer conhecer o mundo, enquanto a agenda permite. Sabe que logo vai entrar de cabeça no mundo executivo, e a vida vai ficar corrida. Quem lida com educação superior, no Brasil, se acostumou, nos últimos anos, a ouvir histórias como a de Jonatan. Histórias dos bolsistas do ProUni, um programa criado pelo Governo federal em 2004. O programa já distribuiu mais de dois milhões de bolsas em instituições privadas de ensino superior, Brasil afora. Não deixa de ser incrível, acontecer uma coisa dessas no Brasil. Um programa de parceria público-privada, custo baixo, burocracia zero, que dá um resultado tão espetacular em tão pouco tempo. E logo no Brasil, um pais que não costuma ser especialmente inovador em políticas públicas. O programa é uma obra do bom senso: houve uma mutação na sociedade brasileira, nos últimos vinte anos. O País universalizou o acesso ao ensino fundamental, ainda nos anos 90. Na primeira década do século, 40 milhões de pessoas passaram a integrar o que Marcelo Neri, economista e atual presidente do IPEA, chamou de “nova classe média”. Havia necessidade de ampliar, e rápido, o acesso dos estudantes mais pobres ao ensino superior. Por que não permitir, então, que as universidades privadas convertessem parte de seu imposto ou quota de filantropia em bolsas aos estudantes de menor renda? Um caso de bom senso liberal. O ProUni criou, no Brasil, o vale-educação. Uma antiga ideia formulada por Milton Friedman nos anos 50. Friedman, posteriormente, transformou o tema em uma cruzada pessoal. Nos anos 90, criou a sua Fundação para a livre escolha educacional. No Brasil, por óbvio, a tese de Friedman jamais frequentou o debate público. A ideia sempre foi uma excentricidade dos círculos liberais. O mantra nacional, repetido ad nauseam por políticos, sindicalistas e nossos “especialistas em educação”, sempre foi a “defesa da escola pública”, eufemismo que costumamos usar quando nos referimos à educação estatal. O ponto é que, em seus 10 anos de vigência, o ProUni se tornou um sucesso. O custo médio por aluno, no sistema, é seis vezes menor do que o de um estudante da rede federal de universidades. Os alunos escolhem onde estudar, a integração entre bolsistas e não bolsistas é boa, o desempenho acadêmico está ok, tudo certinho. O Governo do PT, talvez sem querer, tornou o Brasil um dos maiores cases globais de comprovação da tese de Friedman. A pergunta a ser feita agora, é: se o sistema da bolsa ou do vale-educação funcionou tão bem no ensino superior, porque ele não é também utilizado na educação básica? Em especial, porque ele não é utilizado no ensino médio? A pergunta ganha relevância quando observamos os últimos resultados disponíveis do ENEM, o exame nacional do ensino médio. Entre os 10% de escolas melhor pontuadas do País (1124 escolas), 93% pertencem à rede privada de ensino. Na outra ponta, entre os 10% de escolas pior colocadas, nada menos do que 97,7% são colégios pertencentes às redes estaduais de ensino, que respondem por 85% das matriculas de ensino médio brasileiro. Os dados nos permitem concluir que não há propriamente uma crise em nosso ensino médio, ou no ensino básico, como um todo. Há, isto sim, uma crise estrutural no setor público educacional, que se concentra, em particular, nas redes estaduais de educação. Diante desses dados, os defensores do modelo de ensino estatal costumam mostrar certo incômodo. Sustentam que não há, na verdade, grande diferença de qualidade entre as escolas públicas e privadas. O desempenho diferenciado vai por conta do padrão de renda da clientela de cada rede. Alunos das escolas estatais tem um desempenho pior do que seus colegas, do setor privado, por que são pobres. Na sua visão, não é a má gestão escolar, a burocracia, a falta de laboratórios, o abstenseismo dos professores, que determina os resultados pífios alcançados. O problema se encontra nos próprios alunos. Sua herança familiar, a falta de boas condições para estudar em casa, somado ao pouco comprometimento dos pais. Jonatan discorda deste argumento. Ele acha que, estudando em uma escola melhor, com rigor didático, horário pra começar e terminar a aula, ano letivo cumprido à risca, laboratórios atualizados e coisas do gênero, os alunos iriam bem, mesmo vindo de famílias mais pobres. Dizem que é só observar os resultados dos bolsistas do ProUni, em regra iguais ou superiores a de seus colegas não bolsistas, para saber disso. Nossos defensores do modelo estatal reconhecem que isto até pode ser verdade, mas que não se deve perder, jamais, a esperança na escola pública. Pedem um pouco de paciência. Dizem que acabou de ser aprovado o novo plano nacional de educação (PNE), no Congresso Nacional, e que, no máximo em dez anos, as coisas vão melhorar. Lembram que vai ter o recurso do Pré-sal, que em 2020, o orçamento nacional para educação vai ser 100% maior do que este ano. Garantem que a piora dos resultados do último IDESP não vai se repetir. Jonatan escuta o argumento, mas na sua cabeça só aparece a turma mais nova lá da Baixada. Lembra que tem muita gente entrando no colégio na virada do ano, e ele acha que o pessoal poderia escolher uma escola privada bacana, com nota boa no ENEM, se o Governo simplesmente estendesse os mesmos benefícios do ProUni para as escolas de ensino médio. O próprio estado poderia ir disponibilizando bolsas, do próprio orçamento. Acha que o pessoal iria gostar de escolher onde estudar. Seria legal comparar a qualidade de cada escola, optar por esta e não aquela, como fazem as famílias que tem mais dinheiro. Nossos defensores da escola pública explicam que Jonatan está equivocado. Não é o direito de escolha que
Carlos Lacerda: o político do tudo ou nada

“Não gosto de política…gosto é do poder. Política pra mim é um meio para chegar ao poder”, diz Carlos Lacerda, em “Depoimento”, publicado em 1978, um ano após a sua morte. De fato, a paciência não era sua maior virtude. Em 1955, eleito JK, Lacerda defende a anulação das eleições. Juscelino não havia feito maioria, seu meio milhão de votos sobre Juarez Távora eram votos dos comunistas. Às favas com o jurisdicismo da ala legalista da UDN. O caso era apear Juscelino, e logo Jango, do poder. Lacerda tinha pressa. Em abril deste ano, Lacerda faria cem anos. Nos manuais de história, ele é o corvo da terceira república. O apelido foi dado pelo pessoal de A Última Hora, de Samuel Wainer. Pegou. Lacerda mesmo incorporou o pássaro negro a sua propaganda. Proscrito da vida publica ainda relativamente jovem, assim prossegue. Nenhuma comissão da verdade pede o reexame de sua morte. Seu arquiinimigo, Getúlio Vargas, chefe de um regime de exceção de década e meia, com sua guarda pessoal, sua polícia política, que fechou o Congresso, extinguiu os partidos, prendeu, torturou, prossegue como herói da historiografia oficial. Em parte, isto se dá pela sina incontornável da história: Lacerda foi um político derrotado. Nos dezenove anos da “república populista”, andou sempre no avesso do poder. Termina derrotado pelo regime militar, que ajudara a nascer, e que o baniu da vida política. Lacerda chegava à maturidade de seus 50 anos, em 1964. Aspirava à presidência, queria ser o candidato da “revolução”, nas eleições de 1965. Errou feio. De certo modo, terminou como Brizola, tolhido da chance de deixar um legado, como o fez Juscelino, e, por óbvio, Getúlio. Brizola, longevo, ainda sobreviveu. Teve sua chance, na redemocratização. Lacerda se foi em 1977, inglório, morto de uma complicação cardíaca na clínica São Vicente, na Gávea. Vem daí o mérito do livro recém lançado, de autoria do historiador Rodrigo Lacerda, “A republica das abelhas”. Rodrigo é um escritor premiado, doutor em história pela Universidade de São Paulo. É também neto de Carlos Lacerda. De cara, isto o livra do debate sobre o “distanciamento”, do historiador. “Tentei tirar partido disso”, diz Rodrigo. E conseguiu. Rodrigo toma o avô como narrador de sua própria história e produz um livro cativante. Algo que ele mesmo chama, “por falta de definição melhor”, um “romance histórico”. Não gosto da expressão. Um livro de história sempre será, em maior ou menor medida, uma obra de ficção. A ficção sobre o tempo que se foi e do qual recolhemos os pedaços. Rodrigo recolhe os cacos da história dos Lacerda, desde o avô de Carlos, Sebastião, abolicionista e republicano de primeira hora, e estabelece seu ponto de vista. Rodrigo conta a história do atentado da Rua Tonelero. Daria um bom hobbie colecionar versões sobre o acontecido, naquela madrugada, em Copacabana. Há livros de história que asseguram tudo não ter passado de uma jogada para incriminar Getúlio, a confissão do negro Gregório, o ferimento de Lacerda, tudo mentirinha. Quem se importa? O tempo vai apagando seus rastros. O fato é que Rodrigo escreve um livro cuidadoso, como devem ser os livros de história. Seu maior achado foi transformar Lacerda, desde seu jazigo, no cemitério São João Batista, em um homem ponderado. Na classe média carioca, com alguma informação e bastante idade, Lacerda é lembrado como governador enérgico e competente, o primeiro do então recém criado Estado da Guanabara, na primeira metade dos anos 60. Seu governo universalizou o acesso ao ensino primário, chegando a publicar um decreto prevendo processo para os pais que não matriculassem seus filhos na escola. Modernizou a gestão, tornou obrigatório o concurso público, investiu em obras estratégicas, estação guandu, os túneis Rebouças, Santa Bárbara, mandou fazer o parque do Flamengo, projeto de Lota Macedo Soares, vivida por Glória Pires no filme Flores raras. Lacerda afirmou que sempre quis ser escritor, mas deixou sua melhor memória como gestor público. Lacerda começou como aspirante a dramaturgo. Sua primeira peça, O Rio, estreou em julho de 1937, no Teatro Boa Vista, em São Paulo. Criação de seus vinte e poucos anos, foi recebida como uma obra de vanguarda, elogiada em O Globo como “o mais absoluto desrespeito a todas as regras secularmente estabelecidas no teatro”. Graciliano Ramos não gostou: “não há drama destes retalhos de vidas incongruentes. Não sei se é teatro”. Lacerda ainda escreveria A Bailarina Solta no Mundo e Amapá. Sua paixão intermediária foi a tradução. São mais de 30 obras. Julio Cesar, de Shakespeare; A vida de Ivan Ilitch, de Tólstoi; Minha mocidade, de Churchill. Ainda na noite do 31 de março, 1964, depois de passar o dia em guerra, no Palácio da Guanabara, trabalhava na tradução da peça de Abe Burrows, Como Vencer na Vida sem Fazer Esforço”. Em 1973, foi conferencista principal, com Antônio Houaiss e Paulo Rónai, do Primeiro Encontro Nacional de Tradutores. Nos anos 70, fora da política, dedicado à vida empresarial, na editora Nova Fronteira, escreveu seu livro de memórias, A Casa de meu Avô, que lhe valeu o elogio de Drummond, de que bastava o livro “para garantir-lhe esse lugar que importa mais do que os lugares convencionalmente tidos como importantes”. Sua paixão definitiva foi, desde sempre, o jornalismo de combate. O articulismo enragés, tradição hoje desaparecida, quando nenhum governante perde o sono em razão de um artigo de jornal. Escreveu mesmo um livro apresentando sua visão sobre o jornalismo, A Missão da Imprensa, em que faz uma candente defesa da independência do jornalismo frente aos governos e grupos de poder, a profissionalização do jornalista, o rigor na verificação das fontes. É evidente que, definitivamente, este não foi o caso da Tribuna da Imprensa. Nem foi o caso da publicação da Carta Brandi. O Lacerda reflexivo, saído da mente de Rodrigo, quem sabe teria checado se aquela assinatura era mesmo verdadeira, antes de publicar a carta. Gosto de ver Lacerda como alguém que levou a contradição entre a palavra e a vida ao estado da arte. Nos anos 30, foi comunista. Ao
Wellington e Pepe Mujica

Dias atrás escutava o discurso do Presidente Mujica, do Uruguay, na ONU. O discurso fizera certo sucesso, e de fato é uma boa peça de oratória. Mujica usa bem a imagem do “viejo” da província. Aquele que nada mais tem a ganhar, que já deu de si. Que carrega o charme do “pequeno País” em um mundo de gente grande. Um tipo simpático, afinal de contas. Observando o discurso, me dei conta, mais uma vez, do quanto a estética da indignação pode esconder a falta de coragem. Coragem de reconhecer o que nós, latino-americanos, fizemos ou deixamos de fazer. Sobre nossa história triste de golpes de estado, nosso populismo atrasado, nossa relutância em criar instituições inclusivas, que incentivem o espírito de inovação e a concorrência saudável entre as empresas. Nosso investimento pífio em infraestrutura, na “ciência”, que segundo o Presidente, deveria conduzir o mundo. Nosso talento para ocupar os últimos lugares em qualquer ranking de competitividade, com a honrosa exceção do Chile, cujo modelo de modernização é hoje seguido, ao menos em parte, pelo Peru, e pela Colômbia, país sul-americano que mais avançou, na última década, no ranking do “doing business”, do Banco Mundial. Coragem para saber dos próprios erros, ao invés de por a culpa no vizinho, em geral nosso vizinho preferido, mais ao norte. Mujica, com razão, chama de inútil o bloqueio econômico a Cuba. Só não tem coragem falar em direitos humanos na Ilha. Pedir que libertem os “presos de consciência”, promovam eleições livres, como soubemos fazer, aqui, mais ao “sul”, nos anos 80. Coragem para uma simples saudação a Guillermo Fariñas, jornalista de oposição em Cuba, com suas 23 greves de fome, que acaba de receber o Prêmio Sakharov de direitos humanos, concedido pelo Parlamento Europeu. Não o culpo pela omissão. Ele cumpre um conhecido papel. O jogo é falar mal dos “grandes”, cutucar os norte-americanos. Estes sim, a tipificação do erro, com sua Constituição de 226 anos, 35 universidades entre as 50 melhores do planeta, com seus vales do silício e uma das dez economias mais abertas do mundo. O discurso de Mujica me fez lembrar do Wellington, aluno da instituição de ensino em que trabalho. Bolsista do ProUni, 19 anos, negro, talentoso, morador de São Gonçalo. Wellington quer aprender inglês. Espanhol já estuda. Norte, sul não lhe faz diferença. De certo modo, ele transita do norte ao sul, todos os dias, no metrô carioca. Vai bem na faculdade, pega a ponte aérea pra fazer um curso da Fundação Estudar, em São Paulo, e imagino que acharia curioso, com o devido respeito, escutar Mujica amaldiçoando o capitalismo e “el dios mercado”. Wellington anda querendo entrar no mercado, e, se acredita em alguma coisa, decididamente, é em “el dios educacion”. Quando começou a faculdade, Wellington costumava dormir em um banco de colégio, na sala dos professores. Teria do que se lamentar, mas anda sem tempo. Esta criando uma ONG. É impaciente, quer atuar junto às comunidades. Quando lhe perguntei se não seria melhor focar nos estudos, por agora, e depois atuar na área social, ele respondeu que não vai esperar até ficar milionário para abrir a sua fundação. Mujica diz que a “globalização não tem outra condução se não interesse privado”. Esqueceu do bilhão de pessoas privadas que saiu da pobreza, mundo afora, nas duas últimas décadas. Talvez pense que as estatísticas também são controladas pelas “grandes potências”. Talvez suponha que um bilhão de pessoas não faça tanta diferença, já que há outro bilhão que ainda precisa fazer o mesmo caminho. Talvez não pense nada disso. Foi só uma frase no meio do discurso. Wellington anda estudando sobre globalização, e a palavra parece lhe soar bem aos ouvidos. Vê o mundo cada vez mais descolado da geografia. O conhecimento está aí, circulando no mundo virtual, à disposição de todo mundo. No final do ano, ele vai a Inglaterra fazer um curso. Depois, quer ir para alguma universidade americana, em um intercâmbio. Mas o que ele quer mesmo é voltar, contar tudo para seus amigos, em São Gonçalo. Ir de sala em sala nas escolas da rede publica, olhar nos olhos de cada um e dizer que é possível, que o Brasil é um País cheio de oportunidades, que tem o ProUni, Fies, o Sisu, as fundações, os intercâmbios. Que é só não desistir, não perder tempo reclamando da vida. Wellington senta na frente da minha mesa e diz que um dia vai ser presidente. Fala com convicção. Não duvido que vá mesmo. Torço por ele. Sua história é a história de muita gente, não só do Brasil, mas de um continente que se move rápido. Se um dia ele chegar lá, quem sabe também fará um discurso nas Nações Unidas. Não sei o que ele dirá. Intuo que não haverá amargura em suas palavras. Quem sabe apenas se lembrará de tudo que passou, sugerirá que cada um assuma suas responsabilidades, e dirá coisas amenas sobre o futuro. (artigo publicado originalmente no Jornal Zero Hora, em Out/2013)