Bolsonaro, democracia e o senso comum

Parte de nossa imprensa faz com Bolsonaro o que o “mainstream” da imprensa americana fez com Donald Trump. Abre-se mão de fazer jornalismo em favor da militância. O questionamento, o dado factual, o desejo de saber e informar é substituído por um difuso e por vezes raivoso ativismo Foi o que se viu na recente entrevista de Bolsonaro no Roda Viva. A cena toda parecia uma gincana para saber quem seria capaz de dar a maior pancada, ou desconstruir o candidato. O programa não foi uma exceção. Há quem pense que jornalismo é isto mesmo. Que o desafio é tocar nos pontos frágeis do candidato, e que discussão sobre programas de governo é conversa fiada. Pode ser. É de se esperar que um bom bate-boca dê mais audiência que um debate respeitoso sobre o país. Há gosto pra tudo. Sob certo aspecto, tudo isto é bastante compreensível. Vivemos tempos de democracia polarizada, e é previsível que o jornalismo siga o mesmo caminho. Boa parte do que se entende por jornalismo, hoje, responde à lógica da cultura do entretenimento. O ponto é gerar repercussão, visualização, likes, barulho e calor, no mundo digital. Pablo J. Boczkowski e Zizi Papacharissi, organizadores do recém-lançado “Trump and the Media”, pelo MIT, observam que uma das marcas da campanha de 2016 foi a desconexão da agenda de amplos setores da mídia e uma vasta camada de eleitores americanos. A conhecida cisão entre o que vai na cabeça de uma certa elite de intelectuais/ativistas e o senso comum. É previsível que isto ocorra, mas o tamanho do fosso agora parece ter aumentado, e adquirido ares de confrontação. O palco do confronto, em regra, é dado pelos temas da guerra cultural. Parte da elite cultural parece estratificar o mundo entre aqueles que andam do lado certo do debate sobre temas como aborto, maioridade penal, porte de armas ou cotas raciais, e os que rastejam do lado errado. A cisão diz respeito ao tema do reconhecimento. Há um tipo de retórica e um arco de opiniões “legítimas” e outro que representa simplesmente o atraso e a contramão. E por aí está encerrado o debate. Melhor expressão disso foi dada por um dos candidatos à Presidência, que em um momento de alta virtude chamou o jovem e negro vereador paulista Fernando Holiday de capitãozinho do mato. A ofensa foi solenemente desconsiderada pelo “mainstream” midiático. Pareceu perfeitamente óbvio que um jovem negro, por ser negro, devesse pensar do jeito certo, sob pena de ser simplesmente isto, um traidor com quem não se deve dialogar, mas combater. Cansei de atender a debates e entrevistas em que a conversa começa com a pergunta sobre como entender a atual “onda conservadora”. O tom da questão, em regra, é a ideia de que estamos diante de um problema e de algo que pode ameaçar a nossa democracia. Em geral, começo explicando que o ponto de vista conservador também é legítimo, tanto quanto o seu contrário. Que uma democracia é feita disso, da expressão de visões éticas divergentes sobre o mundo. Ato seguinte digo que conservadorismo de costumes sempre esteve por aqui, na base da cultura brasileira, mas que agora adquiriu expressão política. Uma expressão nítida e majoritária. Quase um terço dos brasileiros, hoje, é evangélico, mas o tema está longe de se resumir à filiação religiosa. 57% da população é contrária à descriminalização do aborto. Os dados são abundantes nesta direção. Durante as duas últimas décadas, eleitores conservadores tenderam a dividir seu voto, em eleições majoritárias, no eixo PT-PSDB. Agora dispõem de uma representação própria. Por certo é uma representação imperfeita e, possivelmente, grotesca e caricatural. Emendar adjetivos aqui seria inútil. É uma expressão legítima, que precisa ser confrontada no plano das ideias. Tudo isto é muito curioso, em especial quando observamos que uma parte significativa dos que se imaginam portadores da razão e dos valores democráticos anda por aí vociferando contra a Justiça brasileira e incentivando um punhado de militantes fanatizados a uma bizarra greve de fome perdida na Praça dos Três Poderes Se desejarmos combater o pensamento autoritário, alguns caminhos talvez sejam possíveis. O primeiro é reconhecer que ele pode vir de muitos lados. Da esquerda e da direita. Que não há uma diferença moral relevante entre quem elogia Pinochet e quem grava o nome de Fidel em uma chapa de ferro. Ambos suportam ditaduras assassinas, e não há relativização possível quanto a isto. Outra é dobrar a aposta na razão tranquila. Muito já se disse do desconforto de Bolsonaro com temas de economia e sobre como governar. O recurso ao “posto Ipiranga” é uma metáfora pobre, afinal de contas. Mas o mesmo pode ser dito para muita gente bacana que também está no páreo. O tipo que, diante de números evidentes, diz com ar de seriedade que não há déficit na Previdência, por exemplo. Tudo isto demanda um jogo de paciência, aposta no diálogo, uso de dados e argumentos. Jogo que precisa ser jogado, pois é o único jeito de andarmos para a frente, em uma democracia. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 08 de agosto de 2018).
Rápida visita ao american dream

Desci do metrô na altura da Broadway com a Dr. Martin Luther King Jr Boulevard. Mal passava das sete e meia de uma manhã fria e clara de outono, em Nova Iorque. À saída da estação, não encontro o The New York Times, e sim o Daily News, ao lado do Diário de México. Ônibus escolares amarelos circulam apressados. O dia começa, no Harlem, enquanto me dirijo até a KIPP Infinity Midle School, algumas quadras adiante. A Kipp é uma charter school, escola comunitária, privada, dirigida por uma organização sem fins lucrativos, que recebe estudantes gratuitamente, por sorteio, e é financiada pelo governo de Nova Iorque, além de receber contribuições privadas. Charters Schools são um modelo relativamente novo nos Estados Unidos. Criadas há pouco mais de vinte anos, hoje compõem um universo de mais de seis mil escolas, em 42 estados americanos. Trata-se de um novo modelo para a educação pública, semelhante ao das Academies, na Inglaterra, e de certa forma semelhante ao modelo das OSs, utilizadas nas áreas de saúde e cultura, no Estado de São Paulo. Logo na entrada da escola, leio a frase, que serve como lema, para os estudantes: “No shortcuts, no limits” (sem atalhos, sem limites). Caminhando pelos corredores da escola, me chama atenção o silêncio. Sou acompanhado por Tonia Casarin, do Teachers College, da Columbia University, e Fellow da Fundação Lemann. Tonia trabalhou na escola durante um semestre e me explica que a salas funcionam com portas abertas. Pode-se entrar e acompanhar a aula. É o que faço, algo constrangido, e os alunos sequer me percebem. A sala tem as paredes cobertas de informação. Imagens e frases de estímulo, cartazes feitos pelos alunos, o ranking da classe, com o nível de conhecimento de palavras. No quadro, as regras de participação e organização dos alunos, em aula. A idade média é de 12 anos. Assisto à Character Class, conduzida por Miss Leyla, jovem professora formada em Harvard. A aula tem apenas 30 minutos, tempo aproveitado rigorosamente. O foco da disciplina é discutir atitudes e comprometimentos éticos. Leyla propõe a discussão, alternando o debate rápido em duplas de estudantes, com a discussão no grande grupo. A cada resposta dada por um aluno, os demais estalam os dedos, no lugar de aplausos, com menor ou maior intensidade, conforme sua avaliação das ideias do colega. A participação é intensa, mas ninguém toma a palavra sem levantar o braço e receber a autorização da professora. Os tópicos são discutidos com objetividade, e sempre quando um aluno termina o seu diálogo mais rápido, com o colega, abre um livro para aproveitar o minuto restante, para ler. No final da aula, três batidas com a palma das mãos, ritmadas, em uma rápida coreografia. Alguns alunos recolhem as pastas, outros os papéis e anotações, dos demais, e a sala se encontra preparada para a próxima turma. Me retiro. Sigo para conversar com a Principal Allison Holley, para entender um pouco mais sobre o funcionamento da escola. Principal é o nome que se dá, aqui, à diretora ou diretor da escola, e Miss Allison parece perfeitamente confortável na função. Peço que ela me defina seu maior desejo, na gestão da escola. Ela me diz que há muitas metas a cumprir, em especial referentes à ida dos alunos para a universidade. Mas o que define seu sentimento é fazer uma escola na qual ela e seus professores desejem colocar os próprios filhos. Depois eu descobriria que os professores, ou ao menos a maioria deles, de fato colocam os filhos para estudar na escola. Allison explica que praticamente todos os professores atuam em tempo integral. Os alunos idem. Pergunto se ela considera as Charters Schools um modelo para a educação pública, ou ao menos uma alternativa ao ensino estatal tradicional. Ela sugere que isto dependerá da região, incluindo-se ai a força das comunidades, o empenho do setor público, e a abertura à inovação. Ela não tem dúvidas de que, em uma cidade como Nova Iorque, o modelo irá prosperar. O mercado é forte, a cidade é inovadora e exigente. Pergunto sobre a cultura meritocrática que se vê em cada iniciativa da escola. Ela se mostra surpresa com a questão, como se quisesse dizer: como a educação poderia não apostar na meritocracia? A escola criou um sistema de paychecks, espécie de moeda interna, com a qual são premiados os alunos, quando se destacam, pelo seu esforço, em inúmeras atividades, e na qual também são “descontados”, caso cometam uma infração nas regras acordadas entre todos. No final do ano, os alunos que alcançaram a pontuação esperada, participam do passeio anual. Na vitrine do corredor, vejo uma miniatura da Casa Branca, e um pequeno boneco de Barack Obama. Quem cumprir a meta irá até lá, no final do ano, e quem sabe conhecerá um de seus ícones, que estudou, aliás, ali pertinho, quando jovem. As regras são simples, claras, bem explicadas e aceitas por todos. São a base de convivência e a senha para a eficiência da aprendizagem. Se um aluno não lê o texto solicitado pelo professor, irá prejudicar o colega ao lado, nos debates em duplas; caso se comporte mal na sala de aula, irá distrair a turma e atrapalhar o andamento da aula, que é essencialmente participativa. A coisa toda soa meio dura, mas no fundo não é. Dura é a vida lá fora, que ele se preparam para enfrentar, aqui dentro. O ambiente da escola é colorido, e tem mais a cara de uma startup californiana, numa grande garagem, do que de um colégio convencional. Há espaço para a criatividade, para o pensamento crítico e expressão dos alunos. O segredo é apenas não confundir criatividade com desorganização. Talvez a palavra que defina o funcionamento de toda a escola seja “produtividade”. Uma eficiência alegre, auto-regulada, que torna o processo de aprendizagem mais rápido e efetivo. A aula começa e termina na hora marcada, não se perde tempo com alunos atrasados ou desorganização na sala, e o material de aula esta sempre à mão. A escola reproduz, de certo modo, um traço do mercado de
O capitalismo fair play

No alto do Grand Canyon, há um aviso pedindo que os turistas não alimentem os animais. E com uma explicação. Eles vão gostar de ganhar um biscoito, mas vão se acostumar, e com o tempo perderão o ânimo de caçar por conta própria. O economista italiano Luigi Zingales gosta de contar esta história, e diz que o mesmo vale para o mundo dos negócios. Cita o modo como foi feito o resgate dos bancos americanos, na crise de 2008. Uma vitória da K Street, a meca do lobby da indústria financeira, em Washington, sobre o “contribuinte indefeso”. Em geral é assim, quando o governo dá uma ajuda. Alguns ganham, e quase todos pagam a conta, de um jeito ou outro, no longo prazo. Zingales é autor do livro Capitalismo para o Povo. O livro é uma espécie de manifesto contra o que ele chama de “capitalismo de compadres”. Poderia ser “estatismo de compadres”, daria na mesma. O conceito cai como uma luva em um país como o Brasil. País do BNDES e seus “campeões nacionais”; da política de “conteúdo local” nas compras do pré-sal; do nosso “presidencialismo de coalisão”, de vezo patrimonial, movido a vinte e três mil cargos de confiança; da incrível máquina de sindicatos atrelados ao estado, sustentados via imposto sindical. Zingales trás algo novo ao debate público: defende que a economia de mercado pode ser uma bandeira popular. Em diversas partes de seu livro, menciona os movimentos Occupy Wall Street e Tea Party. Nas alegorias tradicionais da política, eles não teriam nada em comum. Para Zingales eles expressam um mesmo mal estar. O mesmo, quem sabe, que assistimos nas ruas do Brasil, em 2013 e 2015. Por vezes é a orgia de dinheiro público nos estádios da Copa; por vezes é a corrupção na Petrobrás. Mas o fio condutor é o mesmo: a zona cinzenta, pouco republicana e eticamente insustentável entre a política e o mundo dos negócios. Zingales diz que não é um filósofo moral, mas há uma evidente base filosófica em tua teoria. Ela diz que o senso de justiça das pessoas não requer que a distribuição da renda, na sociedade, seja mais ou menos igualitária. A exigência dos cidadãos diz respeito ao fair play. Todos querem ganhar, mas antes de tudo querem que o jogo seja limpo. Isso requer não apenas regras iguais, mas certa equivalência nas condições de partida de cada um, na sociedade. Numa analogia com o futebol, ficamos furiosos com os 7 a 1, na Copa, mas ninguém reclamou que o resultado foi injusto. É como funciona a meritocracia: aceitamos que o resultado se defina pelo talento, ou mesmo pelo acaso. O que não vale é o truque, a sensação de jogo-jogado. Vem daí a ideia de um certo nivelamento do sistema de oportunidades. E este é o foco de Zingales. Não é pouca coisa. Isso requer, por exemplo, o acesso de todos a uma escola de qualidade. De cara, rodaria no teste o modelo África-do-sul-na-época-do-apartheid, que vigora no Brasil, em que os mais ricos estudam em boas escolas e os mais pobres nas escolas “do governo”. O que diferencia os dois modelos é, essencialmente, a existência ou não de competição. As escolas estatais funcionam à base de um duplo monopólio: elas não podem ser “descontratadas” pelos estudantes, e não podem, por sua vez, descontratar seus piores professores. O modelo funciona como uma máquina de gerar desigualdade social, mas vamos levando. Zingales observa que, nas devidas proporções, é o mesmo que ocorre nos Estados Unidos. E não é à toa que define o “lobby da escola pública” como o mais poderoso lobby norte-americano. Ele custa U$ 56 milhões, anualmente, é bancado pelos sindicatos de professores públicos. É o lobby do status quo, em educação, que torna sem sentido a ideia do “sonho americano” para a maioria da população. A proposta de Zingales é simples: que o estado financie a educação, mas largue de fazer a gestão das escolas. Ofereça um vale-educação e permita que os estudantes mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de famílias com maior renda. Fair play, nos pontos de partida. Atenção aos alunos, não ao lobby dos sindicatos. A agenda sugerida por Zingales passa ao largo da habitual clivagem “esquerda x direita”, que há tempos envenena nosso debate político. Seu tema central é como fazer com que a definição de políticas públicas expresse de modo mais apurado os interesses difusos da sociedade, em uma perspectiva de longo prazo. Como evitar que o espaço público seja capturado por grupos de interesse, de dentro e de fora da máquina pública. Uma forma de fazer isto é evitar a expansão contínua do aparato estatal. Quanto maior o tamanho do bolo, diz Zingales, mais incentivo as empresas e corporações terão para abocanhar sua fatia. Ao cidadão interessa um Estado enxuto, porém rigoroso na defesa igualitária de direitos. Garantidor de equidade, e por isso avesso à miríade de vinculações, monopólios, privilégios funcionais, subsídios e incentivos fiscais setoriais. Subsídios e incentivos fiscais funcionam como uma espécie de ladeira escorregadia. Concedidos a um determinado setor, dificilmente serão recusados aos demais. Cada setor terá sempre bons argumentos a seu favor. Dirá que o segmento X ou Y também recebeu, que outros países fazem a mesma coisa, e que é preciso gerar empregos. Qualquer lobista tem na ponta da língua o número de empregos que irão pelo ralo se o governo cortar o seu subsídio favorito. E terá muita gente a seu lado, falando grosso. Incentivos são como gatos de sete vidas. Feitos para estimular, temporariamente, uma atividade econômica, tendem à imortalidade. Vide o caso clássico da Zona Franca de Manaus, com seus quase cinquenta anos e incentivos recém prorrogados até 2073. Tudo para criar uma indústria muito cara, e até hoje muito pouco competitiva. Observe-se o bem sucedido lobby das montadoras brasileiras para renovar, ano a ano, a redução do IPI para automóveis, com os sabidos efeitos sobre o caos urbano brasileiro. Vide o exemplo pitoresco da chamada “lei do
Um apartheid silencioso

Quando da divulgação dos resultados da última edição do PISA, houve quem comemorasse o avanço de posições dos estudantes brasileiros. Fomos um dos três países que mais avançaram no teste, ao longo da década de 2000. Se observarmos melhor estes resultados, porém, vamos perceber um dado perturbador: nossos alunos das escolas privadas tiveram nota média de 502, semelhante a dos estudantes norte-americanos, enquanto nossos alunos das redes estaduais e municipais de ensino alcançaram uma média de 387, semelhante à da Albânia. Os dados do ENEM mostram o mesmo quadro. Das 1000 escolas melhor qualificadas, com mais de 75% de participação dos estudantes, 92% eram particulares. O fato é que estamos alimentando, no Brasil, uma espécie de apartheid educacional, entre os jovens de classe média e alta, cujas famílias há muito “privatizaram” a educação de seus filhos, e os estudantes de famílias mais pobres, que são levados a estudar nas redes estaduais e municipais de ensino, com seus problemas crônicos de gestão. É uma situação paradoxal: o sistema público de educação, que deveria assegurar uma base de oportunidades igual para todos os cidadãos, é ele mesmo uma máquina geradora de profundas desigualdades sociais. Alguns dirão que não é possível debitar os resultados pífios da educação pública às deficiências estruturais da gestão estatal do ensino. Pesariam as condições das famílias para apoiar os filhos em suas atividades fora das salas de aula. É um argumento da derrota e do conformismo. Ao Estado não caberia exatamente criar as condições para compensar estas assimetrias sociais? O problema não é de recursos, definitivamente. Nosso sistema estatal é caro e ineficiente. Escolas estatais são repartições públicas. Não tem autonomia para tomar decisões com a rapidez e a racionalidade que a educação requer no dia a dia (atualizar laboratórios, bibliotecas, contratar e descontratar profissionais). Sofrem da burocracia, do corporativismo e da visão anti-meritocrática comum no serviço público brasileiro. É fácil constatar este quadro e dizer que tudo poderia ser diferente. Mas não é o que a experiência tem demonstrado. Penso que chegou a hora de apostar em uma mudança de paradigma no Brasil. Uma mudança estrutural de longo prazo: recontratualizar a relação entre Estado e sociedade, na educação. O sentido deste processo é: ao invés de continuarmos tentando o que se tentou no século XX, isto é, nivelar o acesso à educação pela oferta do ensino estatal, buscarmos o efetivamente possível no século XXI: assegurar o acesso de todos ao ensino não estatal (composto por escolas com ou sem fins lucrativos, desde que tenham qualidade, gestão ética e relação custo/benefício positiva). O Brasil tem apresentado inovações importantes nesta direção. Basta observar duas das melhores inovações em educação do País da última década: o Prouni e o FIES. No Prouni, o Estado (via abatimento fiscal), financia a matrícula dos alunos de menor renda nas instituições privadas de ensino superior. Era mais ou menos o que, há décadas, se propunha no País sob o conceito do voucher educação. Ao invés de criar e administrar repartições públicas de ensino, o Estado utiliza a capacidade disponível das redes privadas, deixa que as famílias escolham onde estudar e concentra sua ação na criação de indicadores e exigência de qualidade. Quanto papel e tinta se gastou numa discussão ideológica e inútil sobre a “privatização” da educação. O Governo Lula, de maneira inteligente, foi lá e fez. Ganharam o País e os mais pobres. No FIES, o governo oferece crédito para que os estudantes paguem a faculdade com prazo longo e juros subsidiados. Sua lógica estrutural é a mesma do Prouni: dar liberdade de escolha às pessoas e gerar condições favoráveis para uma ativa parceria público-privada na oferta de educação. Fica a pergunta: por que este não se torna o padrão de atuação dos governos na educação, também no ensino médio e fundamental? Por que continuar abrindo repartições públicas educacionais, e (como os indicadores mostram) continuar aumentando o fosso social brasileiro, ao invés de apostar em modelos transparentes de parceria entre Estado e sociedade, com o financiamento direto aos estudantes, deixando que eles escolham onde estudar? Alguém já comparou a relação custo-benefício destas duas alternativas? O Brasil fez muitas revoluções nas duas últimas décadas. Precisamos agora de mais uma. Uma revolução para a igualdade de oportunidades, que inicia com alguma coragem para revisarmos velhos conceitos. (artigo publicado, com algumas alterações, no jornal Folha de São Paulo, em 02/02/2012) Fernando Schuler é cientista político e professor do Insper
Fernando Schuler: hora de superar o estado paternalista

Lembro da entrevisa de um jovem professor de história, à época do finado debate sobre a reforma da previdência. Ele parecia um cara articulado, 28 anos, “de esquerda”. Dizia que seu sonho era se aposentar aos 53 e abrir um clube de poesia, mas que tudo se perderia com a reforma. Se ela sair, teria que repensar as coisas. Quando li aquilo fiquei pensando: “O que há com esse cara? Podia pensar em ser empreendedor, não é mesmo? Abrir uma editora, um ‘TED poesia’, uma ‘casa do saber’, sei lá. Vai lá no Sebrae, pesquisa, pede alguns conselhos. O sujeito é jovem, sem uma ruga no rosto, joelhos em dia. Compra um livro de autoajuda”. Daqui a 25 anos não sei nem se ainda vão existir livros de papel ou computadores pessoais. E o sujeito preocupado em se aposentar pelo INSS? O Brasil velho é assim. Feito de 76% de jovens com até 24 anos e preocupados em se aposentar ainda cinquentões. Isso num país que gasta 12% do PIB com Previdência, quase três vezes a média do que gastam países com mesmo perfil demográfico. Não acho que as pessoas estejam preocupadas com números ou com a “sustentabilidade fiscal”. Estamos simplesmente imersos em uma cultura política que desconfia do “mercado”, foge do risco e das escolhas difíceis. País de cultura paternalista, da qual a “esquerda” é sem dúvida a vanguarda, mas está longe de andar sozinha. O Brasil velho gosta de coisas esquisitas como o imposto sindical. Criado na Constituição de 1937, a “polaca”, o tributo sustenta hoje uma enorme máquina feita de 10.817 sindicatos de trabalhadores, 5.251 sindicatos patronais, 549 federações, 43 confederações e 7 centrais sindicais. Lembranças nebulosas nos dão conta de que o sindicalismo liderado por Lula, nos anos 70, teria defendido a livre associação sindical, o princípio elementar de que as pessoas, querendo apoiar o seu sindicato, decidam pagar por isso. O tempo tratou de apagar tudo isto. A esquerda que um dia ensaiou alguns passos de independência caiu de boca no colo quente do Estado. O Brasil velho gosta de voto obrigatório. Dia desses fui a um debate com uma professora da Universidade de São Paulo. O debate andava meio morno e resolvi dar uma provocada. Disse que precisávamos acabar com a obrigatoriedade do voto. A senhora retrucou que não. Que isso iria apenas favorecer os “mais ricos”. Na sua visão, brasileiro pobre precisa de um empurrão do governo para votar. Se não acaba ficando em casa, no domingo, assistindo ao Faustão. Olhei pra ela e me lembrei de Kant. O velho filósofo dizia que a gente só aprende a ser livre exercitando a própria liberdade. É como andar de bicicleta. As pessoas, independentemente da renda, vão aprendendo a exercitar seus direitos. Leva algum tempo, mas aprendem. Olhei pra ela e fiquei quieto. Mudei de assunto e continuei o debate. O mesmo vale para o financiamento eleitoral. Sugeri, em um seminário, que os próprios indivíduos, eleitores, apoiadores, deveriam financiar, com recursos próprios, os partidos políticos. Cada um vai lá e apoia o partido de sua preferência. Meu debatedor, bom cientista político, pareceu irritado. O Brasil não tem tradição de apoio individual a coisa nenhuma, disse ele. Ninguém põe dinheiro, ninguém acredita. Não tem jeito, o Estado tem que bancar. Ato seguinte sugeriu um aumento do fundo partidário para coisa de R$ 2,5 bilhões. Lembrei a ele que o tempo “gratuito” de TV, para os partidos, já custa R$ 500 milhões e que o fundo partidário era de pouco mais de R$ 300 milhões antes das últimas eleições. Ele olhou pra mim com cara de tio sabido e disse: “Democracia custa caro, Fernando”. O debate seguiu, e hoje estamos perto de aprovar no Congresso um fundo partidário “turbinado” de algo mais do que R$ 2 bilhões. O ponto é que vivemos em um tempo surpreendente, neste ano confuso de 2017. Há a reforma da Previdência, há a chance real de acabar com o imposto sindical e há mesmo a chance de fazer uma minirreforma política, que devolva ao voto o sentido de um direito. Há um Brasil que tenta se livrar de velhos fantasmas do Estado Novo, da velha conversa fiada de que nossa gente é incapaz de andar com as próprias pernas. Há um país que, talvez embalado por essa crise toda, tenta andar um bocadinho à frente. Oxalá. (publicado originalmente na Revista Voto, em junho de 2017) Fernando Schuler é é cientista político e professor do Insper
O Brasil precisa aprender a fazer escolhas difíceis

O ex-Presidente Fernando Henrique afirmou, tempos atrás, que o Brasil precisa de uma nova onda de privatizações. “O que puder privatizar, privatiza”, disse FH, “ou você terá outro assalto ao Estado por parte dos setores políticos e corporativos”. O diagnóstico deixou muita gente surpresa. Na algazarra das redes sociais, Fernando Henrique costuma ser tratado como um teimoso social democrata, avesso a reformas de mercado e à retórica liberalizante. Injustiça. Em seu governo, o ex-Presidente estabilizou a economia e comandou um amplo programa de privatizações. Mas isto são aguas passadas. Seu diagnóstico é para hoje. Seu foco é apontar um dos tantos caminhos que o País terá de trilhar se quiser sair desta crise, lá adiante, melhor do que entrou. O raciocínio de FH é simples: quanto mais áreas da economia funcionarem sob a logica do mercado político, mais incentivo existirá para sua “captura” – por vias legais ou ilegais. Na prática: se há boa chance de obter um financiamento a juros subsidiados no BNDES por que as empresas buscariam competitividade no mercado de crédito privado? O mesmo vale para temas de regulação e política fiscal. Os economistas Marcelo Curado e Thiago Curado conduziram um estudo mostrando que as isenções fiscais (envolvendo incentivos para a indústria automobilística, Zona Franca de Manaus e uma enorme gama de benefícios setoriais) saltaram de R$ 24 bilhões para R$ 218 bilhões entre 2004 e 2013. Ao invés de optar por um modelo de impostos baixos e igualdade diante da lei, escolhemos o caminho inverso: carga tributária alta e alocação desigual, segundo a capacidade de pressão de cada setor econômico. Curiosa lógica tropical: oneração fiscal para todos e desoneração para muitos, de acordo com critérios e regras frequentemente difíceis de compreender. A mesma lógica invade o sistema político. Exemplo perfeito é o curioso sistema de fatiamento do orçamento federal com base nas chamadas “emendas parlamentares”. Cada parlamentar pode apresentar até 25 “emendas individuais,” no valor total de R$ 15,3 milhões (ano base 2017). Os recursos vão para as regiões e prefeituras da base eleitoral do parlamentar. Servem como moeda eleitoral e criam uma enorme vantagem competitiva para os candidatos detentores de mandatos. Geram desigualdade eleitoral e dificultam a renovação política. O Governo, por sua vez, dita o ritmo da liberação das emendas conforme sua conveniência política. Patrimonialismo em dose dupla: do deputado em relação a sua base política e do governo em relação ao parlamento. O custo, como de hábito, vai para o contribuinte. O País apostou, desde o processo de redemocratização, em uma combinação explosiva: um Estado grande e interventor, com ampla capacidade de alocação discricionária de recursos, e um sistema de financiamento empresarial de campanhas. Durante décadas, incentivamos nossos candidatos, de vereador a presidente, a sentar em uma mesa e pedir dinheiro aos mesmos empresários que logo ali à frente concorreriam para administrar um sistema de abastecimento de agua, no município, ou fariam lobby, no Congresso, para obter um regime fiscal especial. Um modelo fadado a produzir os resultados que ora estamos colhendo. O problema foi, em parte, corrigido em 2015, quando o STF proibiu o financiamento empresarial de campanhas. Tratou-se da face mais simples do problema, e em grande medida ilusória. Empresários podem fazer contribuições na “pessoa física”, para não falar da praga do caixa dois. A questão central é enfrentar o lado mais difícil do problema: diminuir a vulnerabilidade do Estado brasileiro à pressão dos interesses especiais. À lógica das corporações, do lobby empresarial e do próprio sistema político. Para que isto aconteça, não há outra saída: o Estado precisa diminuir de tamanho. Fernando Henrique tem razão, neste sentido. É preciso transferir os recursos do FGTS para gestão privada e concorrencial; privatizar as empresas que produzam bens e serviços de mercado; migrar o sistema previdenciário para modelos de capitalização; contratualizar a prestação de serviços públicos não exclusivos de Estado com o setor privado (como já se faz com as organizações sociais da saúde); fechar velhas autarquias e fundações estatais criadas no período anterior à Constituição e que hoje perderam relevância social e econômica. Há uma extensa agenda aí. Uma agenda de desestatização da sociedade e despatrimonialização do sistema político. Sua execução exige clareza e liderança política. Exige mais: um novo “consenso majoritário” da sociedade voltado à modernização do Estado. Algo da mesma dimensão que soubemos produzir, nos anos 80, em torno da redemocratização do País. Não se trata de tarefa simples. Fazer escolhas difíceis nunca foi uma especialidade brasileira. Ainda sofremos para consolidar a reforma trabalhista e para fixar uma idade mínima para a previdência que países como Chile e Argentina há muito estabeleceram. Nosso maior risco, no fundo, é a inércia. Ver o tempo passar, jogar fora o esforço feito com a aprovação da PEC do gasto público, assistir o custo previdenciário corroer lentamente as contas públicas. Tropeçar na armadilha da renda média e das velhas ilusões. Envelhecer, quase sem notar, antes mesmo de nos tornarmos jovens. (publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 25 de junho de 2017) Fernando Schuler é cientista político e professor do Insper
Obsessão com identidades e histeria conservadora desafiam democracia

Num ano em que o Congresso discutiu reformas fundamentais para o país, os debates que parecem ter mobilizado mais as pessoas –e não só na arena digital– dizem respeito a exposições de arte, nudez, questões de gênero, raça e sexualidade. Qual a explicação para isso? Há consenso de que nos tornamos uma democracia mais instável, polarizada, feita de muito barulho e pouca comunicação. A lógica das políticas de identidade tem algo a ver com isso? E os novos conservadorismos? O que esperar quando questões éticas e estéticas abrangentes, que por definição nos separam, passam a definir a pauta do debate público? Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, em artigo provocante no jornal “The New York Times”, sugeriu que os temas de identidade passaram do ponto em nossa democracia. Ele afirma que o progressismo americano anda imerso em um tipo de “pânico moral em função de temas de gênero, raça e identidade sexual” e corre o risco de perder sua capacidade de tratar das grandes questões comuns. Diz que a campanha da democrata Hillary Clinton, a cada comício falando para mulheres, latinos, LGBT e afro-americanos, produziu uma legião de excluídos: os “não citados”, em boa medida galvanizados por Donald Trump. Lilla é duro: sustenta que a fixação na diversidade produziu “uma geração de progressistas narcisisticamente desligados das questões alheias a seu grupo de referência”. O objetivo era dar uma chacoalhada no Partido Democrata —o professor parece culpar a onipresença da retórica identitária pela derrota de 2016. Ecoa, de certo modo, a crítica de Bernie Sanders. E tem um ponto. Em uma entrevista, cita o guru direitista republicano Steve Bannon: “Enquanto vocês estiverem falando de políticas de identidade, nós ganharemos”. O assunto não se inscreve apenas no universo americano. O debate identitário é hoje um tema da democracia —e afeta também o Brasil. A atriz Taís Araújo causou algum ruído ao afirmar que vive num país em que as pessoas atravessam a rua quando cruzam com seu filho, negro como ela; o mesmo fez o professor Ives Gandra Martins, dizendo ser difícil viver no Brasil de hoje não sendo homossexual, negro ou índio. Ambos foram satirizados, e suas falas por óbvio contêm exagero. Mas são um sintoma. Estaríamos adquirindo traços de obsessão identitária e certa histeria conservadora, na linha descrita por Lilla? Tudo indica que sim, e é muito provável que se encontre aí uma das raízes do atual mal-estar de nossa democracia. ACORDO POLÍTICO Para começar, um passo atrás. A democracia é filha das sociedades de direitos que emergiram no mundo moderno, num longo curso de sedimentação dos valores da tolerância e igualdade de todos diante da lei. John Rawls definiu seu desafio central: obter um grande acordo entre pessoas que divergem fundamentalmente sobre temas de natureza filosófica, religiosa ou moral. Isto é, entre pessoas que seguem visões verdadeiras, ainda que mutuamente excludentes, a respeito de questões centrais da vida humana. Para Rawls, o único acordo possível deve se dar no âmbito político, não metafísico. Ou seja, num plano abaixo da retórica moral, e por isso capaz de aproximar pessoas que de outra forma viveriam em uma eterna guerra de posições. É precisamente nesse plano que se encontra a ideia da “grande sociedade” e sua organização formal à base de direitos e respeito à diferença. Movimentos identitários foram fundamentais em sua construção. É o que mostram as lutas pelos direitos civis, nos anos 1960, e pela não discriminação sexual, em nosso tempo. É o que se lê no manifesto seminal do Combahee River, grupo feminista negro que atuou em Boston de 1974 a 80 —sua razão de ser é “a crença compartilhada de que mulheres negras são inerentemente valiosas”. Ocorre que, após a Guerra Fria, assistiu-se a uma curiosa inflexão. Ao mesmo tempo em que democracias foram se tornando mais inclusivas e se consagraram novos direitos (símbolo disso é a legalização do casamento gay pela Suprema Corte americana, em 2015), a retórica da identidade e da diversidade ultrapassou em muito a noção universalista de integração de todos à sociedade de direitos, passando a funcionar como força de fragmentação do espaço democrático. Nos EUA, nota-se isso particularmente nos campi universitários e em movimentos vagamente associados ao Partido Democrata. A retórica é agressiva e a visibilidade de cada tipo de identidade é seletiva, a depender da capacidade do segmento para agir e obter legitimidade na esfera pública. O resultado é uma forma paradoxal de exclusão. A luz jogada sobre uns produz sombra logo do outro lado. É exatamente o argumento de Lilla ao se referir, como exemplos, aos trabalhadores brancos empobrecidos e a grupos religiosos. A lógica da exclusão carrega um elemento “nonsense”, que aproxima a atitude de grupos identitários e conservadores: a ideia, algo mística, de que o pertencimento a uma identidade ou crença possa produzir alguma superioridade moral em relação ao outro. Não é diferente do que se passa no Brasil. É o que torna legítimo agir com ira santa contra o lançamento de um filme que não retrata “adequadamente” a escravidão ou vetar o uso de uma vestimenta que não pertença a sua própria cultura. Tudo isso soa absurdo, mas se tornou parte do cotidiano de nossas guerras culturais. Vêm daí o veto ao direito de expressão a quem pensa diferente ou os atos hostis contra uma filósofa vista como ameaça aos bons valores (como ocorreu vergonhosamente com Judith Butler em sua visita ao Brasil). Acentua-se uma ambivalência nos movimentos identitários. De um lado, uma visão inclusiva quanto a direitos, que reage à discriminação e demanda que todos façam parte do jogo; de outro, uma visão excludente, na qual a política surge como expressão-de-si, como projeção de um tipo de pertencimento (regionalidade, raça, crença), em vez do exercício da persuasão no espaço público. “Não somos apenas indivíduos”, diz Richard Spencer, “não somos apenas almas ou cérebros, sem gênero e raça, existindo no universo. Nós temos raízes.” Spencer é guru da alt-right, aglomerado supremacista americano. Seu ponto é claro: a negação do universalismo liberal, da alteridade, da ideia iluminista de superação-de-si através da palavra e do argumento. O
Há mesmo algum problema com o modelo de negócios do Facebook?

Não tenho nada contra ou a favor do Facebook. Não conheço a empresa e atualizo muito pouco minha página na rede. Praticamente todas as (poucas) vezes em que me aventurei a discutir qualquer coisa na rede, foi frustrante. Posts rápidos, feitos no calor da hora, são um péssimo veículo para qualquer argumentação lógica e ponderada. Não tenho nenhum dado para saber se, no somatório de prós e contras, a existência do Facebook piorou ou melhorou a qualidade da democracia. Possivelmente nunca se saberá. O que se percebe é que a rede faz muita gente perder um tempo infinito bisbilhotando a vida dos outros e postando fotos e mais fotos de gatinhos, netinhos e churrascos na praia. Dito isto, acho uma grande bobagem a onda que se formou, nos últimos tempos, de atacar a empresa em função de seu “modelo de negócio”, seus “algoritmos” e pela difusão incontrolada de fake news. Quanto às fake news, vamos ser claros: o Facebook não tem nenhuma responsabilidade sobre o tema. A rede social é simplesmente uma plataforma na qual milhões e pessoas disponibilizam informações a seus amigos, e são elas as responsáveis pela falsidade ou veracidade da informação. Se uma vovó postar a foto de um gatinho falso na rede, e você compartilhar, a culpa —definitivamente— não é do Mark Zuckerberg. Alguém aí acha que a fake news criada pela comissão do Senado, garantindo não existir déficit na previdência social, é de responsabilidade da instituição Congresso Nacional? A comparação pode não ser perfeita, mas toca no ponto central: são os amantes que produzem fake news, não o sofá da sala. Quanto ao modelo de negócio, o tema é bastante simples: o Facebook é uma empresa privada, não uma ONG global. Eugênio Bucci, amigo e jornalista pelo qual tenho grande admiração, chama a empresa de “conglomerado que fatura montanhas de dólares explorando multidões escravizadas”. Não concordo. Não há ninguém escravizado pelo Facebook. Se as pessoas entram lá e colocam seus desabafos e fotos sem camisa é simplesmente porque imaginam estar ganhando alguma coisa em troca. Percebem algum valor gerado pela rede. Promovem ideias ou exibem o novo corte de cabelo, não importa. Valor é uma medida subjetiva e intransferível. Não há nenhuma deslealdade no modelo, e nenhum tipo de violência envolvida. A mais: não há nenhum problema com a montanha de dólares recebida pela empresa. Isto só mostra a montanha de valor que ela gera. Se os ventos mudarem e a concorrência se tornar mais eficiente, a montanha irá rapidamente se transformar em um baldinho de areia. Sobre os algoritmos, vejo por aí muito barulho e (quase) nenhuma informação objetiva. Vamos supor que seja verdade que alguma equação maquiavélica, guardada a sete chaves na gaveta de Zuckerberg, em Menlo Park, efetivamente favoreça o contato de cada usuário com pessoas ou ideias mais próximas de seu perfil. Vamos lá: pessoas que tem histórico de gostar de literatura receberiam mais informação sobre livros, ao invés de reality shows. O sistema faria desaparecer conteúdos com os quais não nos identificamos. Ok, isso não parece lá muito pluralista. Mas não é exatamente as pessoas fazem o tempo todo, deletando os amigos que divergem de suas posições políticas, religiosas ou morais? Seria mesmo a rede a responsável pela “tribalização”, ou é nossa própria cabeça que tende a funcionar de um modo tribal? Penso que faz falta, em nosso debate público, uma compreensão mais adequada sobre como funciona esta grande máquina processadora de escolhas individuais que é o mercado. Se alguém não estiver satisfeito com os termos do negócio proposto por Zuckerberg, ou qualquer outro, basta dar alguns cliques e sair da rede. Simples assim. A carta de alforria já vem assinada no ato da compra. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2018) Fernando Schüler É cientista político, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
A universidade e o espírito de partido

Sempre achei curiosa a figura do intelectual apaixonado por um partido político. Isto não é coisa recente. Madame de Stäel já denunciava o “espírito de partido” que impregnava a intelectualidade francesa à época da Revolução. O historiador Paul Johnson comparou o intelectual a uma espécie de “cura moderno”, tendo a ideologia tomado gradativamente o lugar um dia ocupado pela religião. Thomas Sowell tentou uma explicação: o intelectual é um tipo cujo trabalho começa e termina no mundo das ideias. Diferente do que ocorre com um médico ou engenheiro, ninguém lhe cobra, no final do dia, pelas consequências produzidas pelas suas ideias no mundo real. Essas coisas me vinham à cabeça enquanto observava o debate sobre os “cursos do golpe” que se disseminaram em nossas universidades federais, no primeiro semestre de 2018. Ao contrário de muita gente, nada disso me surpreendeu. Há muito acompanho o processo de ideologização do ensino de humanidades, em nossas universidades e escolas públicas, e o surgimento desses cursos me pareceu mais do mesmo. Talvez exista uma única novidade nisso tudo: o strip-tease. O elemento explícito do proselitismo político e da imposição do conceito enviesado desde o início. Ao invés de promover um seminário sobre democracia no Brasil e argumentar sobre o suposto golpe, transforma-se a tese em um grosseiro tipo de verdade histórica. Seria como promover um curso sobre a revolução francesa, conceito devidamente estabelecido após uma longa sedimentação intelectual e acadêmica. No caso do golpe de 2016, encurta-se o caminho: o conceito sai direto da retórica do partido para academia. Para exercitar a imaginação, imagine-se a situação inversa: um professor de inclinação política divergente decide criar uma disciplina chamada “Irresponsabilidade fiscal, crime de responsabilidade e colapso econômico no Brasil 2014-2016”. Seria grotesco, por uma razão básica: o que deveria representar um lado do argumento ganha status de leitura institucional. Agride-se um princípio clássico da ética moderna: uma ação é correta quando o princípio que a orienta pode ser considerado válido para todos. Nossos avós já sabiam disso, quando pediam que não fizéssemos aos outros o que não gostaríamos que fizessem conosco. Se a regra dos que hoje promovem este tipo de curso fosse aplicada pelos outros, no que exatamente se transformariam nossas universidades? Confesso que isso tudo me soa imensamente banal. Acho graça da tentativa de oferecer alguma dignidade ao tema, falando-se em relativização da narrativa história, ou mesmo em autonomia universitária e liberdade acadêmica. Não passa de um truque lançar mão de uma reação equivocada do Ministro da Educação, sugerindo algum tipo de intervenção na atividade dos professores. Nem o Ministro, nem ninguém, tem poder algum para fazer isso. E nem deve ter. Este é o ponto central. A força da universidade sempre residiu em um acordo de mútua responsabilidade. Professores dispõem de liberdade acadêmica, mas recusam a tentação da captura privada do espaço público, que é a própria universidade, mesmo tendo poder para agir dessa maneira. É este precisamente este acordo que não estamos sabendo respeitar, no Brasil de hoje. Aqui há um ponto interessante. O conceito de liberdade acadêmica só pode ser devidamente compreendido quando subordinado à razão de ser de uma instituição de ensino. O professor tem liberdade para discutir qualquer tema que diga respeito a sua disciplina, ponderar argumentos divergentes e sua própria convicção sobre um assunto, se julgar pertinente. Max Weber tratou disso em “A ciência como vocação”. Um texto indispensável para todos que gostam de educar. Seu ponto era claro: a sala de aula não é espaço para o profeta ou para o demagogo. Não passa de um truque a atitude de um professor que usa de sua autoridade para impor sua visão política a uma plateia de alunos em posição desigual. Mais grave ainda é se isto for feito desde uma posição institucional, naturalizando-se como verdade histórica, a partir do título de uma disciplina, aquilo que não deveria passar de um objeto cuidadoso de argumentação e contra-argumentação. O que assistimos, nesse episódio todo, é um capítulo a mais na confusão entre o público e o privado que marca nossa tradição institucional. Ledo engano imaginar que o padrão patrimonialista, que marca nossa formação, deveria se expressar apenas no mundo político. Ele surge também na universidade, a partir da captura do espaço público de educação pela retórica, por definição privada, do partido e da facção. No fundo, um sinal a mais da fragilidade de nossa cultura republicana e do quanto ainda temos que avançar. (originalmente publicado na Folha de São Paulo, em março de 2018) Fernando Schüler é cientista politico e professor do Insper.
Seria Bolsonaro um direitista de esquerda?

Dias atrás eu escutava um ilustre intelectual, apoiador de Bolsonaro, sugerindo o seguinte: essa campanha não é sobre os rumos da economia, regra de ouro ou reformas estruturais que o país precisa fazer. É sobre coisas bem mais elementares. Há uma sensação de insegurança em nossas cidades e de incerteza em nossa democracia. As pessoas desejam ordem. O ponto de Bolsonaro não é discutir se a idade mínima da aposentadoria deve ser aos 60 ou 65 anos, mas insistir em uma pergunta muito simples: quando seus filhos saem à noite, você tem certeza de que eles irão voltar? Ok, tudo isto faz parte de uma estratégia. Bolsonaro está longe de ter um programa estruturado para a segurança pública. Ele sabe que isso conta muito pouco em uma eleição. Seu ponto é encarnar a imagem do homem providencial que bate no peito e dá conta do problema. Vai daí o repertório de frases de efeito e a agenda genérica envolvendo a crítica aos direitos humanos, amplo direito ao porte de arma, redução da maioridade penal e aprovação do chamado excludente de ilicitude, que, no limite, dá carta branca para a polícia “fazer o seu serviço”. O foco de Bolsonaro parece bastante claro: ele confia que esta é uma eleição pulverizada e que é possível a um candidato chegar ao segundo turno com menos de 20% dos votos. Isto posto, sua posição simpática ao regime militar (sob muitos aspectos inaceitáveis) estão longe de ser um problema. Pesquisa do Pew Research Center mostrou que 38% dos brasileiros simpatizam com a ideia de um governo militar, percentual acima da média latino-americana. Entre os que não têm ensino médio completo, o apoio aumenta e vai a 45% da população. Mesmo contando relativamente pouco para o sucesso ou insucesso eleitoral, vale perguntar qual é, afinal de contas, a visão econômica deBolsonaro. Sua retórica é incerta, mas não é difícil ter uma ideia aproximada do que pensa o deputado observando suas votações no Congresso. Se tomarmos sete votações estratégicas, de um ponto de vista econômico, teremos o seguinte quadro: Bolsonaro se absteve na votação da Lei da Terceirização; apoiou a PEC do teto, o fim da participação obrigatória da Petrobras no pré-sal, a reforma trabalhista e a criação da TLP; foi contra a reforma da Previdência e a recente Lei do Cadastro Positivo. Na votação sobre os aplicativos de transporte urbanos, não compareceu. Este histórico não autoriza, ao menos não de forma nítida, a definição de Rodrigo Maia, segundo a qual Bolsonaro seria um tipo de direita, nos valores, e de esquerda, na economia. A ideia é sedutora. Ao contrário do que ocorreu no mundo anglosaxônico, com sua mescla de conservadorismo cultural e liberalismo econômico, teríamos criado a síntese brasileira: o direitismo de esquerda. Mas o fato é que isto é apenas uma meia verdade. Bolsonaro é um personagem dúbio. Ele diz que até pode ser a favor da privatização da Petrobras, mas com uma golden share e dependendo de quem serão os compradores. Sobre a autonomia do Banco Central, foi bastante objetivo, defendendo “mandatos e metas de inflação claras, aprovadas pelo Congresso”. Sua aproximação a Paulo Guedes e economistas liberais, que parece bastante sólida, sugere um personagem em transição entre o nacionalismo folclórico, do início da carreira, a posições pró-mercado pontuadas por eventuais recaídas, marcadas pela fraseologia contra o sistema financeiro e coisas do tipo. Bolsonaro é um caso típico de populista em um dos sentidos sugeridos por Joel Pinheiro da Fonseca: na aposta na lógica da divisão social, do nós contra eles, na ideia vaga, ainda que sedutora, dos “cidadãos de bem contra a elite progressista que quer corrompê-los”. Neste ponto, ele não se distingue muito da esquerda, na mão inversa. É uma retórica eficiente, nestes tempos em que a democracia foi assaltada pela guerra cultural. Quanto à agenda econômica, não é clara a associação de Bolsonaro ao populismo. Suas posições recentes, no Congresso, não autorizam objetivamente este enquadramento. O ponto é que tudo isso parece andar distante da demanda dos eleitores e do debate que se estabeleceu, pelo menos até agora, na corrida eleitoral. O futuro dirá para onde exatamente caminhamos. Fernando Schüler É cientista político, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.