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O que é uma sociedade justa?

Fernando Luis Schuler, convidado do Café Filosófico, do Programa CPFL Cultura, reflete sobre o conceito de justiça política

A lógica infernal da burocracia no Brasil

Artigo originalmente publicado na revista Época Por que não conseguimos reduzir a burocracia no Brasil? Tenho um amigo que resolveu abrir uma MEI e virar “micro empreendedor individual”.   O cara foi lá, abriu a empresa e começou a trabalhar. Prestou alguns serviços até que um cliente disse que só lhe pagaria se ele abrisse uma conta pessoa jurídica. O sujeito foi no banco abrir a conta e lhe pediram a carteira de identidade. Ele havia perdido a carteira mas tinha o passaporte e a carteira de trabalho. Não deu. Foi no Poupatempo fazer a identidade e lhe pediram a certidão de nascimento. Mostrou passaporte e outros papéis mas não adiantou. Precisava da certidão. Ele era novo em São Paulo e pediu para um parente revirar as coisas do apartamento, em Curitiba. O cara achou e mandou pelo correio. De volta ao Poupatempo lhe pediram dez dias para entregar a carteira. Depois voltou no banco, entregou a papelada, desta vez com a carteirinha, e lhe prometeram que em até dez dias terá uma resposta da análise dos documentos. O dinheiro ainda não recebeu, mas, como bom brasileiro, não desiste nunca. A burocracia no Brasil é sempre perfeitamente lógica. Não é lógico mostrar a identidade pra abrir a conta no banco? Além disso, cá entre nós, custa alguma coisa mostrar a certidão para fazer a nova carteirinha? Custava alguma coisa o sujeito andar com o documento em uma pasta, organizado, ao invés de deixar em uma gaveta no apartamento antigo? Qual é exatamente o problema? Diria que é exatamente este: cada exigência burocrática tem sua lógica e poderia ser, com alguma dose de organização, atendida por qualquer pessoa ou empresa. É exatamente este o caso das regras que compõem o cipoal do pagamento de impostos, no Brasil. Cada uma tem sua explicação. Meu contador, aliás, é mestre em me explicar, sempre que eu fico nervoso, a perfeita razão de cada uma. No conjunto, é por causa delas que estamos em 181º entre 190 países no ranking do Banco Mundial que mede a facilidade para pagar impostos. Por isso nossas empresas gastam 2.038 horas todos os anos para lidar com tributos, contra 163 horas na média dos países da OCDE. Também é por isso que estamos em último lugar no ranking de encargos trabalhistas elaborado entre 29 grandes economias pela Rede Internacional de Contabilidade e Consultoria UHY, com sede em Londres. Não faz sentido limitar os contratos temporários a noventa dias? Não é lógico pagar 40% de multa sobre o fundo de garantia do funcionário demitido? Não é lógico, aliás, que o dinheiro do fundo seja gerido por um conselho de vinte e quatro pessoas, junto à Caixa Econômica? O pessoal não iria torrar tudo, se cada maluco pudesse decidir por conta própria o que fazer com o seu dinheiro? É tudo perfeitamente lógico, não é mesmo? Semana passada, o Ministro Henrique Meirelles, prometeu reduzir a burocracia para pagar impostos. A promessa já havia sido feita no ano passado, mas não é esse o ponto. Meirelles tem crédito, entre outras coisas por que foi o arquiteto da PEC do limite do gasto público. Ele diz que há um time de técnicos do Ministério trabalhando para descobrir que regras, exatamente, é possível “desregrar”. Me lembrou o novo vereador paulista, Fernando Holiday, e sua ideia de fazer um “revogaço” na cidade de São Paulo. Ao invés de criar novas regras, descriar. Achei a ideia muito boa. Oxalá ela inspire vereadores, deputados e grupos de cidadãos, Brasil afora. Apenas acho que nosso problema é muito mais amplo do que suprimir essa ou aquela regra tributária ou trabalhista. Vamos lá: por que precisamos de um título de eleitor? Por que cargas d’agua precisamos (eu mesmo, desatento, descobri isso tempos atrás) renovar a carteira de motorista a cada cinco anos? Pra que o pobre coitado que acabou de ficar desempregado tem que gramar na fila de uma agência do Sine para tirar o seguro desemprego? Revirar essas coisas é mexer com o Brasil barroco que nos tornamos. Não são apenas as duas mil horas que as empresas gastam para lidar com seus impostos. É o tempo incontável que perdemos todos os dias para carimbar o óbvio em cartórios e pagar multas de R$ 3,51 porque não fomos votar nos dois turnos das últimas eleições. País barroco e imensamente difícil de mudar. Por uma razão: em que pese concordamos que toda essa burocracia, no conjunto, passou do ponto, garanto que a opinião será outra quando passamos a analisar regra por regra, documento por documento, multa por multa. A cada regra corresponderá uma certa “racionalidade” e um grupo disposto a defendê-la. E mais: a supressão de cada regra não fará grande diferença na vida de ninguém, mesmo que a soma de todas as regras possa piorar muito a vida de todo mundo. Por essa razão prosaica, o desejo abstrato de fazer a grande mudança pode ser forte, mas é fraco o incentivo concreto para fazer cada reforma. É exatamente o mesmo problema enfrentado pelos projetos de redução do tamanho do Estado. A extinção de qualquer órgão público não resolverá o problema fiscal, ainda que uma redução coordenada de muitas repartições, autarquias, fundações, empresas e fontes de gastos não prioritários poderá oferecer uma resposta. Arrisco dizer que nos tornamos um país campeão em burocracia essencialmente porque o individuo, o “sem corporação”, é sub representado em nosso mundo político. Ninguém para pra perguntar, numa tarde quente de Brasília, ao se discutir uma nova regra, se ela é estritamente necessária e quantas horas da vida de um cidadão ela vai custar. É no silêncio dessas tardes quentes que perdemos a mão. Há um problema ético aí. Um punhado de gente por vezes bem intencionada toma decisões e todos pagam a conta. De bico calado. Encaramos o cartório, carregamos nossos documentos, nos adaptamos. Formamos filas, nos domingos de votação, pra “justificar a ausência”, pagamos as multas e corremos atrás da papelada. E de vez em quando damos um jeitinho. Não queremos saber

O que é mais importante: eliminar a pobreza ou combater os mais ricos?

Publicado originalmente na revista Época Alguém aí está preocupado com o tamanho da conta bancaria de Jeff Bezos? Bezos é o criador e principal acionista da Amazon. De vez em quando eu adquiro um livro por lá. Leio um trecho grande que eles disponibilizam no site e, se achar bacana, vou lá e compro. Não dou a mínima para a posição de Bezos no ranking de bilionários globais. Suspeito que ele também não. Eu leio meu livro e ele ganha alguma coisa com isso. Estamos quites. O mesmo vale para um espanhol discreto chamado Amâncio Ortega. Filho de um ferroviário de Valladolid, Amâncio começou trabalhando como office-boy em La Coruña, aos quatorze anos. Nos anos setenta criou a Zara e fez uma pequena revolução no varejo, não isenta de altos e baixos. De vez em quando compro uma camisa por lá. Sorte de quem comprou ações da Zara, tempos atrás. A valorização foi de 580% entre 2008 e 2016. Para uns, a Zara trabalhou bem e muita gente investiu na empresa para ganhar algum dinheiro. Para outros, o capitalismo “concentrou” riqueza. Ortega e Bezos fazem parte da lista de oito bilionários que a ONG global Oxfam, em relatório recente, afirma possuírem uma riqueza equivalente à metade mais pobre dos seres humanos. Segundo a Oxfam, se trata de uma aberração. Talvez seja mesmo. Talvez o mundo fosse melhor sem essa turma de bilionários abrindo lojas reais e virtuais, vendendo livros, roupas e oferecendo ações no mercado. Talvez não. Vai que o problema esteja do outro lado da pirâmide. Na falta. É o que vamos discutir rapidamente a seguir. O relatório sustenta que o rendimento dos mais ricos, mundo afora, não é proporcional ao valor efetivamente adicionado à atividade econômica. Inútil perguntar como os técnicos da Oxfam fizeram esta conta. Não há, por óbvio, cálculo nenhum. Apenas uma colagem de notícias dispersas e narradas de um certa maneira. Elas vão desde a existência de paraísos fiscais, passando pela esperteza dos contadores que fazem planejamento tributário, privatizações russas, subsídios e isenções fiscais, políticas de austeridade, pela destruição de terras indígenas no Brasil até o lobby da indústria farmacêutica contra a Tailândia e a crise na indústria têxtil de Bangladesh. A colagem produz uma narrativa trágica do mundo atual. Um “sistema” ordenado para beneficiar o 1% mais rico e liderado por gente que sabe o que faz. A colagem também funciona para a estatística. O relatório diz que a riqueza dos 62 seres humanos mais ricos cresceu 45% entre 2010 e 2015, enquanto a metade mais pobre perdeu 38%. O mesmo gráfico, porém, mostra que, nos dez anos anteriores, a riqueza da metade mais pobre cresceu 3,5 vezes mais do que a conta bancaria dos 62 felizardos. O que isto significa? O capitalismo era bacana até o natal de 2010 e se tornou “obsceno a partir de 2011? Perfeita falácia estatística. Padrões de renda e crescimento econômico apresentam enormes variações de curto prazo, mas é possível perceber uma tendência ao longo do tempo. O relatório da Oxfam traz à tona mais uma vez uma das perguntas fundamentais da nossa época: devemos, como sociedade, priorizar a eliminação da pobreza ou o combate aos mais ricos? Alguém sempre poderá dizer que as duas respostas estão erradas. Que a prioridade deve ser bem mais modesta: preservar a liberdade, a igualdade diante da lei e não ficar imaginando coisas. É possível. Mas por ora deixo de lado essa alternativa e concedo que tenhamos que decidir sobre um conceito de “justiça social”. E há duas opções: a guerra aos ricos ou a guerra à pobreza. Os que optam pela guerra aos mais ricos não chegam a dizer, em regra, que os 50% da base da pirâmide está mais pobre porque um punhado de bilionários está enriquece demais. Mas essa é a sua mensagem. Trata-se de um exercício de correlação com uma vaga causalidade. Também não se explica em que consistiria uma “desigualdade razoável”. Vamos imaginar que a riqueza da metade mais pobre correspondesse à fortuna dos 800 mais ricos, ao invés de oito. Faria alguma diferença? Quem acha que a desigualdade é importante deveria definir essas coisas, dizer qual é, afinal de contas, a linha vermelha de assimetria de renda que não devemos cruzar. Ou quem sabe bastem apenas as impressões e intuições de quem escreve um relatório? Não sei. Fui em frente. Meu ponto: concentrar o foco de uma visão sobre a justiça social no combate à desigualdade ou aos mais ricos é simplesmente um erro. Entre 1990 e 2010 (o próprio relatório da Oxfam reconhece isto), a proporção de pessoas vivendo na extrema pobreza caiu de 36% para 16%. Houve um incremento da igualdade entre os países, ainda que um aumento da desigualdade de renda em países avançados como os Estados Unidos, França e Inglaterra, assim como na China e na Índia. A revolução tecnológica produziu ganhos assimétricos. Os muito ricos ganharam, mas ganhou também uma enorme e multiforme camada de trabalhadores pobres do mundo em desenvolvimento. É o caso da ascensão da chamada “classe C”, no Brasil. Nada muito diferente do que ocorreu na maioria dos países latino-americanos. A própria ONU identificou o equívoco da “narrativa da desigualdade”. Eliminar a pobreza extrema do planeta até 2030 é a primeira de suas “metas para o desenvolvimento sustentável”, lançadas em 2015. A ONU acertou o foco. Ninguém daria a mínima para a desigualdade se não fosse a existência da pobreza. Este é o ponto enfatizado pelo filósofo Harry Frankfurt, professor em Princeton e autor de On Inequality. Não há um problema ético na distância que separa a renda da classe média bem estabelecida e dos mais ricos. Se todos tivessem o suficiente, ninguém daria atenção ao valor das ações de Amâncio Ortega no pregão de segunda-feira. O ponto é que errar o foco em um tema delicado como este acaba por produzir imensos equívocos na formulação de políticas públicas. No Brasil a carga tributária alcançou 32,7% do PIB em 2015. Será mesmo que nosso problema é aumentar

El Caballo e a sedução das grandes palavras

(artigo publicado na Revista Época, em novembro de 2016, por Fernando Luís Schüler) “No futuro, todos que não forem partidários de Fidel, serão acusados de imoralidade”, escreveu o cronista Miguel Bauza, em um artigo publicado no jornal Bohemia, em dezembro de 1955. À época, Fidel achava-se na cidade do México, preparando o desembarque guerrilheiro na Ilha, e ainda havia imprensa circulando livremente pela Ilha de Cuba. Não demorou muito para que a profecia de Bauza se fizesse história. Infinitas histórias. Uma delas foi a de Mario Chanes, morto em 2007, no exílio. Mário desembarcou com Fidel a bordo do Gramna e lutou na Sierra Maestra. Acreditava na promessa de uma democracia para Cuba. Ainda em 1959, divergiu dos rumos da revolução, foi condenado e encarcerado por 31 anos, tornando-se o preso político mais longevo do mundo. Outra foi a história de Pedro Boitel, a jovem promessa da revolução, que em 1960 ousou se candidatar a uma posição na federação universitária de Cuba, contra a orientação de Castro. Encarcerado, condenado a 30 anos de prisão, morreu em 1971, depois de uma greve de fome de 53 dias, com a mãe, antiga conhecida de Fidel, em vigília ao lado do presídio de Castilho del Príncipe, em Havana. Pedro e Mário não cometeram crime algum. Eram mesmo revolucionários de primeira hora. Mas cometeram, como muitos cubanos, nestes 58 anos, o grande pecado anunciado por Bauza. Castro chega ao poder no ano novo de 1959 e lá permanece até sua morte em novembro de 2016. Formalmente, deixou a função de Presidente de Cuba e Chefe das Forças Armadas em 2006, mas manteve o poder em família, até o fim, com seu fidelíssimo irmão Raul. Em qualquer conta que se faça, Fidel foi o mais longevo ditador da era contemporânea, superando mesmo o norte-coreano Kim Il-Sung, que permaneceu por 46 anos no poder. Há algumas unanimidades nos juízos que sobre ele se fazem: a obsessão quase doentia pelo poder, a autoconfiança quase mística, o carisma. Há também controvérsias. A maior de todas seguramente é sobre como foi possível preservar um regime socialista ortodoxo durante todo este tempo, muito além da dissolução do bloco soviético. Há muitas respostas. Carlos Alberto Montaner possivelmente exagere quando diz: pelas mesmas razões que a ditadura da família Kim permanece no poder, na Coréia do Norte. Ok, há algo que ver com isto. Há o aparato repressivo, o sistema do medo. Mas seguramente o tema é mais complexo. Os historiadores terão, doravante, tempo e material suficiente para desvendar o mistério. Fidel é filho de Angel Castro, imigrante galego chegado a Cuba em 1898. Angel foi um self made man cubano. De cortador de Cana, trabalhando para a United Fruit Company, terminou seus dias como um grande proprietário de terras em Birán, ao norte de Cuba. Foi-se aos 80 anos, poucas semanas antes do desembarque do filho rebelde na praia Las Coloradas, a bordo do Gramna. Graças à seu sucesso empresarial, pode oferecer a melhor educação a Fidel, incluindo os anos de ensino intermediário no Colégio de Belém, de orientação jesuíta. Instituição devidamente expulsa da Ilha, depois da revolução. Angel tentou, durante anos, fazer com que o filho abandonasse a política, sem sucesso. Fidel ingressa na Universidade de Havana em 1945, como estudante de direito, e imediatamente mergulha em um ativismo político desenfreado. De estatura elevada, exímio orador, ávido por sucesso, surge como “el caballo”, o bicho das guerras estudantis da Havana dos anos 40. Ora podemos vê-lo embarcando da tentativa de invasão de Santo Domingo; ora discursando, com os olhos vidrados, ao lado da estátua Alma Mater, nas escadarias da Universidade; ora pondo em ação seu faro midiático, como no translado do sino da independência, o Demajagua, para a Universidade de Havana, em novembro de 1947, em uma ação espetacular contra o governo do Presidente Ramon Grau. Data desta época sua conversão ao marxismo. Na virada dos anos 50, torna-se um revolucionário profissional. Deixa que Mirta, sua primeira mulher, viva em um quarto de hotel no centro de Havana, quase sem dinheiro, com o filho pequeno. Mirta depois o abandona. Se casa com um jovem inimigo político de Castro, filho do embaixador de Cuba na ONU. Fidel não lhe perdoará. Anos depois, literalmente, sequestra o filho, Fidelito, para viver na casa de amigos, em seu exílio mexicano. No dia 26 de julho de 1953, à frente de um grupo mal preparado de 160 combatentes, faz sua aposta mais ousada, com a invasão do Quartel de Moncada. A ação termina com 61 mortos, é um fiasco, mas serve para transformar Fidel em um ícone internacional. Recebe um julgamento aberto, e lhe é permitido fazer a própria defesa. Com menos de dois anos de prisão, é anistiado. A tomada do poder, em janeiro de 1959, foi sua obra prima. Na Sierra Maestra, cria o mito dos “barbudos”, jovens idealistas cujo único objetivo era a libertação de Cuba do tirano Fulgêncio Batista, a reconstrução democrática, a convocação de eleições livres. Uma vez no poder, empossou um presidente fantoche, Manuel Urrutia, e em poucos meses suprimiu todas as “retrancas” institucionais que poderiam limitar de algum modo seu poder. Esqueceu-se das eleições, proibiu os partidos políticos, fechou o parlamento, promoveu um amplo expurgo na Universidade de Havana, fuzilou alguns milhares de opositores (fala-se em quatro mil, nos três primeiros anos da revolução, mas as estatísticas são imprecisas). Fechou todos os órgãos de imprensa independentes, incluindo a tradicional revista Bohemia, a os jornais Prensa Libre e o Diário de la Marina, este último fundado em 1832. O “método” era sempre o mesmo: o progrom de estilo fascista, a invasão da redação pela turba militante, a conivência policial, e logo a fuga dos chefes de redação e proprietários para alguma embaixada próxima. Foram os anos de ouro do panóptico sinistro da Ilha de Pinos, o presídio modelo que abrigava, no início dos anos 60, mais de oito mil presos políticos. No poder, Castro enuncia a equação demiúrgica que lhe permite prosseguir no comando da Ilha, indefinidamente: “a

Faz sentido ser apaixonado por um partido político?

Publicado originalmente na Revista Época O apaixonado é frequentemente um tolo, ensinou Roland Barthes. Barthes se referia à paixão amorosa. A paixão louca dos amantes, dos namorados. Dos amores eternos e dos impossíveis, desses que a gente vê nos filmes. Não faço ideia do que Barthes diria de um sujeito apaixonado por um partido político. Ou pior: por um político de carne e osso. Um prefeito, governador, presidente ou ex-Presidente. De minha parte, teria um bom nome a dar a esse sujeito, que prefiro não usar aqui. Digo apenas que acho o passionalismo partidário um tanto ridículo, ainda que eficiente para quem dele se aproveita para chegar – ou se manter – no poder. Sobre isso, tive uma experiência interessante, dias atrás. Escrevi um artigo a respeito das investigações sobre Lula. Havia me impressionado a reação apaixonada e violenta da entourage lulista contra as investigações do Ministério Público e da Política Federal, e resolvi escrever sobre o assunto. Meu ponto era apenas dizer que o país tem instituições, que é importante que elas possam agir com serenidade, e que Lula deve der investigado como o seria qualquer outro brasileiro. Que isto era importante, no caso de Lula, precisamente por ele ser, como costumam frisar seus apoiadores, o “mais importante líder político deste país”. Recebi umas 400 mensagens. 30% delas de apoiadores do ex-presidente. 100% furiosas. Não dá pra citar todos os argumentos – diria “fragmentos”, num tom barthesiano – mas a coisa vai por aí: Lula é inocente/Não deve ser investigado/o Ministério Público, Polícia Federal e judiciário são instituições de araque/outros partidos também roubam/a mídia é de direita/querem dar um golpe como fizeram com Jango e JK. Me surpreendeu a inclusão de “JK”. Na faculdade aprendi que o JK era de “direita”. Talvez fosse para dar “amplitude” ao argumento. Mas esse não é o ponto. Gostei das mensagens: pude ampliar minha coleção de fraseologia jus esperniandi. Uma fonte inesgotável de bolinhas de sabão ideológicas, sempre com o mesmo núcleo: a mídia, o golpe, a direita. O que realmente me surpreendeu foi não receber sequer uma única mensagem dizendo: “podem investigar, nós confiamos na honestidade do Lula”. Ou, algo mais sofisticado: “é bom investigar. Lula é nosso líder (entre outras razões) porque é honesto. Se ele não for, ao menos saberemos e poderemos rever algumas posições”. Mas nada. Nem uma mísera mensagem nessa direção. O intrigante seria esta nossa atitude em qualquer tema relevante da nossa vida. A papinha do bebê, por exemplo. Imaginem a mãe dizendo: “ok, há suspeitas de que a papinha que usamos é tóxica, mas não quero saber. Conversa da concorrência, vamos continuar comprando”. Pense. Qualquer assunto: a ração do gato, o colégio das crianças, a erva do chimarrão, a marca do silicone. Você nunca vai escutar a seguinte frase: “vou colocar esse silicone amanhã. A Anvisa diz que a marca é suspeita, mas não quero saber. Confirmei a cirurgia”. A pergunta a fazer é: se não agimos assim com as nossas coisas, então por que tratamos desse jeito nossas escolhas políticas? Por que, diante de informações que não nos agradam, tapamos os ouvidos e cantarolamos, como um criança mimada? Por que, de antemão, em vez de ponderar os fatos, resolvemos que a ração do gatinho é ótima, ainda que denunciada pelo conselho de veterinária? Em vez de prestarmos atenção às investigações do Ministério Público, preferimos entrar na hashtag “lulaeuconfio” e ficar gritando “é tudo uma conspiração da direita!” A questão mais geral é: há alguma “racionalidade” na paixão política? Arrisco dizer que sim. A explicação vai na linha do que o economista americano Anthony Downs chamou de “ignorância racional” do eleitor. A tese diz o seguinte: um vez que o voto de cada indivíduo decide quase nada, numa eleição, não é lógico investir muito tempo buscando – seriamente – informação sobre candidatos, políticas públicas, etc. A alienação não seria uma decisão irracional. Mais: quando o sujeito compra um celular desta ou daquela marca, ele toma 100% da decisão e arca com 100% do custo da sua escolha. Se o treco não funcionar, é ele quem arca com as consequências. Na política é diferente. Se ele escolher errado, todos vão pagar a conta. O custo é socializado, mas ele pode privatizar o benefício de manter sua “coerência”. Inventa uma explicação qualquer e toca a vida pra frente. Tudo isso funciona como um convite à irresponsabilidade. Não deveria ser assim, mas acabamos lidando com a política como lidamos com o futebol. Nos entregamos, xingamos a mãe do juiz, dizemos que está tudo arranjado. Nós sabemos de tudo. Inclusive que “não vai dar nada”, se tudo que dissermos não passar de uma grande besteira. A paixão política é assim, uma forma “saborosa” de alienação. Antes que alguém tenha um chilique, digo que isso ocorre, em maior ou menor grau, com todos os partidos. Democratas, PSDB, PMDB. Até pelo recém-criado “partido da mulher brasileira” deve ter um ou outro apaixonado. Mas o lulo-petismo, vamos convir, é, de longe, o caso mais agudo. Se pudesse sugerir alguma coisa, recomendaria que as pessoas fossem um pouco mais criativas: que se apaixonem por uma grande ideia. A liberdade, por exemplo. Ou a justiça, os direitos humanos. A livre escolha educacional (uma das minhas, reconheço). A filantropia, quem sabe. Mas sempre com um chá de camomila por perto. A política pode ser feita com um sentido de missão e um senso de responsabilidade, como sugeriu Max Weber. O primeiro serve como ímpeto, o segundo como comedimento. Não é uma equação fácil, nestes tempos nervosos, mas é a melhor para a democracia, além de preservar velhas e boas amizades. Daí meu gosto todo especial pela frase de Camus: “se houvesse um partido daqueles que não sabem se têm certeza, eu faria parte dele”.