A ponte do rio das Antas

A ponte ruiu em setembro do ano passado. Foi aquela enxurrada, no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro que ligava Nova Roma do Sul ao mundo se foi. Os governos estadual e federal colocaram a nova ponte no orçamento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mobilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto, a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6 milhões, ponte simples que resolve o problema da comunidade. “Ainda sobrou um milhão”, diz o presidente da Associação que comandou o processo. “A comunidade agora vai se reunir”, diz ele, “para ver o que fazer com o dinheiro”. Quando li sobre isto me lembrei de Tocqueville. De sua seus relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena escala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos de 1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-se para tudo, e aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Não apenas como uma forma resolver problemas, mas como um modo ativo de exercício da democracia. Ao invés de esperar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comunitário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de Nova Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Tocqueville provocou contando como milhares de americanos haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parecemos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas acontecendo no País. E vale à pena prestar atenção. A colônia italiana e alemã tem uma longa tradição de associativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”, como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu, neste episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra, ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas uma ponte? Nova Roma tem coisa de quatro mil habitantes. É evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali. “Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger Bregman escreveu um livro instigante, “Humanidade: uma história otimista do homem”, argumentando que foi exatamente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jonathan Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o auto interesse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que manda um pix com um pedacinho de sua poupança para pagar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que depois desfila em um velho Aero Willis, festa de inauguração. E disso tudo extrai uma secreta felicidade. Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo. O Governador Eduardo Leite explicou que o Estado tem um projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O problema não deste ou daquele governo, mas da estrutura da máquina pública, no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso Estado é eficiente para executar um programa de distribuição de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em larga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quando a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Economy, ocupamos o constrangedor 130º lugar, em eficácia governamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito aprendeu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a depender o mínimo possível dos serviços do governo. A notícia interessante é que o País foi desenvolvendo um contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade, ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engrenar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo deve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Paulo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as Organizações Sociais, na reforma do Estado conduzida por Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pesquisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma OSESP, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais públicos do País. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que permitiu reduzir 20 para perto de 11 meses o tempo de construção das escolas infantis, em Belo Horizonte, fazer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da administração pública atual: governo focado nas funções estratégicas; setor privado fazendo a execução e a gestão, na ponta. Seja uma empresa ultra especializada, seja uma associação comunitária, no interior do Rio Grande do Sul. É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocqueville descreveu a América do início do século XIX. Na última edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição, entre 142 Países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei de perto a doação de mais de R$ 170 milhões para a Fábrica de Vacinas, do Instituto Butantan. A questão é como transformar isto em
Carlos Lacerda: o político do tudo ou nada

“Não gosto de política…gosto é do poder. Política pra mim é um meio para chegar ao poder”, diz Carlos Lacerda, em “Depoimento”, publicado em 1978, um ano após a sua morte. De fato, a paciência não era sua maior virtude. Em 1955, eleito JK, Lacerda defende a anulação das eleições. Juscelino não havia feito maioria, seu meio milhão de votos sobre Juarez Távora eram votos dos comunistas. Às favas com o jurisdicismo da ala legalista da UDN. O caso era apear Juscelino, e logo Jango, do poder. Lacerda tinha pressa. Em abril deste ano, Lacerda faria cem anos. Nos manuais de história, ele é o corvo da terceira república. O apelido foi dado pelo pessoal de A Última Hora, de Samuel Wainer. Pegou. Lacerda mesmo incorporou o pássaro negro a sua propaganda. Proscrito da vida publica ainda relativamente jovem, assim prossegue. Nenhuma comissão da verdade pede o reexame de sua morte. Seu arquiinimigo, Getúlio Vargas, chefe de um regime de exceção de década e meia, com sua guarda pessoal, sua polícia política, que fechou o Congresso, extinguiu os partidos, prendeu, torturou, prossegue como herói da historiografia oficial. Em parte, isto se dá pela sina incontornável da história: Lacerda foi um político derrotado. Nos dezenove anos da “república populista”, andou sempre no avesso do poder. Termina derrotado pelo regime militar, que ajudara a nascer, e que o baniu da vida política. Lacerda chegava à maturidade de seus 50 anos, em 1964. Aspirava à presidência, queria ser o candidato da “revolução”, nas eleições de 1965. Errou feio. De certo modo, terminou como Brizola, tolhido da chance de deixar um legado, como o fez Juscelino, e, por óbvio, Getúlio. Brizola, longevo, ainda sobreviveu. Teve sua chance, na redemocratização. Lacerda se foi em 1977, inglório, morto de uma complicação cardíaca na clínica São Vicente, na Gávea. Vem daí o mérito do livro recém lançado, de autoria do historiador Rodrigo Lacerda, “A republica das abelhas”. Rodrigo é um escritor premiado, doutor em história pela Universidade de São Paulo. É também neto de Carlos Lacerda. De cara, isto o livra do debate sobre o “distanciamento”, do historiador. “Tentei tirar partido disso”, diz Rodrigo. E conseguiu. Rodrigo toma o avô como narrador de sua própria história e produz um livro cativante. Algo que ele mesmo chama, “por falta de definição melhor”, um “romance histórico”. Não gosto da expressão. Um livro de história sempre será, em maior ou menor medida, uma obra de ficção. A ficção sobre o tempo que se foi e do qual recolhemos os pedaços. Rodrigo recolhe os cacos da história dos Lacerda, desde o avô de Carlos, Sebastião, abolicionista e republicano de primeira hora, e estabelece seu ponto de vista. Rodrigo conta a história do atentado da Rua Tonelero. Daria um bom hobbie colecionar versões sobre o acontecido, naquela madrugada, em Copacabana. Há livros de história que asseguram tudo não ter passado de uma jogada para incriminar Getúlio, a confissão do negro Gregório, o ferimento de Lacerda, tudo mentirinha. Quem se importa? O tempo vai apagando seus rastros. O fato é que Rodrigo escreve um livro cuidadoso, como devem ser os livros de história. Seu maior achado foi transformar Lacerda, desde seu jazigo, no cemitério São João Batista, em um homem ponderado. Na classe média carioca, com alguma informação e bastante idade, Lacerda é lembrado como governador enérgico e competente, o primeiro do então recém criado Estado da Guanabara, na primeira metade dos anos 60. Seu governo universalizou o acesso ao ensino primário, chegando a publicar um decreto prevendo processo para os pais que não matriculassem seus filhos na escola. Modernizou a gestão, tornou obrigatório o concurso público, investiu em obras estratégicas, estação guandu, os túneis Rebouças, Santa Bárbara, mandou fazer o parque do Flamengo, projeto de Lota Macedo Soares, vivida por Glória Pires no filme Flores raras. Lacerda afirmou que sempre quis ser escritor, mas deixou sua melhor memória como gestor público. Lacerda começou como aspirante a dramaturgo. Sua primeira peça, O Rio, estreou em julho de 1937, no Teatro Boa Vista, em São Paulo. Criação de seus vinte e poucos anos, foi recebida como uma obra de vanguarda, elogiada em O Globo como “o mais absoluto desrespeito a todas as regras secularmente estabelecidas no teatro”. Graciliano Ramos não gostou: “não há drama destes retalhos de vidas incongruentes. Não sei se é teatro”. Lacerda ainda escreveria A Bailarina Solta no Mundo e Amapá. Sua paixão intermediária foi a tradução. São mais de 30 obras. Julio Cesar, de Shakespeare; A vida de Ivan Ilitch, de Tólstoi; Minha mocidade, de Churchill. Ainda na noite do 31 de março, 1964, depois de passar o dia em guerra, no Palácio da Guanabara, trabalhava na tradução da peça de Abe Burrows, Como Vencer na Vida sem Fazer Esforço”. Em 1973, foi conferencista principal, com Antônio Houaiss e Paulo Rónai, do Primeiro Encontro Nacional de Tradutores. Nos anos 70, fora da política, dedicado à vida empresarial, na editora Nova Fronteira, escreveu seu livro de memórias, A Casa de meu Avô, que lhe valeu o elogio de Drummond, de que bastava o livro “para garantir-lhe esse lugar que importa mais do que os lugares convencionalmente tidos como importantes”. Sua paixão definitiva foi, desde sempre, o jornalismo de combate. O articulismo enragés, tradição hoje desaparecida, quando nenhum governante perde o sono em razão de um artigo de jornal. Escreveu mesmo um livro apresentando sua visão sobre o jornalismo, A Missão da Imprensa, em que faz uma candente defesa da independência do jornalismo frente aos governos e grupos de poder, a profissionalização do jornalista, o rigor na verificação das fontes. É evidente que, definitivamente, este não foi o caso da Tribuna da Imprensa. Nem foi o caso da publicação da Carta Brandi. O Lacerda reflexivo, saído da mente de Rodrigo, quem sabe teria checado se aquela assinatura era mesmo verdadeira, antes de publicar a carta. Gosto de ver Lacerda como alguém que levou a contradição entre a palavra e a vida ao estado da arte. Nos anos 30, foi comunista. Ao
A análise da democracia supõe evidências, não opiniões

Em 2006, o escritor norte-americano e antigo estrategista republicano, Kevin Phillips, lançou um alerta sobre o estado da democracia americana, em seu livro American Theocracy, que rapidamente tornou-se um best-seller. Phillips alertava para o declínio do sistema político americano, marcado pela renúncia a valores universalistas, o poder do dinheiro e, em particular, pela ameaça representada pelo obscurantismo religioso no mundo da política. Fenômenos que “deformaram o Partido Republicano e sua coalizão eleitoral, silenciaram vozes democratas e se tornaram uma ameaça crescente ao futuro dos EUA”, dizia o professor, acrescentando: “nenhum poder mundial tornou-se prisioneiro do tipo de infalibilidade bíblica que descarta o conhecimento e a ciência. O último paralelo foi no início do século XVII, quando o papado enquadrou Galileu por dizer que o Sol era o centro do sistema solar”. O tom pessimista e certa propensão ao exagero estão longe de ser uma novidade, na análise política, e eram relativamente comuns na interpretação da democracia americana, década e meia atrás. Estávamos em meio à administração de Georges W. Bush, vivía-se o período pós-11 de setembro, a guerra contra o terror, bem como os conflitos subjacentes à controversa invasão do Iraque. Os temores de Phillips, ao final, se tornaram um tanto sem sentido. Dois anos após o lançamento de seu livro, os Estados Unidos elegeriam um presidente negro, campeão dos direitos civis, que encerraria a guerra do Iraque, poria fim à guerra contra o terror, apostaria no multilateralismo e recolocaria os Estados Unidos como país líder da democracia, em escala global. Oito anos depois, a bússola da política norte-americana faria novamente seu giro. Em uma campanha surpreendente, que fez quebrar o recorde histórico de participação popular nas primárias republicanas, um candidato anti-establishment, midiático, avesso ao politicamente correto, com retórica de traço populista, venceria as eleições presidenciais, em 2016. A eleição de Trump se transforma em um ponto de inflexão nas visões sobre a democracia contemporânea. Análises prudentes sobre os impasses do sistema democrático, particularmente após à crise econômica de 2008, rapidamente alcançariam um tom dramático. David Runciman abre seu elegante How Democracy Ends dizendo que “qualquer processo que leva a um resultado ridículo como este deve ter falhado gravemente ao longo do caminho”; Yascha Mounk chama a eleição de a “mais chocante manifestação da crise da democracia”; Steven Levitsky e Daniel Ziblat elencam quatro critérios para definir se uma democracia está em risco. Nenhum candidato majoritário, no último século teria preenchido nenhum deles (exceção feita a Nixon). Trump corresponderia a todos: não teria compromissos com a regra democrática; toleraria violência e ameaçaria direitos civis e a mídia e negaria a legitimidade dos oponentes. Chama a atenção o último critério. É precisamente o que Levitsky e Ziblat parecem fazer, com alguma sofisticação, em relação a Trump. Ele surge fundamentalmente como um personagem bizarro, espécie de erro de percurso a ameaçar a democracia americana. É residual o fato de que tenha conquistado legitimamente a candidatura republicana e vencido uma eleição sob as regras do jogo. Um tipo banal de argumento circular parece orientar o raciocínio: Trump é um tipo autoritário; tipos autoritários são um problema para a democracia, logo Trump é um problema para a democracia. Perde-se a distância, o saudável compromisso das ciências sociais com o entendimento do outro e algum ceticismo em relação às próprias ideias. Há um certo público a ser atingido, e este público não parece estar muito preocupado com prudência e autocensura, em uma sociedade polarizada, da qual nem mesmo a academia parece escapar. É interessante observar a dificuldade de parte relevante do mainstream acadêmico com uma abordagem pluralista da democracia. Inclinações políticas bastante evidentes se apresentam como ponto de vista universal a partir do qual a democracia é julgada[1]. Meu argumento é que isto é simplesmente um erro. Como observou o então presidente Barack Obama, em seu discurso no dia seguinte à vitória de Donald Trump, a história da democracia é um processo aberto, em forma de zigue-zague, feito de idas e vindas, no qual ninguém detém a última palavra. Espaço de vitórias e derrotas cotidianas no qual todos, a longo prazo, tendem a ganhar. Obama se dirigia ao país, mas em especial ao público democrata, por óbvio frustrado com o resultado eleitoral. Sua preocupação, ao argumento, é evitar o juízo de valor. A democracia é feita de idas e vindas, mas ninguém tem a chave capaz de relevar a verdade da política ou da própria democracia. Ele recusa a compreensão da política a partir da lógica amigo-inimigo e portanto recusa a adjetivação fácil e a afirmação de si mesmo como julgador universal. Obama é um democrata, e faria bem à academia refletir sobre seu modo de argumentar. A abordagem pluralista da democracia supõe considerar os atores que atuam na cena pública como igualmente legítimos, desde que obedeçam as regras do jogo livremente instituídas pelo próprio processo democrático. Ela se mantém, com o máximo rigor que for possível, a distância segura do juízo de valor. Recusa-se a atribuir um valor distinto aos atores, na cena pública, assim como a suas posições em políticas públicas. O que é ou não razoável passa a ser definido no interior do próprio processo democrático. A obediência à Constituição, sujeita à supervisão última da Suprema Corte, e a obediência aos ritos democráticos. Ninguem fala, em última instância, de algum lugar abstrato da virtude cívica, externo ao próprio jogo político, quando se põe a julgar a correção ou a qualidade democrática desta ou daquela proposição. Indicadores de qualidade da democracia, se almejam algum tipo de validação universal, deveriam ser rigorosos nisso. Não parece, infelizmente, ser o caso de alguns dos mais pretigiados estudos, neste âmbito. Em tese, não há problema que uma pesquisa acadêmica apresente uma inclinação política. O problema surge quando ela não se o faz de modo explícito, apresentando-se com pretensões universalistas. Assumir um certo tipo de inclinação política (procedimento relativamente comum no jornalismo e no mundo dos think tanks), é uma forma de agir com honestidade intelectual, e evitar que se induza a erro aqueles que, desavisadamente, irão utilizar os indicadores como referências de
A era da irrelevância

Um dos subprodutos mais curiosos da democracia digital é o gosto generalizado pela tagarelice e pelos assuntos irrelevantes, que parece ter tomado conta, como uma erva daninha, do debate público. Assuntos irrelevantes são essas coisas que geram bate-boca e algum calor, em regra na internet, por 24 ou 36 horas, e depois simplesmente desaparecem, sem deixar rastro. Foi o caso do debate sobre a cor da roupinha das crianças, a partir de um vídeo da ministra-pastora dos Direitos Humanos. Li muita gente argumentando, em tom aparentemente sério, que aquilo tudo era bastante grave, escondia um atroz preconceito e fatalmente levaria a mais violência contra populações trans e LGBT. Durante a campanha, lembro do debate próximo à histeria sobre uma suposta proliferação de grupos nazifascistas que andariam pela ruas do país atacando mulheres e homossexuais. Gente muito boa sugeriu que havíamos voltado aos anos 30, na Alemanha, com base no episódio da moça que teria sido marcada com uma suástica no Sul do Brasil. Depois se descobriu que era tudo falso, mas ninguém pareceu preocupado ou se desculpou. Partimos alegremente para a próxima besteira. Na transição, por um ou dois dias, discutimos o hábito do novo presidente cumprimentar todo mundo fazendo continência . Primeiro foi com um assessor americano, depois foi a um jogador do Palmeiras. Depois disso o assunto perdeu a graça. Antes da posse, discutimos intensamente se o presidente iria desfilar em carro aberto ou fechado, entre a Catedral e o Congresso Nacional. Depois discutimos o que fazia o primeiro-filho sentado na traseira do Rolls-Royce, e logo depois (com direito à manchete no The Washington Post) o significado da “saudação militar” feita pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro (que no fim era apenas um movimento com a mão, no discurso em Libras). Na última semana, dedicamos intensos dois ou três dias fazendo graça com a viagem dos novatos deputados do PSL à China e seu bate-boca com Olavo de Carvalho. E ainda ontem, muita gente graduada discutia, com ares de grande coisa, a gravíssima atitude do presidente almoçar em um bandejão de supermercado, no centro de Davos, e o fato de ele ter usado um teleprompter em seu pronunciamento. A lista é saborosa e poderia ir longe. Irrelevâncias e não acontecimentos se tornaram uma espécie de pão nosso de cada dia, no debate atual. É evidente que não há como definir bem estas coisas. A aprovação de um rombo na Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo Congresso, é mais ou menos importante do que o último desmentido presidencial? O que vale mais, discutir a independência do Banco Central ou a troca de farpas da ministra da Agricultura com Gisele Bündchen? Desconfio que, no fundo, temos uma boa noção sobre isto. Se o debate público valesse alguma coisa, levaríamos as coisas mais a sério. O sujeito que é acionista da empresa não gasta seu tempo, na reunião do conselho, tagarelando sobre o barraco da festa de final do ano. Não o faz por uma razão simples: sua opinião pesa e ele não irá perder seu tempo com besteira. Na democracia, é o contrário: a opinião do cidadão vale muito pouco. Seu incentivo para levar alguma coisa realmente a sério é quase nenhum. Isto sempre foi assim, nas democracias, mas o fato é que a emergência das mídias digitais deu uma outra dimensão ao fenômeno. Uma razão para isto diz respeito ao custo da informação. Há 30 anos, emitir uma opinião dava muito mais trabalho. Implicava em escrever um artigo, dar uma entrevista na rádio ou imprimir alguma coisa por conta própria e depois distribuir na fila do cinema ou do posto de saúde. Me lembro de tudo isto, nos anos 80. A democracia digital explodiu essas coisas. O debate público se tornou vítima do instantâneo. Há informação demais, discussões demais, sem permitir que o tempo se encarregue de depurar os acontecimentos e separar o que importa daquilo que não passa de lixo em forma de palavras e imagens. Há duas notícias preocupantes aí: a primeira é que isto não faz bem à democracia. A qualidade do debate público, por óbvio, afeta a escolha pública. Quanto mais toxina ideológica espalhamos por aí, mais perdemos tempo e capacidade de gerar consensos e fazer as coisas que importam andar pra frente. A segunda notícia é que se trata de um estado de coisas que veio para ficar. O modus operandi das mídias sociais contaminou a todos, a liderança política, os intelectuais e (ao menos boa parte) da mídia profissional. E mais: fez com que o eleitor, agora transformado em um ativista digital, passasse a se comportar como um pequeno político, usando da retórica e reproduzindo, um a um, todos os vícios que ele vê nos políticos contra os quais esbraveja. Estamos diante de um problema sem saída. Todo mundo conhece o vaticínio de Umberto Eco, segundo o qual a internet fez com que o idiota da aldeia fosse promovido a portador da verdade. O que imagino nem Umberto Eco esperasse era o efeito inverso: que também a elite usualmente tida como portadora da verdade passasse a se comportar, no dia a dia, como o idiota da aldeia. (Fernando Schüler, Insper – Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 23/01/2019)
Obsessão com identidades e histeria conservadora desafiam democracia

Num ano em que o Congresso discutiu reformas fundamentais para o país, os debates que parecem ter mobilizado mais as pessoas –e não só na arena digital– dizem respeito a exposições de arte, nudez, questões de gênero, raça e sexualidade. Qual a explicação para isso? Há consenso de que nos tornamos uma democracia mais instável, polarizada, feita de muito barulho e pouca comunicação. A lógica das políticas de identidade tem algo a ver com isso? E os novos conservadorismos? O que esperar quando questões éticas e estéticas abrangentes, que por definição nos separam, passam a definir a pauta do debate público? Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, em artigo provocante no jornal “The New York Times”, sugeriu que os temas de identidade passaram do ponto em nossa democracia. Ele afirma que o progressismo americano anda imerso em um tipo de “pânico moral em função de temas de gênero, raça e identidade sexual” e corre o risco de perder sua capacidade de tratar das grandes questões comuns. Diz que a campanha da democrata Hillary Clinton, a cada comício falando para mulheres, latinos, LGBT e afro-americanos, produziu uma legião de excluídos: os “não citados”, em boa medida galvanizados por Donald Trump. Lilla é duro: sustenta que a fixação na diversidade produziu “uma geração de progressistas narcisisticamente desligados das questões alheias a seu grupo de referência”. O objetivo era dar uma chacoalhada no Partido Democrata —o professor parece culpar a onipresença da retórica identitária pela derrota de 2016. Ecoa, de certo modo, a crítica de Bernie Sanders. E tem um ponto. Em uma entrevista, cita o guru direitista republicano Steve Bannon: “Enquanto vocês estiverem falando de políticas de identidade, nós ganharemos”. O assunto não se inscreve apenas no universo americano. O debate identitário é hoje um tema da democracia —e afeta também o Brasil. A atriz Taís Araújo causou algum ruído ao afirmar que vive num país em que as pessoas atravessam a rua quando cruzam com seu filho, negro como ela; o mesmo fez o professor Ives Gandra Martins, dizendo ser difícil viver no Brasil de hoje não sendo homossexual, negro ou índio. Ambos foram satirizados, e suas falas por óbvio contêm exagero. Mas são um sintoma. Estaríamos adquirindo traços de obsessão identitária e certa histeria conservadora, na linha descrita por Lilla? Tudo indica que sim, e é muito provável que se encontre aí uma das raízes do atual mal-estar de nossa democracia. ACORDO POLÍTICO Para começar, um passo atrás. A democracia é filha das sociedades de direitos que emergiram no mundo moderno, num longo curso de sedimentação dos valores da tolerância e igualdade de todos diante da lei. John Rawls definiu seu desafio central: obter um grande acordo entre pessoas que divergem fundamentalmente sobre temas de natureza filosófica, religiosa ou moral. Isto é, entre pessoas que seguem visões verdadeiras, ainda que mutuamente excludentes, a respeito de questões centrais da vida humana. Para Rawls, o único acordo possível deve se dar no âmbito político, não metafísico. Ou seja, num plano abaixo da retórica moral, e por isso capaz de aproximar pessoas que de outra forma viveriam em uma eterna guerra de posições. É precisamente nesse plano que se encontra a ideia da “grande sociedade” e sua organização formal à base de direitos e respeito à diferença. Movimentos identitários foram fundamentais em sua construção. É o que mostram as lutas pelos direitos civis, nos anos 1960, e pela não discriminação sexual, em nosso tempo. É o que se lê no manifesto seminal do Combahee River, grupo feminista negro que atuou em Boston de 1974 a 80 —sua razão de ser é “a crença compartilhada de que mulheres negras são inerentemente valiosas”. Ocorre que, após a Guerra Fria, assistiu-se a uma curiosa inflexão. Ao mesmo tempo em que democracias foram se tornando mais inclusivas e se consagraram novos direitos (símbolo disso é a legalização do casamento gay pela Suprema Corte americana, em 2015), a retórica da identidade e da diversidade ultrapassou em muito a noção universalista de integração de todos à sociedade de direitos, passando a funcionar como força de fragmentação do espaço democrático. Nos EUA, nota-se isso particularmente nos campi universitários e em movimentos vagamente associados ao Partido Democrata. A retórica é agressiva e a visibilidade de cada tipo de identidade é seletiva, a depender da capacidade do segmento para agir e obter legitimidade na esfera pública. O resultado é uma forma paradoxal de exclusão. A luz jogada sobre uns produz sombra logo do outro lado. É exatamente o argumento de Lilla ao se referir, como exemplos, aos trabalhadores brancos empobrecidos e a grupos religiosos. A lógica da exclusão carrega um elemento “nonsense”, que aproxima a atitude de grupos identitários e conservadores: a ideia, algo mística, de que o pertencimento a uma identidade ou crença possa produzir alguma superioridade moral em relação ao outro. Não é diferente do que se passa no Brasil. É o que torna legítimo agir com ira santa contra o lançamento de um filme que não retrata “adequadamente” a escravidão ou vetar o uso de uma vestimenta que não pertença a sua própria cultura. Tudo isso soa absurdo, mas se tornou parte do cotidiano de nossas guerras culturais. Vêm daí o veto ao direito de expressão a quem pensa diferente ou os atos hostis contra uma filósofa vista como ameaça aos bons valores (como ocorreu vergonhosamente com Judith Butler em sua visita ao Brasil). Acentua-se uma ambivalência nos movimentos identitários. De um lado, uma visão inclusiva quanto a direitos, que reage à discriminação e demanda que todos façam parte do jogo; de outro, uma visão excludente, na qual a política surge como expressão-de-si, como projeção de um tipo de pertencimento (regionalidade, raça, crença), em vez do exercício da persuasão no espaço público. “Não somos apenas indivíduos”, diz Richard Spencer, “não somos apenas almas ou cérebros, sem gênero e raça, existindo no universo. Nós temos raízes.” Spencer é guru da alt-right, aglomerado supremacista americano. Seu ponto é claro: a negação do universalismo liberal, da alteridade, da ideia iluminista de superação-de-si através da palavra e do argumento. O
A educação e a armadilha da crise do Estado

O papo estava descontraído, antes de um debate, e o professor me comentou que não fazia chamada, em suas turmas. “Na minha aula vem quem quer”, disse ele. “Fica menos gente na sala, me incomodo menos, é muito melhor”. O que me chamou a atenção foi o desdém, o tom blasé. Dar a “sua aula” era mais importante do que saber se os alunos estavam ou não aprendendo. Achei compreensível. Ele leciona em uma universidade estatal dessas bacanas, que a gente costuma chamar de “públicas”, tem estabilidade e não é avaliado pelo desempenho em sala de aula. A atitude do meu colega de debate é uma migalha do que acontece na educação estatal brasileira. Estudo feito pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mostrou que, em média, os professores faltam 36 dias por ano na rede pública do município de São Paulo. Na rede estadual a média é de 30 dias. Não se trata aqui de julgar os professores, dizer que são piores ou melhores do que os do setor privado. É a regra do jogo que está mal desenhada. É o “modelo” de educação estatal que leva a este resultado. Os efeitos disso tudo são conhecidos. Nossos alunos das redes públicas ocupam as últimas posições no PISA (teste feito pela OCDE com estudantes aos 15 anos, em 65 países) e o IDEB alcançado pelas escolas privadas, no ensino médio, é 51% maior do que o das redes públicas. A falência da educação estatal levou a uma migração maciça da classe média para as escolas particulares. Criamos um sistema brutal de exclusão: os mais ricos escolhem a escola de seus filhos e obtém os melhores resultados; os mais pobres ficam por conta do Estado. Espécie de versão aguda da metáfora da Belíndia, criada nos anos 70 pelo economista Edmar Bacha. Nossa modelo de apartheid educacional produziu algo próximo ao que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”. A inspiração vem da passagem bíblica que diz “ao que tem, mais será dado…mas ao que nada tem, até mesmo isso lhes será tomado”. O mecanismo de exclusão leva a um ciclo de “desvantagens cumulativas”: menor renda, colégios de baixo desempenho, redes restritas de interação social, estigma, estreitamento do leque de oportunidades. É evidente que o ciclo não determina o destino de ninguém. É sempre possível dar a volta por cima. De vez em quando acontece, mas não é a regra. Quebrar o apartheid educacional brasileiro significa exatamente isto: buscar que se torne regra o que hoje é exceção. É possível que tudo isso seja apenas uma “consequência não intencionada” do sistema de ensino estatal, no Brasil. Prefiro pensar que se trata de um resultado bastante previsível. Escolas estatais, no Brasil, funcionam como repartições públicas. Não tem autonomia orçamentária ou liberdade para contratar ou descontratar professores; subordinam-se à burocracia da lei das licitações; diretores são eleitos, gerando um pacto corporativo com os professores; governos se alternam, a cada quatro anos, e no fundo podem fazer muito pouco para melhorar o sistema, a longo prazo. Exceções, como o sempre mencionado bom desempenho das escolas de Sobral, no Ceará, apenas servem para confirmar a regra. Diante desse cenário, nossos gestores públicos se recusam a buscar alternativas. No fundo é uma situação confortável, feita do pacto silencioso entre a corporação sindical e a elite (empresarial e acadêmica) disposta a “mudar a educação”. Disposta a patrocinar estudos e pinçar exemplos de sucesso aqui e ali, imaginando que tudo será diferente em dez ou vinte anos. No curto prazo, as coisas prosseguem como sempre foram. A corporação com seus “direitos” e os mais ricos à salvo em boas escolas particulares. Os mais pobres, como reza a tradição, em silêncio. Penso que é preciso mudar. O País precisa experimentar novas formas de gestão da educação pública, do ensino básico ao ensino superior, sem preconceitos. No plano global, há duas grandes linhas de inovação: os sistemas de voucher, em que o governo oferece uma bolsa e dá direito de escolha às famílias, ao invés de gerenciar escolas; e o modelo das charter schools, em que o governo assina contratos de gestão com instituições especializadas, de direito privado e sem fins lucrativos. Em ambos casos, o governo passa da condição de gestor direto para regulador do sistema. O Brasil já conhece estes modelos. O ProUni funciona como um sistema de voucher, e é um sucesso. Pesquisa encomendada pela ABRAES, com base nos resultados do ENADE entre 2010 e 2012, mostrou que os alunos com bolsa integral no sistema obtém notas superiores a dos alunos de Universidades Públicas, com renda média muito superior. Este e outros indicadores tem ajudado a derrubar uma das mais cruéis narrativas do debate educacional brasileiro, segundo a qual os alunos não conseguem aprender devido à pobreza. No plano das charter schools, o Brasil desenvolveu, nas últimas duas décadas, o bem sucedido modelo das Organizações Sociais. São amplamente conhecidos os resultados obtidos pelas OS da saúde, no Estado de São Paulo, bem como o sucesso obtido por organizações como a OSESP, Pinacoteca do Estado, o Museu do Amanhã e outras organizações culturais. Na educação, temos a experiência do IMPA e exemplos de menor alcance em diversos municípios brasileiros. Recentemente, o País aprovou o novo marco legal das organizações da sociedade civil, a LEI 13.019/14, que funciona como uma perfeita legislação para a implementação do modelo de charter schools. A lei explicitamente prevê a celebração de termos de colaboração dos governos com organizações privadas sem fins lucrativos, na área da educação. Nosso marco jurídico está completo e temos a nossa disposição uma série de bons exemplos. O que nos impede de avançar? Os estudos realizados com programas de voucher tem oferecido resultados mistos. Na Índia, um programa experimental realizado no Estado de Andhra Pradesh, com crianças escolhidas aleatoriamente, mostrou resultados promissores. Em que pese os resultados em disciplinas tradicionais, como a matemática, não apresentassem variações consideráveis, os alunos que migraram para as escolas privadas passaram a aprender mais rapidamente (ganho médio de 30%) e a
A nova era das bruxas de Salem

Prende o canalha! Mata! A audiência de custodia do ex-Ministro Geddel Vieira ia passando, na internet, e a turma mandando ver nos comentários. Ok, o ex-Ministro não é um tipo propriamente popular e há acusações pesadas contra ele. Cabe à justiça resolver. O que me impressionava era a coleção de palavrões e a banalização da palavra “morte”. Fosse com Lula ou Aécio, imagino, a coisa não seria muito diferente. A ira santa da internet não parece obedecer a partidos ou a ideologias. Lia aqueles comentários e me lembrava da série The Tudors. A cada vez que algum infeliz era decapitado, a mando do Rei, uma pequena turba se reunia em frente ao patíbulo e gritava coisas na mesma linha: morte, patife! acabem logo com isso! Não digo que seja a mesma coisa. No século XVI o sujeito estava ali em carne e osso, levando uma machadada no pescoço. Nos dias que correm tudo é mais civilizado. Há um juiz comandando a cena e o pior que pode acontecer é o tipo acabar no presídio de Bangu. A era das Bruxas de Salém já vai longe. Mas há algo incomodamente comum entre estas situações que parece atravessar o tempo. A perversidade, na internet, não é apenas um tema pitoresco. Pesquisa publicada recentemente pelo Pew Research Center mostra que 41% do público americano já sofreu algum tipo de assédio ou agressão no mundo digital. 18% sofreram o que consideram situações graves envolvendo perseguição, ameaças físicas ou danos sérios de imagem. As razões? 14% vem da política, 9% da aparência física, 8% do preconceito racial. Por certo há muita subjetividade nisso e é possível imaginar que boa parte das ocorrências tenha pouca relevância. Mas outra parte não. Os dados mostram que triplicou, nas últimas duas décadas, os suicídios entre meninas adolescentes, boa medida devido ao bullying digital. Há um traço sombrio no universo digital que parece não respeitar idade, sexo ou qualquer fragilidade humana. É sedutor imaginar que a crueldade, no mundo digital, atenda a uma lógica determinada ou venha de um grupo específico de pessoas. Venha da “direita” ou da “esquerda”, por exemplo, ou que surja de grupos racistas, sexistas ou portadores de algum tipo de psicopatia. As evidências mostram o contrário. A agressividade parte de gente perfeitamente razoável, mas que no contexto digital muda de pele. Me faz lembrar o espanto de Hannah Arendt no julgamento de Adolf Eichmann, ao descobrir que o carrasco nazista não passava de um burocrata perfeitamente “normal”. A sombra de Eichmann ronda a internet? Estaríamos às voltas com uma multidão de gente bacana que subitamente se torna dogmática e cruel no mundo digital? Tudo isso é perfeitamente previsível ou estamos com um problema? Não arrisco uma reposta definitiva, mas intuo que isto explique, em boa medida, o fenômeno da tribalização da internet. Muita gente concluiu que a arena caótica das redes sociais não funciona para gerar diálogos que valem à pena. É possível que tenham razão. Uma explicação para o fenômeno foi apresentada pela neurocientista inglesa Susan Greenfield. Seu ponto foi demonstrar que o isolamento digital produz uma redução da empatia entre as pessoas. “Quando ficamos muito tempo no computador, somos todos autistas, diz Greenfield, e completa: “não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir em seco, ficar nervosa”. Daí a conclusão: “quanto mais engajamento no ciberespaço, maior a redução da empatia”. A tese põe em cheque muitas das esperanças alimentandas no passado recente sobre as possibilidades da “democracia digital”. O debate público tende a funcionar bem quando se pensa em comunidades, em um cenário de múltiplas organizações voluntárias e grupos de pessoas capazes de tomar iniciativas e gerar consensos. Algo que Alexis de Tocqueville enfatizou em seu clássico “A democracia na América”. A democracia demandava uma rede de corpos intermediários. Espaços comuns de diálogo e aprendizado entre os cidadãos. No mundo digital, a tendência parece oposta: pessoas mais ou menos solitárias praticando a velha guerra de posições. Gente que se imagina virtuosa reproduzindo alguns dos piores vícios dos políticos que tanto abominam. O economista americano Anthony Downs ressaltou um problema congênito nas democracias: o voto das pessoas não vale muita coisa, em uma eleição, e por isso elas tem muito pouco incentivo para buscar informação e agir com responsabilidade. Mesmo que você morasse em Araguainha, no interior de Mato Grosso, o menor colégio eleitoral do Brasil, seu voto valeria quase nada. Algo próximo a 0,1% do total. As pessoas podem votar porque são obrigadas, por paixão política ou mesmo por espírito público. Será sempre mais racional não se preocupar muito com a política e agir como um alienado. E é basicamente isto que as pessoas fazem. A novidade, na era digital, é que uma incrível multidão de pessoas passou, de uma hora para outra, a exercitar ativamente a sua alienação. O alienado passivo dos tempos pré-internet era um tipo calado. Ele observava à distância as coisas públicas e ficava na dele. Era essencialmente alguém que não sabia. O alienado ativo é seu oposto: ele sabe de tudo. É o sabe-tudo das redes sociais. Sabe mais de direito do que um Ministro do Supremo, mais de economia do que um PhD em Harvard e, por óbvio, mais sobre futebol do que o Tite. É um tipo até engraçado, reconheço. Talvez seu ruído faça melhor à democracia do que o antigo silêncio. Não sei. Por ora não consigo enxergar muita virtude nisso tudo. Percepção mais otimista tive do sociólogo Richard Sennett e sua ideia de uma “nova diplomacia” no universo digital. “Não há outra saída”, me disse ele, em uma agradável conversa em seu apartamento, no Village, em Nova Iorque. As pessoas vão bater com a cabeça na parede até aprender. Aprenderão a usar o modo subjuntivo. O “quem sabe” ou o “talvez fosse melhor”, e com isso abrirão espaços para o diálogo. Caso contrário a conversa de surdos prosseguirá. Me despedi do professor um tanto cético e mas fui caminhar no High Line, com aquela ideia na cabeça.
Por que os milionários brasileiros não doam para as universidades?

Stephen Schwarzman costumava fazer suas refeições no Commons, quando estudante em Yale, em meados dos anos 60. Sujeito tímido, vindo de escola pública, sentia-se bem naquele edifício de estilo neoclássico, situado no coração da Universidade. Formado em 1969, Schwarzman percorreu passo a passo o sonho americano. Nos anos 80, criou o grupo Blackstone, hoje um dos maiores fundos de investimento dos Estados Unidos. Consta como a 122º pessoa mais rica do planeta, na lista da Forbes. No último dia 11 de maio, anunciou uma doação de U$ 150 milhões para a conversão do velho Commons em um moderno centro de artes. O centro levará o nome de Schwarzman. Há quem veja nisso um simples desejo de “imortalidade através do dinheiro”, como lí em uma crítica. Pouco importa. Talvez alguém tenha pensado o mesmo quando Lenand Stanford criou a universidade que levaria seu nome, na década de 1880, na Califórnia. Ou quando resolveram dar o nome de Solomon Guggenheim, logo após sua morte, ao Museu projetado por Frank Lloyd Wright, no coração de Manhattan. Quem sabe teria sido melhor, para os Estados Unidos, imitar o exemplo brasileiro. Por aqui, pouca gente tenta perpetuar o próprio nome, doando para universidades e museus. Talvez por isso lê-se, por estes dias, o anúncio de fechamento da Casa Daros, primoroso espaço de artes, no Rio de Janeiro, por falta de recursos. A tradição da filantropia americana vem de longe. É possível pensar que Andrew Carnegie seja seu maior ícone e, de certo modo, definidor conceitual. Imigrante pobre, Carnegie fez fortuna na siderurgia americana, na segunda metade do século XIX. Em 1901, aos 66 anos, vendeu suas indústrias ao banqueiro J.P Morgan e tornou-se o maior filantropo americano. Uma de suas tantas proezas, não certamente a maior, foi construir mais de três mil bibliotecas, nos Estados Unidos. Em 1889, escreveu o artigo The Gospel of Weath, defendendo que os ricos deveriam viver com comedimento e tirar da cabeça a ideia de herdar sua fortuna aos filhos. Melhor seria doar o dinheiro para alguma causa, ou várias delas, a sua escolha, ainda em vida. O Estado poderia dar um empurrãozinho, aumentando o imposto sobre a herança, mas deveria evitar a tributação das grandes fortunas. O melhor resultado, para todos, seria obtido se os próprios ricos distribuíssem sua riqueza, com cuidado e responsabilidade. Recentemente, foi o argumento usado por Bill Gates, o maior filantropo da nossa era, em oposição a Thomas Piketty e sua obsessão em tributar os mais ricos. Gates não fala da boca pra fora, nem é uma voz isolada. Em 2009, lançou, junto com Warren Buffett, o mais impressionante movimento de incentivo à filantropia já visto: The giving pledge. A campanha tem, até o momento, 128 signatários. Para participar, basta ser um bilionário e assinar uma carta prometendo doar, em vida, mais da metade de sua fortuna a projetos humanitários. Para boa parte dessas pessoas, doar 50% é pouco. Larry Elisson, criador da Oracle, comprometeu-se em doar 95% de sua fortuna hoje avaliada em U$ 56 bilhões. Buffett foi além: irá doar 99%. Como bem observou o filósofo alemão Peter Sloterdijk, parece que, ao contrário do que acreditávamos no século XX, não são os pobres, mas os ricos que mudarão o mundo. Sloterdijt, por óbvio, não conhece bem o Brasil. Enquanto nos Estados Unidos, o valor das doações individuais à filantropia chega a U$ 330 bilhões/ano. No Brasil, os números são imprecisos, mas estima-se que o montante não passa de U$ 6 bilhões/ano. Apenas 3% do financiamento a nossas ONGs vem de doações individuais, contra mais de 70%, no caso americano. Há, na lista da Forbes, 54 bilionários, no Brasil. Nenhum aderiu, até o momento, ao movimento da Giving Pledge. Consta que Jorge Paulo Lemann, o número um da lista, foi convidado. Não duvido que dia desses anuncie sua adesão. Seria um divisor de aguas para o País. Explicações não faltam, para esta disparidade. Há quem goste de debitar o fenômeno na conta da nossa “formação cultural”. Por essa tese, estaríamos atados a nossas raízes ibéricas, sempre esperando pelos favores do Estado, indispostos a buscar formas de cooperação entre os cidadãos para construir escolas, museus e bibliotecas, ou simplesmente para consertar os brinquedos e plantar flores na praça do bairro. É possível que haja alguma verdade nisso. O Rei Dom João III, lá por volta de 1530, dividiu o país em capitanias hereditárias e as dividiu entre fidalgos e amigos da corte portuguesa. Fazer o que? Enquanto isso, os peregrinos do Mayflower, desembarcaram nas costas da Nova Inglaterra movidos pela fé e amor ao trabalho para construir um novo país. Uma bela historia, sem duvida. Muito parecida com a de meus antepassados alemães, que desembarcaram em 1824 às margens do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Há muitas histórias, há muitos tipos de formação cultural, no Brasil, assim como nos Estados Unidos. Não é difícil escolher uma delas para justificar qualquer coisa. De minha parte, desconfio da tese do caráter cultural. Ela é abstrata de mais, difícil de mensurar e, pior, tende a levar à acomodação. Prefiro concentrar o foco na variável sobre a qual – ao menos em boa medida – temos controle. E esta variável é institucional. Minha tese é: o modelo institucional e de incentivos que adotamos simplesmente não favorece o desenvolvimento da filantropia. Ele incentiva que as pessoas esperem que o Estado resolva os seus problemas. E é o que elas fazem, em geral. Vamos a um exemplo: nossos sistemas de incentivo fiscal a doações. Nos Estados Unidos, se alguém quiser doar algum recurso para o MoMA (o Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque), poderá abater até 30% de seu rendimento tributável. Para algumas instituições, este percentual sobe a 50%. No Brasil, seu abatimento é limitado a 6% do Imposto de renda devido, isto se o contribuinte fizer a declaração completa. O pior, no entanto, acontece do outro lado do balcão. Para receber a doação, o Museu brasileiro deverá ter um projeto previamente aprovado pelo Ministério da
A esquerda precisa fazer as pazes com a economia

Demétrio Magnoli escreveu um artigo, dias desses, sugerindo que a presidente Dilma aproveite o tempo livre pós- impeachment para refletir sobre seus erros. A sugestão é boa. A primavera logo chega, e nada melhor do que pedalar à beira do Guaíba, em Porto Alegre, refletindo sobre os próprios equívocos. Já fiz coisa parecida, confesso, no pior do inverno gaúcho. Não creio, porém, que Dilma fará nada disso. É uma mulher de muitas certezas, como aliás parecem ser as pessoas que a cercam. Pessoas que lhe entregam flores, por onde chega, que carregam sua imagem de guerrilheira, ainda jovem, à frente de um inquérito militar. E tem o Chico a lhe dar razão, não é mesmo? Por que ela faria autocrítica? Alguém que resistiu à tortura e superou uma doença difícil? Nem pensar. Se alguma coisa deu errada no seu governo, não foi culpa dela. Seu novo mantra já está definido: voltaremos. Dilma voltará como um personagem secundário nos livros de história. Na política real, é carta fora do baralho. A questão que me parece relevante diz respeito ao destino do PT. O partido prosseguirá relevante na política brasileira? Ninguém tem boa de cristal para saber se Lula irá ou não sobreviver à Lava Jato. Lula tenta derrotar a justiça e o Juiz Sérgio Moro fazendo política. É possível que vença a parada. Se vencer, o PT ainda terá o maior líder político do País. Se perder, o PT sofrerá uma diáspora de quadros, mas ainda será um partido relevante no contexto da esquerda brasileira. A pergunta correta a fazer, é: O PT reconhecerá os seus erros? De um modo mais amplo, a esquerda brasileira é capaz de revisar posições e se reinventar? Ok, estamos muito em cima dos fatos, há cicatrizes, ninguém gosta de perder o poder assim desse jeito. A turma quebrou umas paradas de ônibus, na Paulista, depredou a sede do PMDB, em Porto Alegre, chamou todo mundo de golpista, canalhas e outras mesmices. Mas depois que a raiva passar, a esquerda vai mudar o disco e fazer uma autocrítica? Será capaz de se reinventar? Acho que isto seria ótimo para a própria esquerda, para o PT, e principalmente para nossa democracia. Mas não acredito, infelizmente. Estamos falando de pessoas treinadas para entender a verdade como um “campo de luta”. Como coisa que se “constrói”. Falamos de gente que anda do lado certo da história, para quem a dúvida é uma forma por vezes sutis de traição. De qualquer modo, me arrisco a dar algumas sugestões. Uma delas é o pessoal aproveitar o tempo livre e prestar atenção a coisas novas que andam sendo ditas neste Brasil cansado de passado. Uma delas li em um belo artigo do Professor Celso de Barros, do IPEA, dias atrás. Sua tese é a de que o PT e a esquerda devem fazer as pazes com a economia. Se a ideia é dar a volta por cima e algum dia voltar ao poder, é preciso que a esquerda faça uma ampla revisão de sua visão sobre a economia de mercado e como se nela se encaixa os interesses dos mais pobres. Barros parece acreditar que é possível abrir a cabeça da esquerda. Convence-la de que não é a negação da racionalidade econômica que define o sentido de uma esquerda contemporânea. Que ela se define justamente por compatibilizar a racionalidade econômica com políticas de “distribuição de renda e oportunidades”. Barros sugere uma visão “agnóstica” sobre política econômica: “o que funcionar, funcionou”. Diz que responsabilidade fiscal deveria ser um valor especialmente caro para quem quer um estado forte e ativo. Sugere abandonar a aversão congênita à privatização e outras bobagens. Como a ideia de achar que toda política de austeridade é sempre contra os mais pobres, ou que todo aumento de juros é sempre uma concessão ao “rentismo”. A tentativa de sofisticar um pouco a esquerda é generosa, mas não imagino que produza resultados. Não consigo imaginar um congresso do PT aprovando resoluções sobre “manter o equilíbrio das contas públicas, corrigir o déficit estrutural da previdência, oferecer previsibilidade ao mercado, inflação no centro da meta” e coisas assim. Seria ótimo para nossa democracia ter uma esquerda desse calibre. Em alguma medida, ela existe, muito tímida, espalhada pelo PSDB, PMDB, PPS, PSB, REDE. O ponto é que ela é minoritária no petismo e seus aliados. Ideias desse tipo estiveram presentes na equipe econômica do Ministro Palocci, no primeiro governo Lula. Equipe de alto padrão, afinada com o que se poderia esperar de uma esquerda moderna. O ponto é que vivíamos uma época especial. Um ciclo de expansão da economia global, boom das commodites, com os frutos de um País que havia passado pelo ciclo de reformas dos anos 90. O PT e sua base sindical toparia uma política de rigor fiscal em tempos difíceis? As evidências não parecem favorecer muito esta hipótese. Se a esquerda quiser de fato se reinventar, dou uma sugestão: invistam algum tempo, de cabeça aberta, observando a experiência internacional. Vejam onde isto aconteceu. Há exemplos por toda parte. Em todos eles há o elemento “agnóstico”. A capacidade de dar um chega pra lá na ortodoxia e observar o mundo a partir de dados, evidências e boa dose de bom senso. Observem, por exemplo, o que aconteceu com a esquerda chilena, sob a liderança de Ricardo Lagos e sua Concertación. Lagos consolidou a democracia chilena ao mesmo tempo que soube preservar as conquistas da liberalização econômica, tornando o Chile um raro caso de sucesso econômico na América Latina; observem Vaclav Ravel, o poeta-estadista do Lanterna Mágica, no coração de Praga, com sua revolução de veludo e a formação da República Tcheca; observem ainda Mandela e sua imensa capacidade de esquecer. De construir consensos onde só se imaginava lugar para o de revanchismo. E de mudar, adotando uma visão liberal da economia que ajudou a África do Sul a crescer aceleradamente nos anos pós-apartheid. Acertar as contas com a economia, porém, é a apenas uma parte do caminho para uma nova esquerda.
O mal-estar da democracia

Um espectro ronda a democracia. A confiança nos valores e instituições democráticos vem declinando, década a década. De acordo com o World values survey, apenas 30% da geração millenial (nascidos após 1980), nos Estados Unidos, acha que é “essencial” viver em uma democracia, contra 58% da geração baby boomer, nascida no pós-guerra. Mais recentemente, entre 1995 e 2011, saltou de 16% para 24% o percentual de jovens que consideram a democracia simplesmente um “sistema ruim”. No Brasil, há sinais na mesma direção. A série de pesquisas conduzidas pelo professor José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo, mostra que, entre 2006 e 2014, caiu de 19% para 14% o grau de confiança das pessoas nos partidos políticos e cresceu de 15% para 20% a aprovação da ditadura. Diante desses dados, o primeiro desafio é evitar a tentação das respostas simples a problemas complexos. O mundo viveu uma fase de euforia democrática no final do século passado. Seria, no mínimo, ingênuo imaginar que tudo se perdeu no espaço de pouco mais de uma década. A Freedom House identificou um declínio da democracia nos últimos 11 anos. O relatório de 2017 fala da emergência de velhos nacionalismos e da ameaça populista. Fenômenos como Trump, Marine le Pen ou o Brexit seriam bons exemplos desse recuo. Lugar-comum. Quando a velha Inglaterra faz um plebiscito para decidir se permanece ou não na União Europeia, o que ela faz é dar uma aula de democracia, não o contrário. Você pode não concordar com o eleitorado inglês. Eu também posso, o que é inteiramente irrelevante. O ponto é que a democracia não pode ser julgada por nosso eventual desacordo com as escolhas que as pessoas fazem. Governos populistas e arroubos nacionalistas são produtos típicos da democracia, não sua negação. A ideia de que a democracia produziria sempre decisões condizentes com uma visão de mundo cosmopolita não passa de uma quimera. Há uma interpretação otimista para o mal-estar da democracia. Ela diz que não há uma crise em seus valores, mas a emergência do “cidadão crítico”. Vivemos em um mundo mais urbano, com mais informação e renda. O mercado incorporou rapidamente os ganhos da revolução tecnológica, e o Estado não. Além disso, o Estado cresceu demais, a linguagem política envelheceu e as pessoas se distanciaram da política tradicional. O cidadão ganhou poder, cobra eficiência dos governos e é menos tolerante com a corrupção. Por óbvio, há aí o efeito breaking news, na expressão de Fareed Zakaria. Ele é dado pela contradição entre o mundo que nos aparece, dia a dia, hora a hora, no espaço digital, e o universo opaco da realidade. Nós achamos que a violência aumenta, mas os dados mostram que ela diminui; achamos que a pobreza cresce, mas a estatística diz o contrário. Neste universo de cidadãos crescentemente desconfiados das instituições, há uma explosão de ativismo em rede, multiforme e “fora de controle”. Vivemos a época dos “cidadãos ativos”, para usar uma expressão cara a John S. Mill. E isso tem um preço. Vai aí meu ponto: a democracia, nesta década incerta, não vive uma crise, mas um tempo de exuberância, que desaloja velhos partidos e lideranças, gera instabilidade e aumenta o custo do consenso. Daí o mal-estar. Vale observar o que se passa com a representação política. Instituições e elites políticas, na democracia liberal, funcionavam como filtros e freios para a opinião caótica dos cidadãos. Era o papel dos partidos, do Parlamento e mesmo da imprensa profissional. A revolução tecnológica subitamente envelheceu essas instituições. As pessoas descobriram que são capazes de atuar diretamente no mercado político. As instituições não estavam preparadas para lidar com a revolução digital do mesmo jeito que a velha democracia censitária não estava para lidar com a sociedade industrial emergente da virada para o século XX. A democracia vive um tempo de “destruição criadora”. O que resultará disso tudo? Difícil dizer. Por certo teremos cada vez mais uma “democracia vigiada”. Ainda me lembro de um texto de Norberto Bobbio, dos anos 1970, sobre “as promessas não cumpridas da democracia”. Uma delas dizia respeito ao “poder transparente”. Certo à época, Bobbio estaria errado agora. Os meios eletrônicos e a explosão da mídia tornarão o poder cada vez mais transparente. Não sei o que as pessoas farão com toda essa informação. Provavelmente vão vociferar e emitir juízos sumários nas redes sociais. Isso tornará cada vez mais difícil a vida do homem público. Sua vida privada virtualmente desaparecerá. Seu passado será esquadrinhado e tornado um eterno presente. Perderemos a capacidade de esquecer, essa “condição da vida”, como sugeriu Nietzsche, que nos permite reconciliar, levantar a cabeça e seguir em frente. O futuro da democracia, diferentemente do que acreditava Bobbio, está não em sua penetração em mais e mais espaços da vida social, mas precisamente em sua contenção. A revolução tecnológica e o crescimento econômico deram poder ao indivíduo, e é possível pensar que as pessoas hoje demandem menos tutela do Estado e mais espaço para fazer escolhas. É este o trade-off contemporâneo: o recuo da fúria reguladora da escolha pública em troca de mais espaço para a liberdade dos indivíduos. É disso que trata a reforma trabalhista quando fala em fazer valer o “negociado” antes do “legislado” ou quando se pede o fim do imposto sindical. É este o cenário mais amplo das novas formas da economia do compartilhamento: a autorregulação pelos usuários ocupa gradativamente o espaço antes restrito à burocracia pública. Não faltará quem diga que tudo não passa de um processo de deslegitimação da política. Do retorno a um tipo de democracia conservadora. É possível. Quem sabe devamos voltar a Edmund Burke e lembrar que a boa democracia é precisamente aquela que sabe manter sob controle seus desatinos. Os próximos anos assistirão a uma suave transição. Uma queda de braço entre novas tecnologias e velhas instituições. Entre um leviatã grande e intrometido e o cidadão crescentemente dono de si mesmo. Não tenho muitas dúvidas sobre quem ganhará o jogo.