Por que não o voto distrital?

Fazia um bom tempo que não se falava sobre reforma política em Brasília. Por estes dias voltou-se a falar. Arthur Lira criou um grupo de trabalho para reformar as regras eleitorais e temas mais amplos entraram na pauta, como a revisão da cláusula de desempenho e da vedação a coligações nas eleições proporcionais. A notícia preocupa. O país fez uma minirreforma eleitoral em 2017, proibindo coligação nas proporcionais e instituindo uma cláusula de barreira progressiva. Começou no ano passado, no pleito municipal.Nas eleições nacionais, há a exigência de 1,5% dos votos válidos ou nove deputados eleitos em um mínimo de nove estados e vai até 2030, com a exigência de um mínimo de 3% dos votos ou 15 eleitos. A pergunta que surge: há algo que justifique interromper o processo no meio do caminho? Alguma coisa deu errado ou é só a reclamação dos partidos que não cumpriram as exigências da cláusula ou estão com medo de não cumprir? O fato é que as medidas da minirreforma vêm dando certo. Diria que é uma das raras reformas institucionais que o país conseguiu fazer, nos últimos anos, com resultados inequivocamente positivos. Nove dos 30 partidos que elegeram deputados em 2018 não cumpriram a cláusula e perderam o acesso ao fundo partidário e ao tempo de televisão. O deputado federal Arthur Lira (PP-AL) durante discurso na Câmara na votação da reforma da Previdência; líder do centrão é hoje candidato à presidência da Câmara Luis Macedo – Algum problema nisso? Na minha visão, nenhum. Nos 15 anos após as eleições de 1998, nossa fragmentação partidária cresceu 62%. Entre 1986 e 2018, fomos de 12 para 30 partidos na Câmara. Nos tornamos o país com a maior fragmentação partidária do planeta. Resultado? Mais dificuldade de formação de consensos e tomada de decisão no Congresso. Nos dois governos de FHC, os quatro maiores partidos da Câmara formavam quórum para aprovar emendas à constituição (310 e 347, em cada mandato); no governo Bolsonaro, os quatro maiores partidos somam 187 deputados, muito abaixo da maioria requerida para projetos de lei. Se a fragmentação partidária expressasse diversidade de visões programáticas em um país continental e complexo, como o Brasil, haveria ali alguma virtude. Não é o caso. Nosso festival de siglas, com honrosas exceções, é uma resposta artificial aos incentivos do próprio sistema (fundos, tempo de TV e etc.) e se mostra como um conjunto vazio de ideias. Outro sinal positivo da minirreforma de 2017 veio com as recentes eleições municipais. Nas cidades com até 20 mil habitantes (mais de dois terços dos municípios), o número efetivo de partidos nas Câmaras de vereadores caiu de 5,1 para 3,5. O mesmo não ocorreu nas cidades grandes, ainda que se tenha estancado o aumento da fragmentação. E casos extremos ainda se verificam, como na Câmara de Vitória, onde 13 partidos ocupam as 15 cadeiras do Legislativo municipal. A melhor solução para esse problema viria de uma ideia discutida há muito: a migração do sistema eleitoral para o modelo distrital misto. O sistema cria um claro incentivo à aglutinação partidária ao tornar majoritária a escolha de parte das vagas ao Parlamento. Ele facilita a comparação de programas e focaliza a representação parlamentar, fazendo com que a comunidade saiba quem a representa e vice-versa. De quebra, reduz custos de campanha e a influência do dinheiro nas eleições. Arthur Lira faria história se levasse à frente essa ideia, em vez de fazer o país olhar pelo o retrovisor. Como inspiração, poderia prestar atenção à reforma feita pela Nova Zelândia, no inicio dos anos 1990, em que um conjunto de modelos eleitorais, definidos pelo Parlamento, foram submetidos a plebiscito. Isso permitiu um amplo debate nacional sobre a qualidade da representação política e sua repactuação. Vamos lembrar que nossa fórmula republicana e presidencialista foi objeto de consulta direta, em 1993, mas não o sistema eleitoral. Há mecanismos na Constituição que facultam essa opção, e talvez tenha chegado a hora de pensar sobre isto. De qualquer modo, fica o alerta. O maior erro seria jogarmos pela janela os avanços que tivemos com a minirreforma. Se for para mudar, o melhor é andar para frente, não para trás. Fernando L. Schuler é cientista político e professor do Insper Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo
E aí, vale pra todo mundo?

A lei de segurança nacional voltou a ser pop. Foram 77 processos em 2019 e 2020, contra 44 nos quatro anos anteriores. Ela vem chancelada pelo Supremo, que ao utilizá-la dá a senha de que a vê como compatível com a Constituição. Mas é a reação das pessoas ao seu uso que revela muito sobre o que nos tornamos. A lei vem sendo usada por diferentes lados do mundo político. Pelo executivo, pelo Supremo e mesmo pelo Congresso. Deste último foi, aliás, seu uso mais patético (se é possível classificar isto), naquela tentativa de enquadrar o perigoso humorista Danilo Gentili por um tuite “convocando” o povo brasileiro para “socar os deputados”. A Câmara caracterizou o tuite como “grave ameaça ao livre exercício do Congresso Nacional”. Aparentemente estavam errados, visto que ninguém atendeu à convocação de nosso humorista revolucionário. Mas enfim, pela lógica da máxima birutice nacional (ou quem sabe de um país que perdeu o senso de humor), ele deveria ser preso, não? O executivo também entrou de cabeça. A Lei passou a ser usada como um forma de intimidação. Um caso curioso foi o do advogado Marcelo Feller, acusado de “expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do Presidente”, nos termos da LSN, por ter chamado Bolsonaro de genocida, na TV. Lendo a papelada do processo, impressiona, à parte o gesto autoritário, a incrível perda de tempo (e dinheiro do contribuinte). Dias depois, o caso foi encerrado pela juíza Pollyanna Maciel, que não identificou crime nenhum ali e disse algo essencial para este debate: que a lei só deve servir para “casos extremos”, que tenham possam “verdadeiramente atingir” a segurança do Estado. E deu por resolvida a questão. Se estes casos envolvendo os críticos do Presidente, em geral, não têm prosperado, o mesmo não se dá nos que atingem o outro lado do jogo. Os casos são conhecidos. Derivam, em geral, dos inquéritos das Fake News e dos “atos antidemocráticos”, conduzidos pelo Supremo. São inúmeros casos. Um deles envolveu um jovem negro de Salvador, o “mito show”, dançarino popularesco que costumava animar as passeatas bolsonaristas com uma coreografia típica do carnaval baiano. Um dia resolveu ir para Brasília, com uma mão na frente e outra atrás, e berrar contra o Supremo. Foi em cana, e até hoje tenta se virar por aí com uma tornozelera eletrônica. Caso mais notório é o de Oswaldo Eustáquio, preso por meses. Em geral, ele é apresentado como “blogueiro bolsonarista” e isto parece resolver a questão. É óbvio que não resolve. Recentemente, a Polícia Federal disse num relatório não ter encontrado elementos contra os acusados no inquérito em que foi arrolado. Ler sobre estes casos todos nos dá o retrato de um País doente e intolerante. São basicamente delitos de opinião, frutos da raiva política. Xingamentos, ameaças, discursos de ódio e palavrões. É isto. Nos tornamos uma espécie de democracia do palavrão. O que mais chama a atenção é a seletividade das pessoas sobre o tema. É como se houvesse palavrões “autorizados”, e mesmo virtuosos, e palavrões marginais. Quem tem a hegemonia cultural define estas coisas. O mesmo vale para o uso da LSN. Com honrosas exceções, quando ela é usada do lado A do espectro político, o lado B vibra. E vice-versa. O fato é que o debate em torno do tema diz muito sobre a fragilidade de nossa cultura democrática, à direita e à esquerda. O uso de uma lei do arbítrio como ferramenta de guerra política, nos tempos atuais, é apenas um sintoma. E talvez a triste conclusão, no fim deste debate todo, é que as pessoas no fundo gostam de um instrumento como a LSN, desde que sempre usada para o lado “certo”. De minha parte, faria o que sugeriu a pesquisadora Clarissa Gross, da FGV, dizendo que não cabe ao Estado punir o simples uso da palavra, mesmo se uma ameaça. “Ela tem que ser crível”. Nas agressões ao STF, demandaria “indícios de que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas” impedindo o trabalho da Corte. Respeitado este critério, a maioria dos atuais usos da Lei cairiam no vácuo. A solução óbvia seria a aprovação no Congresso de uma nova lei, adaptada aos tempos democráticos. O ponto é que não existe o mínimo consenso no País sobre o tema. O mais provável é que o Supremo decida a parada, a curto prazo, e ficam as perguntas: a lei será clara? vai valer pra todo mundo? teremos um Estado que trate a todos com igualdade? Estamos muito longe do consenso mínimo que Países como os Estados Unidos construíram em torno da Primeira Emenda, ou como a Alemanha, em torno da nova legislação combatendo o discurso de ódio na internet (NetzDG). Enquanto isto não ocorre, vamos nos arrastando (para o deleite do general Figueiredo, onde estiver), com a velha e rasgada Lei de Segurança Nacional. Fernando L Schüler é cientista político e professor do Insper (Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo)
A liberdade de expressão se tornou uma ideia inconveniente?

Sempre fui fascinado pela ideia do “livre mercado de ideias”. Ela nasceu muito antes, mas foi consagrada por Oliver Holmes. Além de juiz da Suprema Corte Americana, Holmes era um pensador cético. O melhor era colocar as ideias para competir, em um ambiente aberto, sabendo que lidamos com um mundo de informação imperfeita. É dele a definição de que só deveriam ser interditados discursos que representassem perigo “claro e real”. Com o tempo estas palavras foram sendo melhor compreendidas. O perigo deveria ser “imediato”, e também era preciso separar um risco real de um punhado de bravatas e conversa fiada. Pra que tudo isso? Pra que tanta delicadeza? Ao invés de proteger, não seria melhor “higienizar” o mundo de tanta porcaria informacional que circula por aí? Vem daí a longa e difícil tradição moderna da liberdade de expressão. Difícil porque se baseia em uma ideia contra-intuitiva: o progresso do conhecimento não depende do erro ou acerto desta ou daquela ideia, mas da preservação de um conjunto de princípios. Uma das melhores representações que vi disso foi em um filme de Milos Formam, O Povo contra Larry Flynt. Acusado de pornografia, Flynt era um tipo difícil de defender. A um dado momento ele vira o jogo. Reconhece que é o pior dos americanos, e que se a Constituição protegesse “um canalha como eu, então protegerá todos vocês”. Há alguns pressupostos nesta tradição. O primeiro deles é que somos falíveis. Julgamos o mundo de dentro do próprio mundo. Não somos isentos. Cada um pode parar e pensar por um instante pra saber se isto é verdade. Outro diz que em algum momento os deuses estilhaçaram a verdade, e agora ela anda espalhada por aí, de modo que mesmo teses muito ruins podem conter uma informação relevante, que ajude a nos aproximar ainda mais um pouco do caminho da verdade Estes argumentos são há muito conhecidos. John Stuart Mill foi seu mestre. O acerto se alimenta do erro, dizia ele, e suprimi-lo será sempre uma perda: sendo certa a opinião, perdemos a chance de trocar o erro pela verdade; sendo errada, “perdemos a percepção mais vívida da verdade, produzida pela sua colisão com o erro”. Talvez tudo isto seja uma ilusão. A grande tradição moderna do livre pensamento pode ter sido um equívoco e precisa agora ser “ajustada”. Tenho escutado coisas do tipo, e a razão seria a internet. Ela teria dado espaço demais ao fake e ao ódio, e pessoas do lado do bem e da verdade simplesmente não podem ficar de braços cruzados. Parece um pouco estranho, mas é o que sugerem, em geral sem muita explicação sobre o que fazer, livros como “The Misinformation Age”, de Cailin O’Connor e James Weatherall. A solução passaria não apenas por penalizar a distribuição intencional de fake News, como produzir uma ainda mais necessária “reengenharia nas instituições básicas da democracia”. Não me atrevo a pensar o que exatamente caberia nesta “reengenharia” da democracia. Pensei nos banimentos da internet, nos cancelamentos, na volta da censura prévia, e até na ressureição recente de nossa lei de segurança nacional. Mas achei tudo muito pequeno. Imagino que uma reengenharia da democracia seja algo mais elegante. O fato inequívoco é que a liberdade de expressão se tornou um tema inconveniente. Há alguns anos atrás promovíamos debates sobre o assunto e o consenso era quase tedioso. “É preciso estar sempre atento”, costumava-se dizer, para que ninguém roube este “bem precioso que conquistamos a tão duras penas”. Hoje em dia escreve-se sem cerimônia que é preciso banir a “má informação”. As palavras variam, mas o sentido é sempre o mesmo: nós, que sabemos a verdade “para além da dúvida razoável”, precisamos de meios para calar estes imbecis. Como se fará isto? Ninguém parece saber direito. Uma hipótese seria entregar a tarefa às redes sociais, desde que não apareçam novas redes controlados por gente do lado errado. Outra hipótese seria o “controle social”, via algum comitê ou algo ao estilo do inquérito das fake news, mas de caráter permanente, fazendo a curadoria do País. Há muitas possibilidades. De minha parte, prefiro manter algum ceticismo. Intuo que nossas democracias tenham sabido, a duras penas, criar as instituições que asseguram a liberdade de pensamento. Ainda que a cultura que lhe dá suporte pareça viver, permanentemente, a sua infância. (publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo). Fernando L. Schuler é cientista político e professor do Insper
Rawls em tempo de barricadas

Imagine o seguinte: você é convidado a decidir sobre os princípios que irão organizar a sociedade. Direitos, liberdades, igualdade, o que for. Você tem ampla informação sobre economia e as motivações humanas. Só não sabe quem você é. Não sabe se é homem ou mulher, rico ou pobre, religioso ou ateu. Se é um jogador audacioso, como Elon Musk, ou alguém avesso ao risco. Nestas condições, que tipo de princípios de justiça você escolheria? Este desafio atiçou a imaginação de gerações de estudantes de filosofia e politica, no último meio século. John Rawls o chamou de escolha sob o véu da ignorância. Foi um dos pontos de partida de sua obra monumental, “Uma Teoria da Justiça”, lançada nos inícios de 1971, e que por estes dias completa seu cinquentenário. A resposta dada por Rawls tornou-se ponto de referência para o debate liberal. Ele diz que, naquelas condições de incerteza, trataríamos primeiro de assegurar liberdades básicas para todos. Em segundo lugar, uma base de oportunidades iguais para cada um. E por fim, admitiríamos desigualdades econômicas, desde que elas produzissem maiores vantagens aos grupos sociais menos favorecidos, ao longo do tempo. Rawls formulou sua tese em um mundo muito diferente do nosso. Eram os anos 60, época dos direitos civis e da “grande sociedade”, de Lyndon Johnson. Os anos pós-Rawls foram marcados pela explosão da riqueza em um mundo globalizado, pela integração planetária produzida pela internet, pelo redução da pobreza global, ainda que às custas da explosão da desigualdade em muitas regiões do mundo. A pergunta óbvia: sua teoria prossegue válida, nos tempos atuais? Muita gente acha que não. “Vivemos em um mundo de barricadas”, dizia um interlocutor cético, para que a ideia de um consenso liberal em torno de normas de justiça não é mais que uma quimera. Para muitos, como Charles Mills, professor da Universidade de Nova Iorque e autor de “O contrato racial”, é simplesmente “bizarra” a idealização gentil da “sociedade como empreendimento cooperativo para benefício mútuo”. Espécie de “ignorância branca” sobre um mundo feito de exclusões e exige soluções bastante mais radicais. Há quem sustente o contrário. Que o argumento de Rawls permanece mais vivo do que nunca. Por muitas razões. Uma delas define sua teoria como um convite à humildade. Em um mundo marcado pelas cisões de identidades e pela guerra cultural, é ainda mais atual uma visão que nos lembra sobre os limites do contrato político. Vai aí a primeira grande lição de Rawls: somos uma sociedade irremediavelmente cindida por um conflito ético, em sentido amplo, e neste terreno simplesmente não há acordo possível. Temas envolvendo religião e crenças morais arraigadas sobre sexualidade ou o sentido da família. Muitos deles nos dividem hoje mais do que há trinta anos, e surgem no espaço público com velocidade e intensidade inéditas. Eles não serão objeto de consenso algum visto que somos uma grande sociedade aberta, não uma comunidade. O acordo possível se dá no terreno da política. E neste sentido o experimento de “desenraizamento” que ele nos propõe, ainda que difícil e por vezes irritante, permanece perfeitamente válido. Uma segunda lição de Rawls diz respeito à justiça econômica. Seu ponto é defender o que chama de “principio da diferença”. Um trade-off: aceita-se a desigualdade econômica, dentro de certos parâmetros, desde que todos os botes subam com a maré. Isto é: o arranjo escolhido deve ser o melhor, dentre as alternativas viáveis, para os menos favorecidos. Aqui é preciso evitar alguns equívocos de interpretação. Li em um artigo recente que Rawls aceitaria alguma “recompensa extra aos superprodutivos”, mas vetaria coisas como um contrato milionário de Lionel Messi (fiquei imaginando o que dizer da fortuna de Jeff Bezos e outros tantos). Completo equívoco. Sua teoria não diz respeito a esta ou aquela transação econômica. Não importa o salário deste ou daquele jogador, ou a rentabilidade de uma empresa, desde que o arranjo econômico, isto é, as instituições atendam ao critério ético. Rawls chegou a dizer que gostaria de ver seu princípio da diferença como um preâmbulo da Constituição. Um fim civilizatório, que diz respeito à continua abertura de oportunidades aos desfavorecidos pelas circunstâncias sociais, e não uma teoria mesquinha sobre o quanto cada um pode ganhar. A justiça, dizia ele, não exige conformidade à qualquer “padrão observável” de igualdade. Ou grau de desigualdade que possa ser medido “a partir de um certo intervalo do coeficiente de Gini”. Não acho que uma teoria pedindo que nos abstenhamos, por um momento, de julgar o mundo com base no “principio da inveja”, e que solicite respeito a um amplo leque de visões de mundo, opostas e não raro excludentes entre si, possa ser particularmente popular em um mundo conflagrado como o nosso. Somos de um tempo muito pouco rawlsiano, neste sentido. O que me parece certo é que sua teoria prosseguira sendo lida e discutida mesmo quando nossos rancores e desavenças já fizerem, há muito, parte do passado. Fernando L. Schüler é Cientista Político e Professor do Insper (publicado, resumidamente, na Folha de SP, em fevereiro de 2021)
Os curadores do mundo

Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa “ágora digital”. Ainda lembro do projeto Gwan, que conheci nos anos 90, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro gótico. A ideia era forjar uma música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000. A ideia me pareceu muito boa. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da “sociedade civil mundial”. Era isto que embalava aquela turma esquisita, nas madrugadas frias de Barcelona, no sótão empoeirado e forrado de computadores. Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas logo ali adiante as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal. Elas funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e suas regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí o diálogo aberto e a aproximação dos divergentes. O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas. Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinaliza a recente onda de “etiquetagem” e supressão de postagens, restrição de compartilhamento de mensagens (sendo exemplar o caso das notícias envolvendo Hunter Biden) e finalmente os desligamentos de usuários, pura e simplesmente. Tudo envolvendo evidentes juízos políticos, com os quais se pode ou não concordar. Não é o ponto aqui. As redes agem assim porque podem. São empresas privadas, suas regras vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e “bom senso”, e que censurar estas ou aquelas contas, e não aquelas outras, terminaria sempre sendo o melhor para a civilização e para democracia. Não sei porque (talvez seja a idade), me tornei cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a “verdade” e a infalibilidade de seus juízes. É o sentido da frase desconfiada da Chanceler Ângela Merkel, dizendo “problemático” o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um “bem fundamental”, a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas. É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase-monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. À longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo. Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século XVII. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, “os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo”. Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas. A ideia das “ágoras universais” vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso. A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no ziguezague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas, nem o seu direito de pensar com a própria cabeça. Fernando Schüler é Cientista Político e professor do Insper (originalmente publicado na Folha de São Paulo, 13.01,21)
A sociedade dos militantes

Goste ou não de Bari Weiss, vale à pena ler sua entrevista a Folha, dias atrás. É bom escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos dançam a Macarena (já me aconteceu). Sua história é conhecida. Ela foi contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de pensamento hegemônica da redação, e terminou caindo fora pelo mesmo motivo. A redação do The Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a responder a um agenda política. E o fez a partir da cisão que marcou a imprensa americana nos anos recentes, entre a gente bacana e esclarecida, “cujo trabalho é informar os outros” e os caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald Trump. Daí aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o “diabo laranja”. Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado e avesso às “ideias inconvenientes”. Foi o caso do editor James Bennet, banido por publicar um artigo controverso do senador Tom Cotton. O editor provavelmente discordasse do Senador, mas acreditava “dever aos leitores a exposição de contra-argumentos”. Ingenuidade dele. Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha. O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em uma coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes sociais. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré. Intuo que se trata de um caminho sem volta. O Twitter se tornou bem mais do que o “editor último” do The Times, como diz Weiss em sua carta-renúncia. Se tornou, junto com as redes, o editor do debate público, e o faz de modo anárquico, numa constante guerra civil em que cada um imagina ganhar, a cada momento, e todos perdem, ao longo do tempo. Weis diz que nos tornamos um grande campus, ou um grande departamento de estudos de gênero. Prefiro outra formulação: nos tornamos uma sociedade de militantes. Nas redes, nas universidades, no jornalismo e, mais recentemente, na vida das empresas e hábitos de consumo. É evidente que muita gente se mantém serena em meio à tempestade, para o horror das hordas de qualquer lado. Mas o espírito do tempo é outro. É o “espírito de partido”, como disse Madame de Stäel sobre o clima intelectual francês à época da revolução, e de quem me lembrei por estes dias. O ponto é que isto não irá mudar. Nos anos trinta do século passado, Ortega y Gasset vaticinou que o homem-massa havia ingressado de vez na cultura. Cem anos depois, graças à internet, quem domina o palco é o cidadão-pregador, o cidadão-dedo-em-riste. Seu destino ainda é incerto. Ele pode conduzir mudanças positivas, mas pode também agir como uma nuvem de Black Mirror. É positivo que as pessoas façam promessas de fim de ano e apostem que a pandemia vai mudar as coisas e que voltaremos a agir com mais empatia e sentido de comunidade. Quem sabe a esperança de Gabeira, a quem sempre leio, apostando que a politica, depois de nos ter afastado, possa novamente nos aproximar. Ele lembra que já fomos mais gentis uns com os outros, mesmo divergindo, como na época das diretas. Minha hipótese é que a política continuará a nos separar. A lógica da tribo, da reação imediata e baixa empatia veio pra ficar. Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados. Nossa melhor chance é fugir da querela política. Sugiro experimentar algo nessa linha nos encontros deste verão. Fugir da postura do sujeito que um dia me disse que iria “perdoar” seu irmão por apoiar o político que ele detestava. Presunção tola. Vale muito mais um abraço e a descoberta de coisas interessantes que todos temos em comum. E elas não são poucas, podem acreditar. Fernando Luis Schüler é Professor do Insper (artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 31/12/20)
Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?

Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”. Observe-se como mesmo um político moderado como Biden tropeça. Se um lado, ele “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado? Torço para que sido apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América”, como ele gosta de dizer, do diálogo de surdos em que se transformou aquela grande democracia. Vamos finalmente testar a tese, que canso de ouvir por ai, de que é fundamentalmente o exemplo de cima que define a qualidade do debate público. Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo. Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso. Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade. Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. Vai aí a dicotomia “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda). Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público determinada, em boa medida, pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia. Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate. Temas de identidade migraram para o centro do debate político, o mesmo ocorrendo com a defesa da tradição e crítica do politicamente correto, na direção contrária. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional. Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família. Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho. John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural. Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política. Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia. Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Escolher a escola dos filhos deveria ser um direito, não um privilégio

De toda minha experiência com debates sobre o Brasil, não há nada que mais irrite a elite brasileira do que a simples ideia de assegurar que as famílias mais pobres possam escolher a escola dos filhos. Ainda me lembro da primeira vez em que sugeri isso, anos atrás. Era um desses eventos bacanas focado no “gap” social brasileiro. Na saída, uma senhora elegante me perguntou, pensativa: então quer dizer que os mais pobres vão estudar no Colégio do Rosário? “Sim”, respondi, ao que ela me retrucou: “E irão também nas festas de 15 anos?”. Ela preparava a festa de 15 anos da filha e parecia preocupada com aquilo. Não era apenas a questão de receber a mesma educação. O problema era a invasão de um mundo social que ela via como devidamente “protegido”. Na sua visão, era óbvio que os mais pobres tinham o direito à educação, mas no “lugar certo”, isto é, nas redes estatais. Não importava muito a desigualdade nem a supressão do direito de escolha para quem não tinha dinheiro para pagar uma mensalidade. As coisas eram assim porque sempre haviam sido. Me lembrei disso quando li, aqui na Folha, que há apenas 10% de alunos negros nas escolas particulares de São Paulo. A reportagem diz que “a qualidade das escolas privadas supera a das escolas públicas” e sugere que seria bom que mais alunos negros e menos favorecidos pudessem estudar lá. Também acho. O texto sugere que a solução poderia estar na oferta de bolsas pelas próprias escolas. Seria ótimo, mas obviamente não é uma solução com escala. O Estado deveria garantir isso. Foi com esta visão que o ativista de direitos civis Howard Fuller, no início dos anos 1990, a partir de uma demanda por inclusão educacional de famílias negras, criou o primeiro programa americano de bolsas em larga escala. Hoje há 64 programas desse tipo nos Estados Unidos. Bem desenhados, eles geram oportunidades reais de integração para alunos menos favorecidos. Não se trata de substituir o sistema tradicional de ensino. Trata-se de produzir diversidade, trabalhar em escala experimental e comparar os resultados com diferentes modelos. Tudo que nos recusamos a fazer no Brasil. Por aqui, ao mesmo tempo que nos indignamos com o fato de haver tão poucos alunos negros na rede particular, não fazemos nada. Apelamos à uma vaga filantropia privada enquanto fixamos de vez o monopólio estatal do ensino público, como vemos agora na tramitação do novo Fundeb. É interessante que o Brasil já possui uma boa experiência nesta área com um programa criado pelo governo Lula: o Prouni. Talvez seja o maior programa de bolsas e liberdade de escolha educacional do mundo. Mesmo assim, é curioso que nosso establishment continue dizendo que coisas assim não têm como funcionar. Ainda este ano participei de um debate sobre o tema e um “especialista” foi taxativo: os mais pobres não teriam condições de “analisar indicadores e fazer escolhas”. Minha visão de mundo era tão distante daquilo que encerrei a conversa. Fiquei pensando se aquela pessoa realmente acha que o governo tem feito boas escolhas em nome das famílias mais pobres, na educação, ou se era apenas o velho preconceito segundo o qual alguém só aprende a tomar decisões a partir de um certo padrão de renda. Vamos lá. É difícil levar a sério a ideia de reduzir desigualdades e manter, a ferro e fogo, o hiato educacional brasileiro. Sem permitir, em algum momento, que alunos negros e brancos, de maior ou menor renda, compartilhem não apenas as mesmas escolas, mas também de um universo social comum. A reportagem da Folha traz o depoimento de Lucas Rodrigues, que ganhou uma bolsa no Colégio Bandeirantes. Ele fala do choque de trajetórias sociais, mas diz que “é positivo. Descobrimos que todos vivemos em bolhas e aprendemos a desfazer preconceitos”. No fundo, todos sabemos disso, mas permanecemos na mais perfeita inércia. Nos especializamos em retórica bacana para garantir que o direito de escolha educacional continue sendo, como tantos direitos neste país, um privilégio de poucos. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (Originalmente publicado na Folha de SP, em outubro de 2020)
Um novo modelo de Estado, voltado para o cidadão

Pergunta rápida. O que há em comum entre instituições tão diferentes quanto a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a OSESP, o Projeto Sirius, o acelerador de partículas e um dos mais complexos empreendimentos científicos brasileiros, em Campinas, e o Hospital Regional de Jundiaí? Em primeiro lugar, são instituições de excelência, mas este não é o ponto. Elas tem em comum o fato de que representam inovações estratégicas para a gestão pública brasileira. São iniciativas fomentadas pelo poder público mas gerenciadas via contratos de gestão, com o setor privado. A OSESP tem o comando da Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; o Projeto Sirius tem a gestão do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM, e o Hospital Regional de Jundiaí é gerenciado pelo Instituto Sírio Libanês. Vai aí uma tendência da gestão pública contemporânea. Assim como aconteceu com o setor privado, a integração global e a pressão por eficiência fez com que os governos passassem por um processo de especialização. Ao invés do antigo modelo do governo horizontalizado, prestador de serviços, do governo que “faz de tudo”, vem crescendo a ideia do governo que regula, fixa metas de longo prazo, garante a vigência de direitos, mas deixa que o setor privado e o terceiro setor executem a gestão de serviços. Com isso, produz-se uma equação ganha-ganha: o governo faz o que sabe fazer melhor e tem um mandato democrático para fazer: o macroplanejamento social, enquanto o setor privado, com ou sem fins lucrativos, igualmente faz o que sabe: o gerenciamento na ponta, em uma ambiente competitivo. Esta metamorfose das funções dos governos de sua relação com o mundo privado remonta à chamada Nova Gestão Pública, que explodiu nos anos 80 e 90 com o processo de globalização. A integração dos mercados pressionou os países a reduzir custos, tributos e burocracia, sob pena de perda de espaço e competitividade diante da abertura global. No Brasil chegamos um tanto atrasados a este processo. A Constituição de 1988, em que pese todos os seus méritos democráticos, consagrou um modelo pesado de burocracia pública, baseado na centralização orçamentária, regime jurídico único dos servidores, estabilidade no emprego, ausência de meritocracia e engessamento dos processos de gestão, cuja expressão mais conhecida é a lei das licitações (Lei 8.666/93) A adoção do modelo burocrático levou a uma contínua perda de qualidade na oferta dos serviços públicos. O resultado foi a migração da classe média para os mercado privado. Para as escolas particulares para saúde privada. Os mais pobres permaneceram atados aos serviços oferecidos pelo Estado, em regime de monopólio. O resultado final foi o progressivo agravamento da desigualdade social brasileira. A reversão desse estado de coisas começa com o processo da reforma do Estado, nos anos 90. Seu aspecto crucial foi a criação da lei das Organizações Sociais e a introdução, em maior escala com a devida base jurídica, dos processos de contratualização na administração pública brasileira. A ideia básica está contida nos exemplos que trouxemos no inicio do texto: se o Sirio Libanês pode disponibilizar toda sua expertise, firmar um contrato de gestão com o governo e gerenciar um hospital público, aberto a toda a população, por que isto não deveria ser feito? A essência dos processos de contratualização é oferecer à população mais desfavorecida o mesmo padrão de serviços de que dispõe a classe média e os mais ricos, no mercado. Trata-se de uma política de equidade. Sua base filosófica é o entendimento claro de que para que um serviço seja público ele não necessariamente precisa ser estatal. Esta foi uma confusão que por muito tempo marcou a cultura politica brasileira, e que aos poucos vem sendo desfeita. Nos últimos anos, criou-se no Brasil uma base de legislações abrangente e sofisticada que permite que os governos criem modelos inovadores e sistemas de parcerias público-privadas em todas as atividades não exclusivas de Estado. Além das legislações de Organizações Sociais, que hoje existem em praticamente todos os Estados, tivemos a lei das PPPs, em 2004, e mais recentemente a criação do Marco Regulatório da Sociedade Civil, a lei 13.019/14. Com base nestes modelos, o País vem se transformando em um canteiro de inovações surpreendentes e que apontam para o futuro da gestão pública brasileira. É o que vemos, por exemplo, na rede de escolas infantis construídas e gerenciadas via PPP, em Belo Horizonte; é o que vemos na experiência pioneira de gestão, igualmente via PPP, do Hospital do Subúrbio, em Salvador. É o que vemos em experiências que vão desde uma instituição de impacto internacional, como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, até a prestação de serviços de atenção à saúde. Apenas na cidade de São Paulo, mais de 60% das unidades básicas de saúde já são prestadas via contratos de gestão. Há muito o que caminhar pela frente. Talvez a educação seja o maior desafio que temos pela frente. O Brasil soube desenvolver modelos inovadores, como o ProUni, no ensino superior, mas ainda pouco evoluiu no que diz respeito ao ensino básico. Dias atrás o Congresso aprovou, pela primeira vez, a possibilidade de parcerias de gestão com instituições filantrópicas no ensino fundamental e médio. São boas notícias no final de um ano difícil. E um chamado à responsabilidade que temos com a construção de um País mais justo para todos. Escrito em conjunto com Regina Esteves Publicado originalmente na Revista Exame, em dezembro de 2020
A educação deve ser assim “porque sempre foi”?

Na votação do Fundeb, em agosto, o Congresso atendeu à pressão corporativa e inscreveu na Constituição a obrigatoriedade de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam para gasto com pessoal. Na contramão de tudo que se discute hoje em termos de autonomia federativa e redução da rigidez orçamentária. Agora o Congresso vota a regulamentação final do Fundeb. Entre outras coisas, a votação dirá o que fazer com os 30% restantes dos recursos do fundo. O tema muitas vezes surge como sendo uma discussão sobre modelos de gestão educacional. Existem os modelos de gestão estatal direta, os modelos de escolas contratualizadas, de natureza filantrópica, e há modelo de concessão de bolsas, cujo maior exemplo no Brasil é o Prouni. No ensino público básico o país adotou, historicamente, o primeiro modelo. A gestão estatal direta, feita pela máquina pública de estados e municípios. Construir escolas, abrir concurso, regime jurídico único, lei 8.666, sindicatos fortes e mandonismo político. Os resultados todos conhecemos. O país fez mais do que isso: impôs um quase monopólio estatal na educação pública. E o fez em contradição direta com o texto constitucional, que diz, em seu artigo 213, com perfeita clareza, que “os recursos públicos da educação serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”. É tão claro quanto ao tema que o país discutiu dias atrás sobre a possibilidade de reeleição nas casas do Congresso. A Constituição criou um sistema misto de provisão da educação pública. O objetivo era precisamente dar aos gestores estaduais e municipais a autonomia para avaliar modelos e fazer o melhor pelos estudantes. A pressão corporativa e inércia do mundo político sempre impediram que esse debate fosse feito. O monopólio estatal foi simplesmente dado como norma e única alternativa disponível. O resultado foi um crescente abismo social: a classe média foi rapidamente migrando para o ensino privado e os mais pobres presos à escola estatal. Criou-se no país algo muito mais grave do que desigualdade nos resultados que surgem no Ideb ou a cada três anos no Pisa. Criamos dois mundos sociais que vivem à parte e reproduzem nossa desigualdade estrutural: o mundo dos que podem escolher, nas redes privadas, majoritariamente branco e de maior renda, e o mundo dos sem escolha, majoritariamente negro e de menor renda, presos ao Estado. Este é o País que o monopólio estatal da educação pública ajudou a “cristalizar”. Agora estamos diante de uma nova decisão. E sob o risco de consagrar em lei, à revelia do que diz a Constituição, a obrigatoriedade de que todos os recursos do Fundeb, e logo os alunos que dependem desses recursos para estudar, fiquem presos às redes estatais de ensino. Como tem observado o deputado Tiago Mitraud, não se trata de uma discussão sobre este ou aquele modelo de gestão da educação. O ponto é perguntar se será possível a discussão de qualquer modelo que não seja o monopólio estatal. A questão central é se vamos basear escolhas educacionais em “evidências” ou isto termina por ser pura retórica. No mundo real da política, impõe-se desde Brasília que os 27 estados e 5.570 municípios brasileiros só poderão adotar, muito longe de qualquer dado ou evidência, um único modelo. O mesmo praticado desde sempre e com os resultados que sabemos. Essa decisão será um erro. Mais um dos tantos que já se cometeram em nossa educação pública. Reverter isso supõe alguma vontade política de pensar de maneira diferente. Coisa rara neste país do “assim é porque sempre foi”, a máxima de nosso tradicionalismo político tão bem definida pelo mestre Raymundo Faoro. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (Originalmente publicado na Folha de SP)