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AS DORES DO PARTO DE UM NOVO COMEÇO

(publicado originalmente no em PODER 360, dia 28/01/2018) Caso ganhe Fernando Haddad, de algum modo estaremos de volta ao início de 2016, sem saber direito se teremos um governo com a cara da primeira gestão Lula, com Palocci no comando da economia, ou o desenvolvimentismo da era Dilma, que nos levou à brutal crise econômica de 2015/2016. Caso ganhe Bolsonaro, teremos uma experiência radicalmente nova, e como tal plena de incertezas. Talvez exista mesmo uma sabedoria oculta, nesta hipótese: a democracia é um metabolismo destinado a integrar e incluir. Uma máquina surpreendente que, de tempos em tempos, busca a turma da periferia e coloca no centro do jogo. Bolsonaro é isto: o sujeito do canto da sala que aos poucos vai abrindo seu espaço. O Deputado ranzinza, que não liderava, ocupava cargos ou aprovava projetos. Com o tempo, soube se tornar um ponto de convergência da insatisfação difusa da sociedade. O primeiro líder majoritário conservador desde a transição. O nosso neopopulista. Nossa mistura tropical de Beppe Grilo e Donald Trump, ainda que muito diferente de todos eles. Se ele ganhar, o metabolismo democrático fará seu trabalho: irá finalmente integrar a direita conservadora ao grande jogo, assim como fez com a esquerda, nos anos 80 e 90. Há riscos neste processo? De um modo geral, diria que sim. A frase tem algo de protocolar. Somos uma democracia jovem, a política anda judicializada, elegemos parlamentares de 30 partidos, para o Congresso, e vivemos a mais aguda polarização política desde a transição. É de imaginar que uma nova elite política pouco experiente e algo voluntarista, como é o grupo de Bolsonaro, com posições claramente hostis ao establishment político, prenuncie forte instabilidade, à frente. O difícil é ir além disso. Nesta última semana, uma jornalista me perguntava o que aconteceria se Bolsonaro enviasse “projetos antidemocráticos” para o Congresso. Observei que a pergunta me parecia algo contraditória. O Congresso é, por definição, o lugar em que a democracia faz as suas leis. Pedi que ela me desse um exemplo do que poderia ser um projeto autoritário. Mudou de assunto. Na conversa, percebi que seu conceito de risco democrático era, de verdade, a agenda conservadora de Bolsonaro. A ideia difusa de que ele poderia fazer alguma coisa contra grupos minoritários, e quem sabe obter apoio do Congresso. Tentei ajudar a repórter. Bolsonaro tem, de fato, uma agenda conservadora a ser implementada. Ela é feita de ideias como a redução da maioridade penal, inscrição de ações violentas de movimentos sociais na lei antiterrorismo, excludente de ilicitude, flexibilização do estatuto do desarmamento e a escola sem partido. Ninguém sabe bem os detalhes dessa agenda, mas ela parece a melhor expressão de Jair Bolsonaro. A agenda é conservadora, sem dúvida, ainda que qualquer conceito, no mundo plástico da política, não tenha a objetividade que por vezes imaginamos. O ponto não é este: seja ou não um programa conservador e de traços regressivos, ele foi aberto e exaustivamente defendido pelo candidato, nas eleições. Se ele for eleito, é esta a agenda aprovada pela maioria do eleitorado brasileiro. Ela será, goste-se ou não, a agenda parida pela democracia brasileira. Por óbvio, o mesmo vale para a tramitação que cada um desses pontos demandará, no parlamento brasileiro, e, em alguns casos, no STF. Há um caminho longo e difícil pela frente, a ser trilhado em cada um desses temas. O que não é possível é imaginar que uma agenda qualquer, pelo simples fato de expressar uma posição conservadora, seja menos legítima, na democracia. Não faço juízo de valor. O ponto é simplesmente aceitar a regra do jogo. O autoproclamado progressismo precisa aprender mais sobre essas coisas: é preciso argumentar, disputar eleições, ganhar ou perder e apostar no sistema de freios e contrapesos que é próprio da democracia. E definitivamente parar de deslegitimar o adversário, quando a maré vem na direção contrária. Do contrário, alguém poderá desconfiar que o autoritarismo não venha exatamente daqueles a quem obsessivamente chamamos de fascistas e nazistas, mas da gente do bem. Da turma que, talvez pelo costume de sempre ganhar o jogo, tem dificuldades de aceitar a chegada de novos atores para dividir o palco da democracia. Vai aí uma das marcas da eleição: a ideia de que “do outro lado” estava não um adversário, mas aquele cuja indignidade sequer permite que que nós, os puros, lhe pronunciemos o nome. Aquele que não pode ser nominado visto que não deveria, efetivamente, existir. O insano, o patético, o coisa ruim, prenúncio do fim da “civilização e da humanidade”, como li em um post, nesta última semana, de um pacato acadêmico paulista. Tudo isso é um tanto grotesco, e, imagino, será objeto de pesquisa antropológica no futuro. Intuo que foi precisamente o cansaço e a por fim a revolta contra esta retórica da superioridade moral (junto com seu primo-irmão, o politicamente correto) que embalou a emergência desajeitada do homem comum e seu estranho herói. Tudo feito de um jeito torto, inadequado, fora do tom há muito estabelecido, para o deboche e logo o horror da gente de bom gosto, pelas ruas, happenings em aeroportos, igrejas sem pedigree e no universo selvagem das redes sociais. Há outras leituras do processo, talvez ainda mais interessantes. Nossa propensão ao exagero, que talvez seja o novo normal, das democracias, na era digital, atingiu o estado da arte. Exemplo irretocável disso foi a narrativa de certo modo predominante, no processo eleitoral, curiosamente formulada por um professor americano: Steven Levitsky. Levitsky pontificou e deu algum verniz acadêmico à retórica de fim do mundo, sobre Bolsonaro, que acabou pautando –com algum sucesso– o marketing da campanha de Fernando Haddad. Na visão do professor americano, Bolsonaro será o Hugo Chavez brasileiro. Caso Levitsky tenha razão, muito em breve teremos hordas de brasileiros fugindo pela fronteira, talvez na região da Foz do Iguaçu, tentando escapar para o Paraguai e Argentina. A estratégia Bolsonaro residiria em forçar nossas instituições ao seu limite. “Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei”, diz o professor. Quando li a frase, fiquei curioso.

A tranquila força da nossa democracia

A turma que apostou na teoria do “risco democrático”, agora, está com um problema: a internet. A internet é uma máquina de não esquecimento. Está tudo lá, registrado. Milhares de artigos, entrevistas, manifestos e “alertas” afirmando que a democracia iria ser destruída, de um modo ou outro, caso Bolsonaro ganhasse as eleições. Pois bem. Ele ganhou, e agora o tempo está correndo. Se a democracia de fato soçobrar, no Brasil, logo saberemos. Em um ou dois anos teremos já uma boa imagem do que ocorrerá com nossas instituições. Caso nossos ilustres acadêmicos estiverem certos, nos tornaremos uma nova Venezuela ou alguma variação próxima. O catálogo de grandes alertas é inesgotável. Agora é “civilização contra a barbárie”, diz Wagner Moura, com um olhar que só ele saberia fazer. Do exterior, a imaginação flutuou nas estrelas. Leio de um professor americano que andou por aqui como uma espécie de Roger Waters da ciência política, durante as eleições, que Bolsonaro irá mover uma guerra às facções criminosas do país, e quando a violência explodir suspenderá a Constituição e dará fim a nossa democracia. Leio outro que nos convoca a resistir enquanto for tempo. Enquanto ainda dispusermos de algum espaço e antes que “nossas liberdades sejam retiradas” pelo novo presidente. Não há nenhuma necessidade de discutirmos muito sobre a correção, ou não, da retórica catastrofista sobre o Brasil. Basta esperar. Estamos diante de uma espécie de experimento natural. Se o grande alerta estiver errado e nossa democracia sobreviver ao inominável monstro de Glicério (cidade natal do novo presidente), tenho convicção de nossos bons intelectuais farão uma discreta e silenciosa autocrítica. Não será preciso nenhum texto ou declaração pública (eles não o fariam, de qualquer maneira), nem mesmo um post, nas redes sociais. Sugiro apenas um brinde solitário em homenagem a nossa democracia e a nossas instituições, que julgaram tão mal. E quem sabe algum arrependimento pelo pecadinho tão impróprio a um acadêmico: ceder à tentação da militância. Ou pior: dar trela e transformar em tese acadêmica aquilo que não passava, no fim das contas, de retórica de campanha de um partido político. Não vale, neste debate, fazer uma confusão bastante elementar: caso a catástrofe não aconteça, sair pela tangente sugerindo que a democracia não terminou, mas que passamos por um retrocesso democrático, por conta da agenda conservadora do governo Bolsonaro. Vamos imaginar. O Congresso aprova, a partir de uma proposta apoiada pelo governo, a redução da maioridade penal para 17 anos. O projeto alcança 308 votos na Câmara e 49, no Senado, em dois turnos. Haveria algum problema democrático em uma decisão como esta? De minha parte, sou contra a redução da maioridade penal, o que é irrelevante. O aspecto relevante é: foi eleito um presidente com esta proposta, explicitamente defendida por anos a fio. Ato seguinte, ela recebe apoio do governo e é aprovada pelo Congresso. Sua aprovação será, portanto, um resultado da nossa democracia, ainda que possa desagradar uma imensa legião de brasileiros. O mesmo raciocínio vale para os demais itens da pauta conservadora, como a (ainda vaga) ideia de flexibilizar o estatuto do desarmamento. Tudo por uma simples razão: a democracia não se decide pelo que eu, você, um punhado de intelectuais, ou o maracanã lotado de gente movida pelas melhores intenções achamos que é certo fazer. A democracia, como não se cansava de repetir Norberto Bobbio, é o império das regras do jogo. É um sistema feito de freios e contrapesos, equilíbrio entre poderes e respeito à Constituição. Respeitadas as regras do jogo, nada diz sobre a qualidade da democracia se os seus resultados, isto é, se as decisões tomadas pelos cidadãos (nas eleições), pelo parlamento, sob a vigilância da Suprema Corte, forem consideradas por alguns como progressistas ou conservadoras. O que me espantou, nesta eleição, mais uma vez, é o mais completo desprezo que boa parte do mundo intelectual tem pela simples ideia do pluralismo e da tolerância como uma modo de ser que é próprio da democracia. Mais de 55 milhões de pessoas votam em um candidato, mas no dia seguinte isto é tomado como a mera expressão de um erro, tragédia, piada ou, como escutei de um bom amigo e intelectual, de uma campanha que não passou de “estridência ideológica vazia”. O novo governo já começa a enfrentar os problemas do mundo real da política, a necessidade de votos para a reforma da Previdência, a pauta da autonomia do Banco Central, no Congresso, a composição do ministério e formação da base partidária. O curso da política de carne e osso segue, a ritmo acelerado, enquanto uma estranha parte da sociedade parece não ter percebido que a campanha eleitoral terminou, que a democracia fez valer sua voz, e as instituições, talvez para desgosto de muitos, cumpriram exemplarmente o seu papel. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 31/10/18)

Existe ou não, afinal de contas, doutrinação ideológica em nossas escolas?

O projeto Escola se Partido é um tema difícil de tratar. Ele produz um debate necessário e toca em um problema real, ainda que não necessariamente ofereça a melhor solução para este problema. Meu ponto não é discutir o projeto, mas o tipo de debate que se criou ao seu redor. Acho curioso, em particular, um certo efeito avestruz que parece ter tomado conta de boa parte de nossa elite intelectual. A turma que simplesmente nega o fato óbvio de que existe um problema de doutrinação ideológica em nossas escolas. Há várias estratégias nesta direção. Alguns dizem que até pode existir algum viés político em nosso ensino, mas que é difícil medir seu tamanho. Faltaria algo como um “doutrinômetro”, um método ou instrumento para medir quantas horas/aula de doutrinação os estudantes receberiam, ano a ano, país afora. Outros apelam a argumentos com algum efeito retórico: se há doutrinação, como é possível que Bolsonaro tenha ganhado as eleições? Por esta lógica, deveria haver doutrinação quando Lula ganhava, com folga. Isto não quer dizer nada. É puro jogo de palavras sugerir alguma relação direta entre resultados eleitorais (por definição afetados por múltiplas circunstâncias) e o que se passa nas aulas de humanidades em nossas escolas. Há ainda os que apelam ao argumento da irrelevância: temos mais o que fazer do que pensar em livros didáticos ou no que dizem os professores nas salas de aula. A reforma da Previdência, por exemplo, ou quem sabe o desmatamento da Amazônia. E por aí vai. De minha parte, digo o seguinte: fiz uma pesquisa sobre o tema. Avaliei os livros de história e sociologia mais usados em nosso ensino médio. Observei o uso dos conceitos, a seleção factual, as fontes de informação e as indicações de livros e filmes. O viés ideológico é claro e brutal. Exemplo rápido: FHC é um desastroso neoliberal (“apesar de tentar negar”), que vendeu nosso patrimônio em meio a “denúncias e escândalos por todos os lados”, e Lula, o primeiro presidente “que não é da elite”. Seu governo foi acusado de um certo “mensalão” amplamente explorado pela “imprensa liberal”. É só um aperitivo. Está tudo lá. O problema é real. Parte de nossa elite intelectual não se importa com isso simplesmente porque concorda com o viés político. Inclui-se aí boa parte da academia. Outro tanto não concorda muito, mas não quer se incomodar. Gente que descobriu o óbvio: o melhor jeito de escapar da patrulha ideológica é concordar com ela, ou ao menos fazer de conta. Falácia bastante comum no debate sobre a doutrinação, na educação, é sustentar que a discussão se dá entre os que defendem a censura e os que defendem a liberdade de pensamento para os professores e alunos em sala de aula. Sejamos claros: o professor, em sala de aula, não detém nada parecido com uma liberdade absoluta para expressar suas posições políticas e visões de mundo. Ele não é livre, por exemplo, para dizer aos alunos em quem eles devem votar nas eleições. Foi este o sentido dado por Kant, no final do século 18, quando estabeleceu a distinção entre o que chamou de uso privado e uso público da razão. Qualquer um de nós, na condição de um cidadão, é perfeitamente livre para expressar suas convicções sobre a vida e o mundo da política. O mesmo não é verdade quando fazemos um uso privado da razão, isto é, quando cumprimos um determinado papel social. O âncora de um programa jornalístico, por exemplo. Ele simpatiza com esta ou aquela posição política, não há problema, mas no exercício de sua função profissional trata a informação com isenção e apego aos fatos. O mesmo ocorre com o professor. Sua função é promover o aprendizado e criar o melhor ambiente possível para o crescimento intelectual dos alunos. Seu papel não é convencer os alunos sobre esta ou aquela doutrina ou posição política, religiosa ou cultural. Para usar a expressão de Max Weber em “A Ciência como Vocação”, ele não deve agir como “profeta ou demagogo”, usando de sua posição de poder e sua audiência cativa para fazer a cabeça dos alunos. Isto é particularmente relevante para o ensino médio e fundamental, quando se está lidando com crianças e adolescentes no início de seu processo de formação intelectual. Dito isto, não é claro que o projeto Escola sem Partido ofereça a solução mais adequada para o problema da doutrinação, em nossas escolas. Confesso não gostar da ideia de incentivar que alunos denunciem seus professoresa órgãos de Estado. Considero bizarra a imagem de alunos gravando professores para posterior acusações públicas ou coisas do tipo. Isto sem prejuízo de que as direções de escolas, secretarias e mesmo o Ministério Público façam o seu trabalho, quando abusos de qualquer ordem forem cometidos. Que se coloque um cartaz nas salas de aula, contendo princípios consagrados na Constituição e nos documentos que regem nossa educação? Não vejo problema, mas desconfio que não irá adiantar muita coisa. Seja qual for a solução a ser dada ao tema da doutrinação ideológica em nossas escolas, ela começa com o reconhecimento simples de que o problema existe e deve ser discutido com franqueza. Dias atrás li um artigo sustentando que ideologização do ensino não tem nada a ver com a qualidade da educação oferecida a nossos alunos. Tem sim. Doutrinar, seja para que lado for, significa desprezar a lógica mais elementar do pensamento científico. Significa abrir mão do cultivo de competências analíticas fundamentais à vida profissional e à vida do cidadão, que envolvem apego ao dado empírico, distanciamento crítico e recusa do viés de confirmação. Não se trata apenas de induzir os alunos a apoiarem este ou aquele partido ou ideologia. Isto é ruim para a democracia, mas não é o maior problema. A questão central é recusarmos um tipo de educação que forma torcedores, em vez de pessoas capazes de pensar com racionalidade, isenção e método. E que possam, a partir daí, defender com propriedade as ideias que julgarem mais apropriadas, em qualquer terreno. Fernando Schüler

O País estará assinando um cheque em branco, nestas eleições?

O país parece ter decidido ir para o tudo ou nada. De alguma maneira, vamos repetir a polarização de 2014, apenas com uma temperatura mais elevada. Na dança das cadeiras da democracia brasileira, o PSDB perdeu o lugar para Bolsonaro. Perdeu por seus próprios erros e indefinições, mas também porque mudaram os termos do debate político. Ao contrário de 2014, o maior protagonista desta eleição é um tipo alheio ao pacto da transição democrática dos anos 80. Dilma ou Aécio, Lula ou FHC, podiam divergir sobre muitas coisas, mas todos chamavam 1964 de golpe e ninguém discutia o envolvimento de Brilhante Ustra com a tortura. Bolsonaro é expressão de uma outra história. Sua narrativa do Brasil é distinta de tudo que aprendemos, nos últimos trinta anos, nos livros didáticos. Seus heróis estão do outro lado. Ele é, de fato, um outsider da redemocratização brasileira. Diferente de 2014, o centro dessa eleição não é o debate sobre economia ou políticas públicas. Ninguém, de fato, está prestando muita atenção em temas aborrecidos como reforma da previdência, tributária, déficit público ou como resolver a tragédia de nossa educação pública.   Mesmo o tema das privatizações, que sempre produziu algum barulho, hoje está fora do jogo. Paulo Guedes sugere privatizar mais de cem estatais, e ninguém dá muita bola. Haddad propõe dar marchar ré na reforma trabalhista, regular a mídia e, quem sabe, convocar uma nova constituinte, e tudo parece dar sono. Em boa medida, com razão. Os eleitores aprenderam a não levar muito a sério programas de governo, depois de sete eleições. Bolsonaro promete uma renda universal de cidadania a todos os brasileiros. É isso mesmo: a proposta do senador Suplicy. Está lá, escrita, no seu programa de governo, mas duvido muito que ele sequer saiba disso. O general Mourão é nosso campeão. O homem que nos salva do tédio. Suas ideias sobre o 13º salário ou sobre a constituinte de notáveis não fazem muito sentido e não passam de pedaços de retórica soltos ao vento. Mas despertam mais atenção do que qualquer coisa bem estudada que o chamado centro político tenha dito, ao longo do debate eleitoral. Vai aí um subproduto de uma disputa pautada pela guerra cultural. O centro político desaparece porque sua agenda “racional” simplesmente está fora dessa eleição. Alckmin pode falar em reforma política, soletrar suas realizações no governo de São Paulo, e Meirelles contar como debelou a inflação e formulou a PEC do teto. Sono. O resultado disso tudo é que em boa medida assinaremos um cheque em branco, nestas eleições. Se o debate não é (quase nada) programático, o que exatamente estamos elegendo? Ok, é mais divertido ficar caçando bruxas, na internet, e chamando os oponentes de “leprosos morais”, como li dias atrás de um ilustre professor, tecendo considerações delirantes sobre a o “novo fascismo”, a destruição da família ou o próprio fim da civilização, caso a turma do outro lado vença as eleições. Mas tudo isso não passa de “bullshit”. Estética do exagero e destempero típicos do ecossistema digital, com o qual ainda não aprendemos a lidar. Na prática, o novo presidente, seja ele Haddad ou Bolsonaro, tomará posse em janeiro, formará uma base no Congresso (fundamentalmente com os mesmos partidos), e apresentará ao país uma agenda de reformas. Que agenda é esta é o que menos interesse desperta discutir, nesta campanha. Parecemos todos felizes em brincar de profetas do caos e guerreiros de posições extremas, nas redes sociais. Mas a conta fatalmente virá, logo adiante. (texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 04/10/18)

O Brasil não deveria ser tratado como uma república de bananas

Sempre apreciei a convivência com o Professor Jorge Castañeda, ex-Chanceler Mexicano e autor de bons livros, como Utopia Desarmada. Ontem me surpreendi com seu artigo no The New York Times sustentando a posição de que o Brasil deve permitir a candidatura de Lula à presidência da República. Seu artigo vai na mesma linha da recente nota do comitê de direitos humanos da ONU (não confundir com o Conselho de Direitos Humanos). Ambos não dão muita bola para pormenores da vida brasileira, como a Lei da Ficha Limpa, nem se preocupam muito em especificar a quem se dirigem quando falam que “o Brasil deveria fazer” alguma coisa. Talvez devessem se dirigir à Ministra Carmem Lúcia, visto que o assunto está com o judiciário, um poder independente, mas intuo que ambos não estejam muito preocupados com detalhes desse tipo. Na lógica de Castañeda, não há propriamente um sistema judiciário no País, com regras, autonomia e hierarquia. Há um “debate”. Há argumentos que apontam uma perseguição do Juiz Sérgio Moro a Lula, há uma campanha internacional a seu favor, contando inclusive com uma carta do senador Bernie Sanders, e há mesmo uma reunião em que o Papa teria escutado com atenção alguns aliados do ex-Presidente. A parte do Senador Bernie Sanders me pareceu particularmente curiosa. “Quem é essa gente”, parece perguntar Castañeda, “quem são esses juízes brasileiros para julgar, ou este Congresso para fazer uma lei da ficha limpa, se o próprio senador americano já se manifestou?” Castañeda comete um equívoco que vem pautando boa parte do barulho externo sobre o caso Lula: ele compra a retórica de campanha do ex-Presidente pelo valor de face. Sugere que poderia ser “pesado demais” para a democracia brasileira caso Lula não concorra e não consiga eleger seu substituto e que os fãs do ex-presidente poderiam se sentir privados do direito de votar. Há muitas coisas interessantes a observar nesta linha de argumentação. Em primeiro lugar, a visão algo fantasiosa do que se passa no Brasil. A começar pela confusão elementar entre “povo” ou “sociedade” e a militância organizada e relativamente restrita (ainda que ativa e barulhenta) de um partido politico, seja ele qual for. Ativismo e retórica são essenciais na democracia, mas não a definem. Em segundo lugar, há um problema evidente de equidade. As mesmas regras deveriam valer para todos (incluindo personagens pelos quais Castañeda ou o comitê da ONU, imagino, não teriam lá grande simpatia) ou deveríamos instituir, no País, um direito próprio para quem tem militância e algum apoio externo? Por fim, aposta-se na ideia difusa de que somos um País feito de uma elite política degenerada, com os juízes no comando e funcionando como “árbitros das eleições”. Uma espécie de república de bananas gigante, cujas leis e instituições não mereceriam ser levada muito à sério. O ponto é que vai aí uma visão fantasiosa sobre Brasil, a qual deveríamos rechaçar em respeito àquilo que nós mesmos soubemos construir nestas mais de três décadas de democracia. Uma democracia com muitos defeitos, a começar pela falta de consenso sobre o que deve, afinal, ser reformado em nosso sistema político. Vai daí o fato óbvio de que precisamos dobrar a aposta na moderação e no diálogo, e não jogar mais lenha na fogueira. Um bom ponto de partida seria observar o País sob o prisma daquilo que o País construiu na história recente. A Constituição de 1988 completa trinta anos, em nosso mais longo período de normalidade democrática. Soubemos respeitar uma rigorosa alternância de poder e sobrevivemos a dois processos de impeachment. Consolidamos instituições independentes, o que no fundo é o que parece incomodar muita gente. E em nenhum momento, ao menos até agora, estivemos diante de uma escolha entre a democracia e o estado de direito, como sugere o Professor Castañeda. Mesmo porque, no mundo moderno, do qual felizmente fazemos parte, essas coisas necessariamente andam de mãos dadas. (originalmente publicado pela Folha de São Paulo, em 21/08/2018)

Bolsonaro, democracia e o senso comum

Parte de nossa imprensa faz com Bolsonaro o que o “mainstream” da imprensa americana fez com Donald Trump. Abre-se mão de fazer jornalismo em favor da militância. O questionamento, o dado factual, o desejo de saber e informar é substituído por um difuso e por vezes raivoso ativismo Foi o que se viu na recente entrevista de Bolsonaro no Roda Viva. A cena toda parecia uma gincana para saber quem seria capaz de dar a maior pancada, ou desconstruir o candidato. O programa não foi uma exceção. Há quem pense que jornalismo é isto mesmo. Que o desafio é tocar nos pontos frágeis do candidato, e que discussão sobre programas de governo é conversa fiada. Pode ser. É de se esperar que um bom bate-boca dê mais audiência que um debate respeitoso sobre o país. Há gosto pra tudo. Sob certo aspecto, tudo isto é bastante compreensível. Vivemos tempos de democracia polarizada, e é previsível que o jornalismo siga o mesmo caminho. Boa parte do que se entende por jornalismo, hoje, responde à lógica da cultura do entretenimento. O ponto é gerar repercussão, visualização, likes, barulho e calor, no mundo digital. Pablo J. Boczkowski e Zizi Papacharissi, organizadores do recém-lançado “Trump and the Media”, pelo MIT, observam que uma das marcas da campanha de 2016 foi a desconexão da agenda de amplos setores da mídia e uma vasta camada de eleitores americanos. A conhecida cisão entre o que vai na cabeça de uma certa elite de intelectuais/ativistas e o senso comum. É previsível que isto ocorra, mas o tamanho do fosso agora parece ter aumentado, e adquirido ares de confrontação. O palco do confronto, em regra, é dado pelos temas da guerra cultural. Parte da elite cultural parece estratificar o mundo entre aqueles que andam do lado certo do debate sobre temas como aborto, maioridade penal, porte de armas ou cotas raciais, e os que rastejam do lado errado. A cisão diz respeito ao tema do reconhecimento. Há um tipo de retórica e um arco de opiniões “legítimas” e outro que representa simplesmente o atraso e a contramão. E por aí está encerrado o debate. Melhor expressão disso foi dada por um dos candidatos à Presidência, que em um momento de alta virtude chamou o jovem e negro vereador paulista Fernando Holiday de capitãozinho do mato. A ofensa foi solenemente desconsiderada pelo “mainstream” midiático. Pareceu perfeitamente óbvio que um jovem negro, por ser negro, devesse pensar do jeito certo, sob pena de ser simplesmente isto, um traidor com quem não se deve dialogar, mas combater. Cansei de atender a debates e entrevistas em que a conversa começa com a pergunta sobre como entender a atual “onda conservadora”. O tom da questão, em regra, é a ideia de que estamos diante de um problema e de algo que pode ameaçar a nossa democracia. Em geral, começo explicando que o ponto de vista conservador também é legítimo, tanto quanto o seu contrário. Que uma democracia é feita disso, da expressão de visões éticas divergentes sobre o mundo. Ato seguinte digo que conservadorismo de costumes sempre esteve por aqui, na base da cultura brasileira, mas que agora adquiriu expressão política. Uma expressão nítida e majoritária. Quase um terço dos brasileiros, hoje, é evangélico, mas o tema está longe de se resumir à filiação religiosa. 57% da população é contrária à descriminalização do aborto. Os dados são abundantes nesta direção. Durante as duas últimas décadas, eleitores conservadores tenderam a dividir seu voto, em eleições majoritárias, no eixo PT-PSDB. Agora dispõem de uma representação própria. Por certo é uma representação imperfeita e, possivelmente, grotesca e caricatural. Emendar adjetivos aqui seria inútil. É uma expressão legítima, que precisa ser confrontada no plano das ideias. Tudo isto é muito curioso, em especial quando observamos que uma parte significativa dos que se imaginam portadores da razão e dos valores democráticos anda por aí vociferando contra a Justiça brasileira e incentivando um punhado de militantes fanatizados a uma bizarra greve de fome perdida na Praça dos Três Poderes Se desejarmos combater o pensamento autoritário, alguns caminhos talvez sejam possíveis. O primeiro é reconhecer que ele pode vir de muitos lados. Da esquerda e da direita. Que não há uma diferença moral relevante entre quem elogia Pinochet e quem grava o nome de Fidel em uma chapa de ferro. Ambos suportam ditaduras assassinas, e não há relativização possível quanto a isto. Outra é dobrar a aposta na razão tranquila. Muito já se disse do desconforto de Bolsonaro com temas de economia e sobre como governar. O recurso ao “posto Ipiranga” é uma metáfora pobre, afinal de contas. Mas o mesmo pode ser dito para muita gente bacana que também está no páreo. O tipo que, diante de números evidentes, diz com ar de seriedade que não há déficit na Previdência, por exemplo. Tudo isto demanda um jogo de paciência, aposta no diálogo, uso de dados e argumentos. Jogo que precisa ser jogado, pois é o único jeito de andarmos para a frente, em uma democracia. (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 08 de agosto de 2018).

Rápida visita ao american dream

Desci do metrô na altura da Broadway com a Dr. Martin Luther King Jr Boulevard. Mal passava das sete e meia de uma manhã fria e clara de outono, em Nova Iorque. À saída da estação, não encontro o The New York Times, e sim o Daily News, ao lado do Diário de México. Ônibus escolares amarelos circulam apressados. O dia começa, no Harlem, enquanto me dirijo até a KIPP Infinity Midle School, algumas quadras adiante. A Kipp é uma charter school, escola comunitária, privada, dirigida por uma organização sem fins lucrativos, que recebe estudantes gratuitamente, por sorteio, e é financiada pelo governo de Nova Iorque, além de receber contribuições privadas. Charters Schools são um modelo relativamente novo nos Estados Unidos. Criadas há pouco mais de vinte anos, hoje compõem um universo de mais de seis mil escolas, em 42 estados americanos. Trata-se de um novo modelo para a educação pública, semelhante ao das Academies, na Inglaterra, e de certa forma semelhante ao modelo das OSs, utilizadas nas áreas de saúde e cultura, no Estado de São Paulo. Logo na entrada da escola, leio a frase, que serve como lema, para os estudantes: “No shortcuts, no limits” (sem atalhos, sem limites). Caminhando pelos corredores da escola, me chama atenção o silêncio. Sou acompanhado por Tonia Casarin, do Teachers College, da Columbia University, e Fellow da Fundação Lemann. Tonia trabalhou na escola durante um semestre e me explica que a salas funcionam com portas abertas. Pode-se entrar e acompanhar a aula. É o que faço, algo constrangido, e os alunos sequer me percebem. A sala tem as paredes cobertas de informação. Imagens e frases de estímulo, cartazes feitos pelos alunos, o ranking da classe, com o nível de conhecimento de palavras. No quadro, as regras de participação e organização dos alunos, em aula. A idade média é de 12 anos. Assisto à Character Class, conduzida por Miss Leyla, jovem professora formada em Harvard. A aula tem apenas 30 minutos, tempo aproveitado rigorosamente. O foco da disciplina é discutir atitudes e comprometimentos éticos. Leyla propõe a discussão, alternando o debate rápido em duplas de estudantes, com a discussão no grande grupo. A cada resposta dada por um aluno, os demais estalam os dedos, no lugar de aplausos, com menor ou maior intensidade, conforme sua avaliação das ideias do colega. A participação é intensa, mas ninguém toma a palavra sem levantar o braço e receber a autorização da professora. Os tópicos são discutidos com objetividade, e sempre quando um aluno termina o seu diálogo mais rápido, com o colega, abre um livro para aproveitar o minuto restante, para ler. No final da aula, três batidas com a palma das mãos, ritmadas, em uma rápida coreografia. Alguns alunos recolhem as pastas, outros os papéis e anotações, dos demais, e a sala se encontra preparada para a próxima turma. Me retiro. Sigo para conversar com a Principal Allison Holley, para entender um pouco mais sobre o funcionamento da escola. Principal é o nome que se dá, aqui, à diretora ou diretor da escola, e Miss Allison parece perfeitamente confortável na função. Peço que ela me defina seu maior desejo, na gestão da escola. Ela me diz que há muitas metas a cumprir, em especial referentes à ida dos alunos para a universidade. Mas o que define seu sentimento é fazer uma escola na qual ela e seus professores desejem colocar os próprios filhos. Depois eu descobriria que os professores, ou ao menos a maioria deles, de fato colocam os filhos para estudar na escola. Allison explica que praticamente todos os professores atuam em tempo integral. Os alunos idem. Pergunto se ela considera as Charters Schools um modelo para a educação pública, ou ao menos uma alternativa ao ensino estatal tradicional. Ela sugere que isto dependerá da região, incluindo-se ai a força das comunidades, o empenho do setor público, e a abertura à inovação. Ela não tem dúvidas de que, em uma cidade como Nova Iorque, o modelo irá prosperar. O mercado é forte, a cidade é inovadora e exigente. Pergunto sobre a cultura meritocrática que se vê em cada iniciativa da escola. Ela se mostra surpresa com a questão, como se quisesse dizer: como a educação poderia não apostar na meritocracia? A escola criou um sistema de paychecks, espécie de moeda interna, com a qual são premiados os alunos, quando se destacam, pelo seu esforço, em inúmeras atividades, e na qual também são “descontados”, caso cometam uma infração nas regras acordadas entre todos. No final do ano, os alunos que alcançaram a pontuação esperada, participam do passeio anual. Na vitrine do corredor, vejo uma miniatura da Casa Branca, e um pequeno boneco de Barack Obama. Quem cumprir a meta irá até lá, no final do ano, e quem sabe conhecerá um de seus ícones, que estudou, aliás, ali pertinho, quando jovem. As regras são simples, claras, bem explicadas e aceitas por todos. São a base de convivência e a senha para a eficiência da aprendizagem. Se um aluno não lê o texto solicitado pelo professor, irá prejudicar o colega ao lado, nos debates em duplas; caso se comporte mal na sala de aula, irá distrair a turma e atrapalhar o andamento da aula, que é essencialmente participativa. A coisa toda soa meio dura, mas no fundo não é. Dura é a vida lá fora, que ele se preparam para enfrentar, aqui dentro. O ambiente da escola é colorido, e tem mais a cara de uma startup californiana, numa grande garagem, do que de um colégio convencional. Há espaço para a criatividade, para o pensamento crítico e expressão dos alunos. O segredo é apenas não confundir criatividade com desorganização. Talvez a palavra que defina o funcionamento de toda a escola seja “produtividade”. Uma eficiência alegre, auto-regulada, que torna o processo de aprendizagem mais rápido e efetivo. A aula começa e termina na hora marcada, não se perde tempo com alunos atrasados ou desorganização na sala, e o material de aula esta sempre à mão. A escola reproduz, de certo modo, um traço do mercado de

O capitalismo fair play

No alto do Grand Canyon, há um aviso pedindo que os turistas não alimentem os animais. E com uma explicação. Eles vão gostar de ganhar um biscoito, mas vão se acostumar, e com o tempo perderão o ânimo de caçar por conta própria. O economista italiano Luigi Zingales gosta de contar esta história, e diz que o mesmo vale para o mundo dos negócios. Cita o modo como foi feito o resgate dos bancos americanos, na crise de 2008. Uma vitória da K Street, a meca do lobby da indústria financeira, em Washington, sobre o “contribuinte indefeso”. Em geral é assim, quando o governo dá uma ajuda. Alguns ganham, e quase todos pagam a conta, de um jeito ou outro, no longo prazo. Zingales é autor do livro Capitalismo para o Povo. O livro é uma espécie de manifesto contra o que ele chama de “capitalismo de compadres”. Poderia ser “estatismo de compadres”, daria na mesma. O conceito cai como uma luva em um país como o Brasil. País do BNDES e seus “campeões nacionais”; da política de “conteúdo local” nas compras do pré-sal; do nosso “presidencialismo de coalisão”, de vezo patrimonial, movido a vinte e três mil cargos de confiança; da incrível máquina de sindicatos atrelados ao estado, sustentados via imposto sindical. Zingales trás algo novo ao debate público: defende que a economia de mercado pode ser uma bandeira popular. Em diversas partes de seu livro, menciona os movimentos Occupy Wall Street e Tea Party. Nas alegorias tradicionais da política, eles não teriam nada em comum. Para Zingales eles expressam um mesmo mal estar. O mesmo, quem sabe, que assistimos nas ruas do Brasil, em 2013 e 2015. Por vezes é a orgia de dinheiro público nos estádios da Copa; por vezes é a corrupção na Petrobrás. Mas o fio condutor é o mesmo: a zona cinzenta, pouco republicana e eticamente insustentável entre a política e o mundo dos negócios. Zingales diz que não é um filósofo moral, mas há uma evidente base filosófica em tua teoria. Ela diz que o senso de justiça das pessoas não requer que a distribuição da renda, na sociedade, seja mais ou menos igualitária. A exigência dos cidadãos diz respeito ao fair play. Todos querem ganhar, mas antes de tudo querem que o jogo seja limpo. Isso requer não apenas regras iguais, mas certa equivalência nas condições de partida de cada um, na sociedade. Numa analogia com o futebol, ficamos furiosos com os 7 a 1, na Copa, mas ninguém reclamou que o resultado foi injusto. É como funciona a meritocracia: aceitamos que o resultado se defina pelo talento, ou mesmo pelo acaso. O que não vale é o truque, a sensação de jogo-jogado. Vem daí a ideia de um certo nivelamento do sistema de oportunidades. E este é o foco de Zingales. Não é pouca coisa. Isso requer, por exemplo, o acesso de todos a uma escola de qualidade. De cara, rodaria no teste o modelo África-do-sul-na-época-do-apartheid, que vigora no Brasil, em que os mais ricos estudam em boas escolas e os mais pobres nas escolas “do governo”. O que diferencia os dois modelos é, essencialmente, a existência ou não de competição. As escolas estatais funcionam à base de um duplo monopólio: elas não podem ser “descontratadas” pelos estudantes, e não podem, por sua vez, descontratar seus piores professores. O modelo funciona como uma máquina de gerar desigualdade social, mas vamos levando. Zingales observa que, nas devidas proporções, é o mesmo que ocorre nos Estados Unidos. E não é à toa que define o “lobby da escola pública” como o mais poderoso lobby norte-americano. Ele custa U$ 56 milhões, anualmente, é bancado pelos sindicatos de professores públicos. É o lobby do status quo, em educação, que torna sem sentido a ideia do “sonho americano” para a maioria da população. A proposta de Zingales é simples: que o estado financie a educação, mas largue de fazer a gestão das escolas. Ofereça um vale-educação e permita que os estudantes mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de famílias com maior renda. Fair play, nos pontos de partida. Atenção aos alunos, não ao lobby dos sindicatos. A agenda sugerida por Zingales passa ao largo da habitual clivagem “esquerda x direita”, que há tempos envenena nosso debate político. Seu tema central é como fazer com que a definição de políticas públicas expresse de modo mais apurado os interesses difusos da sociedade, em uma perspectiva de longo prazo. Como evitar que o espaço público seja capturado por grupos de interesse, de dentro e de fora da máquina pública. Uma forma de fazer isto é evitar a expansão contínua do aparato estatal. Quanto maior o tamanho do bolo, diz Zingales, mais incentivo as empresas e corporações terão para abocanhar sua fatia. Ao cidadão interessa um Estado enxuto, porém rigoroso na defesa igualitária de direitos. Garantidor de equidade, e por isso avesso à miríade de vinculações, monopólios, privilégios funcionais, subsídios e incentivos fiscais setoriais. Subsídios e incentivos fiscais funcionam como uma espécie de ladeira escorregadia. Concedidos a um determinado setor, dificilmente serão recusados aos demais. Cada setor terá sempre bons argumentos a seu favor. Dirá que o segmento X ou Y também recebeu, que outros países fazem a mesma coisa, e que é preciso gerar empregos. Qualquer lobista tem na ponta da língua o número de empregos que irão pelo ralo se o governo cortar o seu subsídio favorito. E terá muita gente a seu lado, falando grosso. Incentivos são como gatos de sete vidas. Feitos para estimular, temporariamente, uma atividade econômica, tendem à imortalidade. Vide o caso clássico da Zona Franca de Manaus, com seus quase cinquenta anos e incentivos recém prorrogados até 2073. Tudo para criar uma indústria muito cara, e até hoje muito pouco competitiva. Observe-se o bem sucedido lobby das montadoras brasileiras para renovar, ano a ano, a redução do IPI para automóveis, com os sabidos efeitos sobre o caos urbano brasileiro. Vide o exemplo pitoresco da chamada “lei do

Um apartheid silencioso

Quando da divulgação dos resultados da última edição do PISA, houve quem comemorasse o avanço de posições dos estudantes brasileiros. Fomos um dos três países que mais avançaram no teste, ao longo da década de 2000. Se observarmos melhor estes resultados, porém, vamos perceber um dado perturbador: nossos alunos das escolas privadas tiveram nota média de 502, semelhante a dos estudantes norte-americanos, enquanto nossos alunos das redes estaduais e municipais de ensino alcançaram uma média de 387, semelhante à da Albânia. Os dados do ENEM mostram o mesmo quadro. Das 1000 escolas melhor qualificadas, com mais de 75% de participação dos estudantes, 92% eram particulares. O fato é que estamos alimentando, no Brasil, uma espécie de apartheid educacional, entre os jovens de classe média e alta, cujas famílias há muito “privatizaram” a educação de seus filhos, e os estudantes de famílias mais pobres, que são levados a estudar nas redes estaduais e municipais de ensino, com seus problemas crônicos de gestão. É uma situação paradoxal: o sistema público de educação, que deveria assegurar uma base de oportunidades igual para todos os cidadãos, é ele mesmo uma máquina geradora de profundas desigualdades sociais. Alguns dirão que não é possível debitar os resultados pífios da educação pública às deficiências estruturais da gestão estatal do ensino. Pesariam as condições das famílias para apoiar os filhos em suas atividades fora das salas de aula. É um argumento da derrota e do conformismo. Ao Estado não caberia exatamente criar as condições para compensar estas assimetrias sociais? O problema não é de recursos, definitivamente. Nosso sistema estatal é caro e ineficiente. Escolas estatais são repartições públicas. Não tem autonomia para tomar decisões com a rapidez e a racionalidade que a educação requer no dia a dia (atualizar laboratórios, bibliotecas, contratar e descontratar profissionais). Sofrem da burocracia, do corporativismo e da visão anti-meritocrática comum no serviço público brasileiro. É fácil constatar este quadro e dizer que tudo poderia ser diferente. Mas não é o que a experiência tem demonstrado. Penso que chegou a hora de apostar em uma mudança de paradigma no Brasil. Uma mudança estrutural de longo prazo: recontratualizar a relação entre Estado e sociedade, na educação. O sentido deste processo é: ao invés de continuarmos tentando o que se tentou no século XX, isto é, nivelar o acesso à educação pela oferta do ensino estatal, buscarmos o efetivamente possível no século XXI: assegurar o acesso de todos ao ensino não estatal (composto por escolas com ou sem fins lucrativos, desde que tenham qualidade, gestão ética e relação custo/benefício positiva). O Brasil tem apresentado inovações importantes nesta direção. Basta observar duas das melhores inovações em educação do País da última década: o Prouni e o FIES. No Prouni, o Estado (via abatimento fiscal), financia a matrícula dos alunos de menor renda nas instituições privadas de ensino superior. Era mais ou menos o que, há décadas, se propunha no País sob o conceito do voucher educação. Ao invés de criar e administrar repartições públicas de ensino, o Estado utiliza a capacidade disponível das redes privadas, deixa que as famílias escolham onde estudar e concentra sua ação na criação de indicadores e exigência de qualidade. Quanto papel e tinta se gastou numa discussão ideológica e inútil sobre a “privatização” da educação. O Governo Lula, de maneira inteligente, foi lá e fez. Ganharam o País e os mais pobres. No FIES, o governo oferece crédito para que os estudantes paguem a faculdade com prazo longo e juros subsidiados. Sua lógica estrutural é a mesma do Prouni: dar liberdade de escolha às pessoas e gerar condições favoráveis para uma ativa parceria público-privada na oferta de educação. Fica a pergunta: por que este não se torna o padrão de atuação dos governos na educação, também no ensino médio e fundamental? Por que continuar abrindo repartições públicas educacionais, e (como os indicadores mostram) continuar aumentando o fosso social brasileiro, ao invés de apostar em modelos transparentes de parceria entre Estado e sociedade, com o financiamento direto aos estudantes, deixando que eles escolham onde estudar? Alguém já comparou a relação custo-benefício destas duas alternativas? O Brasil fez muitas revoluções nas duas últimas décadas. Precisamos agora de mais uma. Uma revolução para a igualdade de oportunidades, que inicia com alguma coragem para revisarmos velhos conceitos. (artigo publicado, com algumas alterações, no jornal Folha de São Paulo, em 02/02/2012) Fernando Schuler é cientista político e professor do Insper

Fernando Schuler: hora de superar o estado paternalista

Lembro da entrevisa de um jovem professor de história, à época do finado debate sobre a reforma da previdência. Ele parecia um cara articulado, 28 anos, “de esquerda”. Dizia que seu sonho era se aposentar aos 53 e abrir um clube de poesia, mas que tudo se perderia com a reforma. Se ela sair, teria que repensar as coisas. Quando li aquilo fiquei pensando: “O que há com esse cara? Podia pensar em ser empreendedor, não é mesmo? Abrir uma editora, um ‘TED poesia’, uma ‘casa do saber’, sei lá. Vai lá no Sebrae, pesquisa, pede alguns conselhos. O sujeito é jovem, sem uma ruga no rosto, joelhos em dia. Compra um livro de autoajuda”. Daqui a 25 anos não sei nem se ainda vão existir livros de papel ou computadores pessoais. E o sujeito preocupado em se aposentar pelo INSS? O Brasil velho é assim. Feito de 76% de jovens com até 24 anos e preocupados em se aposentar ainda cinquentões. Isso num país que gasta 12% do PIB com Previdência, quase três vezes a média do que gastam países com mesmo perfil demográfico. Não acho que as pessoas estejam preocupadas com números ou com a “sustentabilidade fiscal”. Estamos simplesmente imersos em uma cultura política que desconfia do “mercado”, foge do risco e das escolhas difíceis. País de cultura paternalista, da qual a “esquerda” é sem dúvida a vanguarda, mas está longe de andar sozinha. O Brasil velho gosta de coisas esquisitas como o imposto sindical. Criado na Constituição de 1937, a “polaca”, o tributo sustenta hoje uma enorme máquina feita de 10.817 sindicatos de trabalhadores, 5.251 sindicatos patronais, 549 federações, 43 confederações e 7 centrais sindicais. Lembranças nebulosas nos dão conta de que o sindicalismo liderado por Lula, nos anos 70, teria defendido a livre associação sindical, o princípio elementar de que as pessoas, querendo apoiar o seu sindicato, decidam pagar por isso. O tempo tratou de apagar tudo isto. A esquerda que um dia ensaiou alguns passos de independência caiu de boca no colo quente do Estado. O Brasil velho gosta de voto obrigatório. Dia desses fui a um debate com uma professora da Universidade de São Paulo. O debate andava meio morno e resolvi dar uma provocada. Disse que precisávamos acabar com a obrigatoriedade do voto. A senhora retrucou que não. Que isso iria apenas favorecer os “mais ricos”. Na sua visão, brasileiro pobre precisa de um empurrão do governo para votar. Se não acaba ficando em casa, no domingo, assistindo ao Faustão. Olhei pra ela e me lembrei de Kant. O velho filósofo dizia que a gente só aprende a ser livre exercitando a própria liberdade. É como andar de bicicleta. As pessoas, independentemente da renda, vão aprendendo a exercitar seus direitos. Leva algum tempo, mas aprendem. Olhei pra ela e fiquei quieto. Mudei de assunto e continuei o debate. O mesmo vale para o financiamento eleitoral. Sugeri, em um seminário, que os próprios indivíduos, eleitores, apoiadores, deveriam financiar, com recursos próprios, os partidos políticos. Cada um vai lá e apoia o partido de sua preferência. Meu debatedor, bom cientista político, pareceu irritado. O Brasil não tem tradição de apoio individual a coisa nenhuma, disse ele. Ninguém põe dinheiro, ninguém acredita. Não tem jeito, o Estado tem que bancar. Ato seguinte sugeriu um aumento do fundo partidário para coisa de R$ 2,5 bilhões. Lembrei a ele que o tempo “gratuito” de TV, para os partidos, já custa R$ 500 milhões e que o fundo partidário era de pouco mais de R$ 300 milhões antes das últimas eleições. Ele olhou pra mim com cara de tio sabido e disse: “Democracia custa caro, Fernando”. O debate seguiu, e hoje estamos perto de aprovar no Congresso um fundo partidário “turbinado” de algo mais do que R$ 2 bilhões. O ponto é que vivemos em um tempo surpreendente, neste ano confuso de 2017. Há a reforma da Previdência, há a chance real de acabar com o imposto sindical e há mesmo a chance de fazer uma minirreforma política, que devolva ao voto o sentido de um direito. Há um Brasil que tenta se livrar de velhos fantasmas do Estado Novo, da velha conversa fiada de que nossa gente é incapaz de andar com as próprias pernas. Há um país que, talvez embalado por essa crise toda, tenta andar um bocadinho à frente. Oxalá. (publicado originalmente na Revista Voto, em junho de 2017) Fernando Schuler é é cientista político e professor do Insper