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A grande síntese brasileira

Virou hábito chamar o atual governo de conservador. Eu mesmo utilizei esta expressão, algumas vezes. Gosto da ideia de que uma boa democracia é aquela capaz de dar expressão à multiplicidade de visões, na sociedade, e este foi um ganho das últimas eleições. Elas deram voz a um pensamento conservador há muito presente, e quem sabe hoje hegemônico, na sociedade brasileira. Dito isto, há muitas coisas diferentes sob o rótulo do conservadorismo. Na expressão clássica de Oakeshott, ser um conservador “é preferir o familiar ao desconhecido, o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o real ao possível… o conveniente ao perfeito”. Vai aí um sentido profundo da grande tradição conservadora: não a defesa pura e simples da tradição, mas a ideia de caminhar à frente com prudência. Não pelo culto do passado, mas o respeito ao futuro. Daí a aversão ao voluntarismo, do sujeito que se põe a regular a vida dos outros com base em um punhado de ideias abstratas que, por acaso, ele tem na cabeça. Deputadas da oposição discutem com o presidente da comissão deputado Felipe Francischini (PSL-PR) e com o relator da matéria deputado Marcelo Freitas (PSL-MG) na sessão da CCJ da Câmara para votar o relatório pela admissibilidade da proposta da reforma de previdência  É curioso observar, no atual governo, que é precisamente no Ministério da Educação, usualmente associado ao conservadorismo, que se vê crescer uma certa lógica voluntarista. A ideia de reduzir recursos para universidades federais em função de “badernas” no campus, a noção de que o governo possa arbitrar a utilidade social das diferentes profissões, ou a imprudente sugestão de que alungos devam filmar os professores, em sala de aula. Quando escutei isto, não acreditei. A ideia seria criar uma legião de pequenos torquemadas digitais caçando professores-bruxos no ambiente altamente racional e ponderado das redes sociais? Acho que não é isso que o ministério deseja, e é por isso que se trata do avesso da atitude conservadora. É a ação feita de improviso, feita ao sabor da guerra cultural e sua lógica de curto prazo, sem muita preocupação com as consequências adversas daquilo que propõe. Penso que o Brasil deveria andar por outro caminho, e a inspiração poderia vir exatamente da tradição conservadora. O caminho é buscar o que melhor fizemos em nossa experiência democrática, e encontrar novas bases de consenso, em um país fraturado. Este é o primeiro aprendizado conservador: o que vale a pena preservar de nossos erros e acertos? A responsabilidade fiscal, por exemplo. Estados que a levaram a sério pagam hoje salários em dia, enquanto a pobreza cresceu 33%, no Brasil, com a aventura irresponsável que levou à crise de 2014-2016. Vai aí a lição mais elementar: que o fosso que se imaginava separando a tradição liberal da boa social-democracia é muito menor do que já se imaginou, no passado. É disso, no fundo, que trata o ciclo de reformas que o país tem pela frente: a ideia de que o ajuste estrutural do Estado hoje é condição para transformar em realidade, no futuro, a sociedade de direitos desenhada na Constituição. Da social-democracia aprendemos muitas coisas. A mais decisiva, a meu juízo, é nunca confundir a garantia de direitos com o privilégio. O BBC expressa um dirito; aposentadoria aos 50 anos, para quem quer que seja, não passa de um privilégio. Dias atrás conversava com um egresso do Prouni. Vindo de uma família muito pobre, hoje tem emprego, faz mestrado e sonha longe. “Aquilo me deu o direito de escolher”, disse ele. Me veio um filme na cabeça. O filme de um país que pode dar certo se encontrarmos o jeito brasileiro de combinar coisas que na retórica política soam divergentes: incentivos de mercado e garantia de direitos. Paulo Guedes acertou, naquela tarde desigual na CCJ, quando disse que nosso caminho não era o do Chile, mas o de um sistema de capitalização que incorporasse o sentido de solidariedade inscrito na Constituição. Ele parecia falar sozinho, assim como parece falar, no campo da esquerda, o governador petista da Bahia, Rui Costa, quando defende a reforma da Previdência, o diálogo com o governo e diz que rigor fiscal e PPPs não são coisas do demônio. A grande síntese brasileira virá de uma certa teimosia. Da aposta em gente capaz de construir pontes e fazer avançar reformas graduais. É assim que deveria andar o atual governo, e desse modo se consagrar, de fato, como um governo conservador.  (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 02/05/19)

A análise da democracia supõe evidências, não opiniões

Em 2006, o escritor norte-americano e antigo estrategista republicano, Kevin Phillips, lançou um alerta sobre o estado da democracia americana, em seu livro American Theocracy, que rapidamente tornou-se um best-seller. Phillips alertava para o declínio do sistema político americano, marcado pela renúncia a valores universalistas, o poder do dinheiro e, em particular, pela ameaça representada pelo obscurantismo religioso no mundo da política. Fenômenos que “deformaram o Partido Republicano e sua coalizão eleitoral, silenciaram vozes democratas e se tornaram uma ameaça crescente ao futuro dos EUA”, dizia o professor, acrescentando: “nenhum poder mundial tornou-se prisioneiro do tipo de infalibilidade bíblica que descarta o conhecimento e a ciência. O último paralelo foi no início do século XVII, quando o papado enquadrou Galileu por dizer que o Sol era o centro do sistema solar”. O tom pessimista e certa propensão ao exagero estão longe de ser uma novidade, na análise política, e eram relativamente comuns na interpretação da democracia americana, década e meia atrás. Estávamos em meio à administração de Georges W. Bush, vivía-se o período pós-11 de setembro, a guerra contra o terror, bem como os conflitos subjacentes à controversa invasão do Iraque. Os temores de Phillips, ao final, se tornaram um tanto sem sentido. Dois anos após o lançamento de seu livro, os Estados Unidos elegeriam um presidente negro, campeão dos direitos civis, que encerraria a guerra do Iraque, poria fim à guerra contra o terror, apostaria no multilateralismo e recolocaria os Estados Unidos como país líder da democracia, em escala global. Oito anos depois, a bússola da política norte-americana faria novamente seu giro. Em uma campanha surpreendente, que fez quebrar o recorde histórico de participação popular nas primárias republicanas, um candidato anti-establishment, midiático, avesso ao politicamente correto, com retórica de traço populista, venceria as eleições presidenciais, em 2016. A eleição de Trump se transforma em um ponto de inflexão nas visões sobre a democracia contemporânea. Análises prudentes sobre os impasses do sistema democrático, particularmente após à crise econômica de 2008, rapidamente alcançariam um tom dramático. David Runciman abre seu elegante How Democracy Ends dizendo que “qualquer processo que leva a um resultado ridículo como este deve ter falhado gravemente ao longo do caminho”; Yascha Mounk  chama a eleição de a “mais chocante manifestação da crise da democracia”; Steven Levitsky e Daniel Ziblat elencam quatro critérios para definir se uma democracia está em risco. Nenhum candidato majoritário, no último século teria preenchido nenhum deles (exceção feita a Nixon). Trump corresponderia a todos: não teria compromissos com a regra democrática; toleraria violência e ameaçaria direitos civis e a mídia e negaria a legitimidade dos oponentes. Chama a atenção o último critério. É precisamente o que Levitsky e Ziblat parecem fazer, com alguma sofisticação, em relação a Trump. Ele surge fundamentalmente como um personagem bizarro, espécie de erro de percurso a ameaçar a democracia americana. É residual o fato de que tenha conquistado legitimamente a candidatura republicana e vencido uma eleição sob as regras do jogo. Um tipo banal de argumento circular parece orientar o raciocínio: Trump é um tipo autoritário; tipos autoritários são um problema para a democracia, logo Trump é um problema para a democracia. Perde-se a distância, o saudável compromisso das ciências sociais com o entendimento do outro e algum ceticismo em relação às próprias ideias. Há um certo público a ser atingido, e este público não parece estar muito preocupado com prudência e autocensura, em uma sociedade polarizada, da qual nem mesmo a academia parece escapar. É interessante observar a dificuldade de parte relevante do mainstream acadêmico com uma abordagem pluralista da democracia. Inclinações políticas bastante evidentes se apresentam como ponto de vista universal a partir do qual a democracia é julgada[1]. Meu argumento é que isto é simplesmente um erro. Como observou o então presidente Barack Obama, em seu discurso no dia seguinte à vitória de Donald Trump, a história da democracia é um processo aberto, em forma de zigue-zague, feito de idas e vindas, no qual ninguém detém a última palavra. Espaço de vitórias e derrotas cotidianas no qual todos, a longo prazo, tendem a ganhar. Obama se dirigia ao país, mas em especial ao público democrata, por óbvio frustrado com o resultado eleitoral. Sua preocupação, ao argumento, é evitar o juízo de valor. A democracia é feita de idas e vindas, mas ninguém tem a chave capaz de relevar a verdade da política ou da própria democracia. Ele recusa a compreensão da política a partir da lógica amigo-inimigo e portanto recusa a adjetivação fácil e a afirmação de si mesmo como julgador universal. Obama é um democrata, e faria bem à academia refletir sobre seu modo de argumentar. A abordagem pluralista da democracia supõe considerar os atores que atuam na cena pública como igualmente legítimos, desde que obedeçam as regras do jogo livremente instituídas pelo próprio processo democrático. Ela se mantém, com o máximo rigor que for possível, a distância segura do juízo de valor. Recusa-se a atribuir um valor distinto aos atores, na cena pública, assim como a suas posições em políticas públicas. O que é ou não razoável passa a ser definido no interior do próprio processo democrático. A obediência à Constituição, sujeita à supervisão última da Suprema Corte, e a obediência aos ritos democráticos. Ninguem fala, em última instância, de algum lugar abstrato da virtude cívica, externo ao próprio jogo político, quando se põe a julgar a correção ou a qualidade democrática desta ou daquela proposição. Indicadores de qualidade da democracia, se almejam algum tipo de validação universal, deveriam ser rigorosos nisso. Não parece, infelizmente, ser o caso de alguns dos mais pretigiados estudos, neste âmbito. Em tese, não há problema que uma pesquisa acadêmica apresente uma inclinação política. O problema surge quando ela não se o faz de modo explícito, apresentando-se com pretensões universalistas. Assumir um certo tipo de inclinação política (procedimento relativamente comum no jornalismo e no mundo dos think tanks), é uma forma de agir com honestidade intelectual, e evitar que se induza a erro aqueles que, desavisadamente, irão utilizar os indicadores como referências de

A era da irrelevância

Um dos subprodutos mais curiosos da democracia digital é o gosto generalizado pela tagarelice e pelos assuntos irrelevantes, que parece ter tomado conta, como uma erva daninha, do debate público. Assuntos irrelevantes são essas coisas que geram bate-boca e algum calor, em regra na internet, por 24 ou 36 horas, e depois simplesmente desaparecem, sem deixar rastro. Foi o caso do debate sobre a cor da roupinha das crianças, a partir de um vídeo da ministra-pastora dos Direitos Humanos. Li muita gente argumentando, em tom aparentemente sério, que aquilo tudo era bastante grave, escondia um atroz preconceito e fatalmente levaria a mais violência contra populações trans e LGBT. Durante a campanha, lembro do debate próximo à histeria sobre uma suposta proliferação de grupos nazifascistas que andariam pela ruas do país atacando mulheres e homossexuais. Gente muito boa sugeriu que havíamos voltado aos anos 30, na Alemanha, com base no episódio da moça que teria sido marcada com uma suástica no Sul do Brasil. Depois se descobriu que era tudo falso, mas ninguém pareceu preocupado ou se desculpou. Partimos alegremente para a próxima besteira. Na transição, por um ou dois dias, discutimos o hábito do novo presidente cumprimentar todo mundo fazendo continência . Primeiro foi com um assessor americano, depois foi a um jogador do Palmeiras. Depois disso o assunto perdeu a graça. Antes da posse, discutimos intensamente se o presidente iria desfilar em carro aberto ou fechado, entre a Catedral e o Congresso Nacional. Depois discutimos o que fazia o primeiro-filho sentado na traseira do Rolls-Royce, e logo depois (com direito à manchete no The Washington Post) o significado da “saudação militar” feita pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro (que no fim era apenas um movimento com a mão, no discurso em Libras). Na última semana, dedicamos intensos dois ou três dias fazendo graça com a viagem dos novatos deputados do PSL à China e seu bate-boca com Olavo de Carvalho. E ainda ontem, muita gente graduada discutia, com ares de grande coisa, a gravíssima atitude do presidente almoçar em um bandejão de supermercado, no centro de Davos, e o fato de ele ter usado um teleprompter em seu pronunciamento. A lista é saborosa e poderia ir longe. Irrelevâncias e não acontecimentos se tornaram uma espécie de pão nosso de cada dia, no debate atual. É evidente que não há como definir bem estas coisas. A aprovação de um rombo na Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo Congresso, é mais ou menos importante do que o último desmentido presidencial? O que vale mais, discutir a independência do Banco Central ou a troca de farpas da ministra da Agricultura com Gisele Bündchen? Desconfio que, no fundo, temos uma boa noção sobre isto. Se o debate público valesse alguma coisa, levaríamos as coisas mais a sério. O sujeito que é acionista da empresa não gasta seu tempo, na reunião do conselho, tagarelando sobre o barraco da festa de final do ano. Não o faz por uma razão simples: sua opinião pesa e ele não irá perder seu tempo com besteira. Na democracia, é o contrário: a opinião do cidadão vale muito pouco. Seu incentivo para levar alguma coisa realmente a sério é quase nenhum. Isto sempre foi assim, nas democracias, mas o fato é que a emergência das mídias digitais deu uma outra dimensão ao fenômeno. Uma razão para isto diz respeito ao custo da informação. Há 30 anos, emitir uma opinião dava muito mais trabalho. Implicava em escrever um artigo, dar uma entrevista na rádio ou imprimir alguma coisa por conta própria e depois distribuir na fila do cinema ou do posto de saúde. Me lembro de tudo isto, nos anos 80. A democracia digital explodiu essas coisas. O debate público se tornou vítima do instantâneo. Há informação demais, discussões demais, sem permitir que o tempo se encarregue de depurar os acontecimentos e separar o que importa daquilo que não passa de lixo em forma de palavras e imagens. Há duas notícias preocupantes aí: a primeira é que isto não faz bem à democracia. A qualidade do debate público, por óbvio, afeta a escolha pública. Quanto mais toxina ideológica espalhamos por aí, mais perdemos tempo e capacidade de gerar consensos e fazer as coisas que importam andar pra frente. A segunda notícia é que se trata de um estado de coisas que veio para ficar. O modus operandi das mídias sociais contaminou a todos, a liderança política, os intelectuais e (ao menos boa parte) da mídia profissional. E mais: fez com que o eleitor, agora transformado em um ativista digital, passasse a se comportar como um pequeno político, usando da retórica e reproduzindo, um a um, todos os vícios que ele vê nos políticos contra os quais esbraveja. Estamos diante de um problema sem saída. Todo mundo conhece o vaticínio de Umberto Eco, segundo o qual a internet fez com que o idiota da aldeia fosse promovido a portador da verdade. O que imagino nem Umberto Eco esperasse era o efeito inverso: que também a elite usualmente tida como portadora da verdade passasse a se comportar, no dia a dia, como o idiota da aldeia. (Fernando Schüler, Insper – Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 23/01/2019)

Fernando Schüler: “O Brasil se tornou um País autofágico”.

1- Como você avalia a articulação do governo com o Congresso? Bolsonaro não compôs o governo distribuindo ministérios para os partidos, de modo que não construiu uma base orgânica no Congresso. Este é um dado superestimado pelos seus apoiadores e substimado, ou ignorado, por seus adversários. Mas é um fato. Quando assistimos à desintonia entre os partidos do Centrão e o Governo, como neste episódio da inversão de pauta da CCJ, acho curioso escutar gente experiente sugerir que “falta diálogo, falta coordenação”. Isto pode ser verdade, em uma medida secundária. Mas o fato crucial é que o governo não tem rigososamente o que cobrar dos partidos potencialmente aliados, pelo simples fato de que nada, ou praticamente nada, ofereceu em troca. Vai aí uma dupla ilusão. De parte do governo, a ilusão de que coisas como a pressão da sociedade, o convencimento ou a liderança popular de Bolsonaro bastaria para mover esta ideia vaga da “nova política”. De outro, a ilusão comum, em especial na academia, de que a solução está em algum lugar do passado, que bastaria ao governo “negociar” com o Congresso, ceder, distibuir os ministérios a 12 ou 13 partidos, esquecendo-se que foi exatamente este modelo que se esgotou, na política brasileira, e foi amplamente rechaçado pela sociedade, nas últimas eleições. Não há saída fácil para o impasse brasileiro. Somos uma sociedade de baixo consenso, diante de uma reforma difícil, que contraria interesses poderosos. Dizer que cabe ao governo resolver, trocar cargos e emendas por votos, no Congresso, não passa de um discurso cínico, pois no instante em que o Governo fizer isto, estas mesmas pessoas dirão que se trata de um governo que se corrompeu, se vendeu, traiu seus compromissos. Nos tornamos um País autofágico, no qual o ódio e a pequena richa política parecem ter passado muito à frente de qualquer coisa que diga respeito a objetivos comuns e de longo prazo. 2 – E qual seria o papel da oposição na articulação? A oposição está onde sempre esteve, desde a redemocratização, com exceção dos 13 anos da esquerda no poder. Seu foco é inviabilizar o governo, de qualquer jeito. Nós já nos acostumamos tanto com a ideia de que não cabe qualquer papel construtivo à oposição, na democracia, que ninguém mais espera uma atitude diferente. Isto já foi diferente, no passado. O PSDB e o PFL apoiaram a reforma da previdência de Lula, em 2003. Não vejo espaço para que algo nessa linha aconteça, no Brasil atual. O PT pautou a campanha pela ideia de deslegitimação de Bolsonaro, Haddad se recusou a cumprimentar o vencedor das eleições, na noite do pleito, e o partido não compareceu à posse do presidente, no Congresso. Esta foi e será a tônica do centro da oposição, até o fim do governo. Ciro e algumas novas lideranças do PDT ensaiam alguns movimentos na direção de um diálogo mais amplo, mas o fato é que lhes falta base social. 3 – Traçando um comparativo entre o governo Bolsonaro e gestões anteriores, qual é a sua avaliação a respeito dos primeiros 100 dias? Bolsorado representa um governo de ruptura, como foram Collor, em 1990, e Lula, em 2003. A arrancada de Collor foi um conhecido desastre, e Lula surpreendeu positivamente, equilibrando uma política de austeridade e reformas, no campo econômico, e uma intensa agenda social. Bolsonaro fica pelo meio do caminho. Sua equipe econômica é coesa e qualificada, o ministério, de um modo geral, tem um perfil técnico e o projeto de reforma da previdência surpreendeu pela abrangencia e correção técnica. Mas há problemas evidentes: o governo claramente não tem consenso sobre a agenda de privatizações, e claramente não sabe o que fazer com temas importantes como a reforma tributária, reforma do Estado e a educação. E mais: não tem uma agenda de reforma do sistema político. Temos 31 partidos no Congresso, o maior grau de dispersão política entre as democracias, e o governo não parece minimamente preocupado com isto. É evidente que também faltou habilidade, na condução política, e um modelo realista de como lidar com o Congresso. 4 – O núcleo do governo é formado por grupos com posições distintas. Há os militares, um grupo mais ideológico e a área econômica. Como avalia que a relação entre esses grupos impactou os primeiros dias do governo? Essa relação pode ser melhorada? Não há propriamente posições ou grupos organizados, no governo. O governo não conta sequer com um partido organizado, em sua base de sustentação. A votação da PEC vinculando as emendas de bancada, na Câmara, foi um sinal evidente de desarticulação, com a líder no Congresso votando de um jeito, e o líder do partido, de outro. Isto vinha se tornando regra na atuação do governo, no Congresso, até a vontação do relatório na CCJ. Alí temos uma mudança qualitativa. No plano do executivo, vejo outro cenário. Há pouco consenso sobre temas centrais, como a agenda de reforma do Estado, mas não propriamente um conflito Escaramuças são normais, em qualquer governo. Não dá pra achar que a cada bate-boca, na internet, o governo está em crise. Os militares tem se consolidado como núcleo moderador do Governo, mas não expressam uma visão de Estado ou de país. A equipe econômica tem uma visão liberal como nunca se viu, em nossa história, mas é evidente que lhe falta força política e que sua agenda não é propriamente a do governo. O chamado segmento conservador é menos relevante e dono de uma não-agenda. O Brasil não aceita, por óbvio, nenhum recuo em temas que possam arranhar a laicidade do Estado, e projetos como escola sem partido ou redução da maioridade penal não irão avançar, no Congresso. Sobra muita retórica e estridência vazia, no mundo digital, que no conjunto me parece mais prejudicar do que ajudar ao governo. 5 – Os filhos do presidente estão muito envolvidos no governo federal. Em outros anos vimos escândalos relacionados a suposto enriquecimento ilícito, como no caso do filho de Lula, mas não uma intervenção direta no governo.

AS DORES DO PARTO DE UM NOVO COMEÇO

(publicado originalmente no em PODER 360, dia 28/01/2018) Caso ganhe Fernando Haddad, de algum modo estaremos de volta ao início de 2016, sem saber direito se teremos um governo com a cara da primeira gestão Lula, com Palocci no comando da economia, ou o desenvolvimentismo da era Dilma, que nos levou à brutal crise econômica de 2015/2016. Caso ganhe Bolsonaro, teremos uma experiência radicalmente nova, e como tal plena de incertezas. Talvez exista mesmo uma sabedoria oculta, nesta hipótese: a democracia é um metabolismo destinado a integrar e incluir. Uma máquina surpreendente que, de tempos em tempos, busca a turma da periferia e coloca no centro do jogo. Bolsonaro é isto: o sujeito do canto da sala que aos poucos vai abrindo seu espaço. O Deputado ranzinza, que não liderava, ocupava cargos ou aprovava projetos. Com o tempo, soube se tornar um ponto de convergência da insatisfação difusa da sociedade. O primeiro líder majoritário conservador desde a transição. O nosso neopopulista. Nossa mistura tropical de Beppe Grilo e Donald Trump, ainda que muito diferente de todos eles. Se ele ganhar, o metabolismo democrático fará seu trabalho: irá finalmente integrar a direita conservadora ao grande jogo, assim como fez com a esquerda, nos anos 80 e 90. Há riscos neste processo? De um modo geral, diria que sim. A frase tem algo de protocolar. Somos uma democracia jovem, a política anda judicializada, elegemos parlamentares de 30 partidos, para o Congresso, e vivemos a mais aguda polarização política desde a transição. É de imaginar que uma nova elite política pouco experiente e algo voluntarista, como é o grupo de Bolsonaro, com posições claramente hostis ao establishment político, prenuncie forte instabilidade, à frente. O difícil é ir além disso. Nesta última semana, uma jornalista me perguntava o que aconteceria se Bolsonaro enviasse “projetos antidemocráticos” para o Congresso. Observei que a pergunta me parecia algo contraditória. O Congresso é, por definição, o lugar em que a democracia faz as suas leis. Pedi que ela me desse um exemplo do que poderia ser um projeto autoritário. Mudou de assunto. Na conversa, percebi que seu conceito de risco democrático era, de verdade, a agenda conservadora de Bolsonaro. A ideia difusa de que ele poderia fazer alguma coisa contra grupos minoritários, e quem sabe obter apoio do Congresso. Tentei ajudar a repórter. Bolsonaro tem, de fato, uma agenda conservadora a ser implementada. Ela é feita de ideias como a redução da maioridade penal, inscrição de ações violentas de movimentos sociais na lei antiterrorismo, excludente de ilicitude, flexibilização do estatuto do desarmamento e a escola sem partido. Ninguém sabe bem os detalhes dessa agenda, mas ela parece a melhor expressão de Jair Bolsonaro. A agenda é conservadora, sem dúvida, ainda que qualquer conceito, no mundo plástico da política, não tenha a objetividade que por vezes imaginamos. O ponto não é este: seja ou não um programa conservador e de traços regressivos, ele foi aberto e exaustivamente defendido pelo candidato, nas eleições. Se ele for eleito, é esta a agenda aprovada pela maioria do eleitorado brasileiro. Ela será, goste-se ou não, a agenda parida pela democracia brasileira. Por óbvio, o mesmo vale para a tramitação que cada um desses pontos demandará, no parlamento brasileiro, e, em alguns casos, no STF. Há um caminho longo e difícil pela frente, a ser trilhado em cada um desses temas. O que não é possível é imaginar que uma agenda qualquer, pelo simples fato de expressar uma posição conservadora, seja menos legítima, na democracia. Não faço juízo de valor. O ponto é simplesmente aceitar a regra do jogo. O autoproclamado progressismo precisa aprender mais sobre essas coisas: é preciso argumentar, disputar eleições, ganhar ou perder e apostar no sistema de freios e contrapesos que é próprio da democracia. E definitivamente parar de deslegitimar o adversário, quando a maré vem na direção contrária. Do contrário, alguém poderá desconfiar que o autoritarismo não venha exatamente daqueles a quem obsessivamente chamamos de fascistas e nazistas, mas da gente do bem. Da turma que, talvez pelo costume de sempre ganhar o jogo, tem dificuldades de aceitar a chegada de novos atores para dividir o palco da democracia. Vai aí uma das marcas da eleição: a ideia de que “do outro lado” estava não um adversário, mas aquele cuja indignidade sequer permite que que nós, os puros, lhe pronunciemos o nome. Aquele que não pode ser nominado visto que não deveria, efetivamente, existir. O insano, o patético, o coisa ruim, prenúncio do fim da “civilização e da humanidade”, como li em um post, nesta última semana, de um pacato acadêmico paulista. Tudo isso é um tanto grotesco, e, imagino, será objeto de pesquisa antropológica no futuro. Intuo que foi precisamente o cansaço e a por fim a revolta contra esta retórica da superioridade moral (junto com seu primo-irmão, o politicamente correto) que embalou a emergência desajeitada do homem comum e seu estranho herói. Tudo feito de um jeito torto, inadequado, fora do tom há muito estabelecido, para o deboche e logo o horror da gente de bom gosto, pelas ruas, happenings em aeroportos, igrejas sem pedigree e no universo selvagem das redes sociais. Há outras leituras do processo, talvez ainda mais interessantes. Nossa propensão ao exagero, que talvez seja o novo normal, das democracias, na era digital, atingiu o estado da arte. Exemplo irretocável disso foi a narrativa de certo modo predominante, no processo eleitoral, curiosamente formulada por um professor americano: Steven Levitsky. Levitsky pontificou e deu algum verniz acadêmico à retórica de fim do mundo, sobre Bolsonaro, que acabou pautando –com algum sucesso– o marketing da campanha de Fernando Haddad. Na visão do professor americano, Bolsonaro será o Hugo Chavez brasileiro. Caso Levitsky tenha razão, muito em breve teremos hordas de brasileiros fugindo pela fronteira, talvez na região da Foz do Iguaçu, tentando escapar para o Paraguai e Argentina. A estratégia Bolsonaro residiria em forçar nossas instituições ao seu limite. “Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei”, diz o professor. Quando li a frase, fiquei curioso.

Essa eleição é o fim de um ciclo

Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Columbia University,

DINHEIRO – Qual é a lição que se pode tirar destas eleições? Fernando Schüler – É uma eleição inteiramente diferente de todas as outras. Até 2014, vivemos um ciclo da política, marcado pela disputa entre variantes da social democracia brasileira. Dilma (Rousseff, PT) e Aécio (Neves, PSDB) tinham divergências de natureza política e econômica, mas não divergência de natureza cultural. Isto é curioso. Gastamos vinte anos acreditando que o mundo se dividia entre esquerda e direita e que Fernando Henrique era um perigoso neoliberal. Agora descobrimos que o mundo é mais complicado. Bolsonaro representa uma ruptura desse ciclo histórico. Ele introduz um tipo de cisão no terreno da guerra cultural. Temas morais invadem a política. A obsessão com as identidades, de um lado, e a reação conservadora, de outro. No fim todos perdem, pois este é um debate impossível. Ele vai muito além dos limites possíveis da política. DINHEIRO – Isso significa que o Bolsonaro é a novidade na política nacional? Schüler – Evidente. De certo modo fomos globalizados: temos o nosso populista conservador. Um tipo de conservadorismo popular, de costumes, que representa uma tradução brasileira da ideia de “lei e ordem”. Nada a ver, por óbvio, com a grande tradição conservadora anglo-saxônica. Nosso conservadorismo não trata de Burke, mas do pastor Malafaia. Podemos não gostar disso, mas é tudo legítimo. Expressa o pensamento de parcela relevante da sociedade, que andava dispersa por aí. Em quem estas pessoas votavam, até 2014? Em Aécio, Dilma, ou na Rede, de Marina Silva? A democracia vai criando suas próprias soluções. Eu não gosto do vezo populista, mas o que isto importa? O Brasil foi pautado, ao longo das gestões do PT, por uma retórica excludente, do “nós contra eles”. O “nunca antes neste país”. É evidente que isto criaria um efeito reativo. Demorou, mas aconteceu. Custa caro, para a democracia, apostar o tempo todo na lógica do dissenso. Bolsonaro é o produto extremo de uma sociedade que já vem polarizada há muito tempo. É evidente que a crise ética, política e econômica que vivemos funcionou como o estopim do processo. Terreno fértil para um líder populista e antissistema. Agora lide-se com ele. DINHEIRO – Ele se aproveitou do cenário atual? Schüler – O Bolsonaro não criou esse cenário, ele é seu resultado. Ele verbalizou e deu viabilidade política a um descontentamento difuso na sociedade com o sistema político. Não é simples explicar a emergência de um fenômeno populista. Em regra, combina-se crise econômica, exclusão (por vezes cultural) de amplos setores, polarização e instabilidade política  a nova lógica da democracia digital. O líder populista fala diretamente com as pessoas, dispensando os partidos e instituições tradicionais de mediação. É o que faz Bolsonaro: ele não está interessado em alianças ou no dinheiro do fundo público de campanhas. Usa a internet e seu movimento se propaga de modo caótico, nas redes sociais. Daí sua força. DINHEIRO – A democracia está em risco por conta disso?   Schüler – Tudo isto é fruto da democracia, ainda crie um brutal desconforto. Não acho que isto se resolva apostando na retórica do medo e da “ameaça fascista”. Isto é um jeito fácil e tolo de lidar com um problema muito mais profundo. Quem se acostumou a jogar o jogo sozinho não percebe um aspecto crucial: a democracia é uma formidável máquina de moderar posições políticas. Inclusive aquelas que eventualmente nascem de uma retórica autoritária. Isso aconteceu com muita gente da esquerda, que nos anos 80 ainda falava em revolução. Lula perdeu três eleições, moderou o discurso, ganhou o jogo e foi incorporado ao main stream político. A democracia é inclusiva. Ela agora também pode inclui a direita, o conservadorismo, mesmo que você, eu e muita gente possa torcer o nariz. DINHEIRO – As posições do Bolsonaro não são radicais? Schüler – É evidente que o Bolsonaro tem um traço autoritário e alimenta teses insustentáveis, como o elogio a torturadores. A esquerda fazia isso com o elogio reiterado, que acontece até hoje, à ditadura castrista, em Cuba, e o apoio explícito ao autoritarismo na Venezuela? É curioso como nós “normalizamos” essas coisas. Nós cultivamos uma curiosa indignação seletiva, que chegou a um esgotamento, nos dias de hoje. A forma de lidar com essas coisas é dobrar a aposta na democracia. Tenho dito que não adiante pregar o diálogo e a moderação e, ato seguinte, chamar o adversário de fascista. O pior caminho para a nossa democracia é excluir as novas formas de representação e de setores importantes para a sociedade brasileira, que eventualmente estiveram fora do poder, mas agora querem fazer parte do jogo. DINHEIRO – Quais são os outros exemplos de excluídos? Schüler – Isso acontece com os liberais no Brasil. Pela primeira vez, eles têm uma clara expressão política representada com o Partido Novo, que é um dos grandes vencedores dessa eleição. O NOVO é um partido inovador, no Brasil, pois nasce de um conjunto de ideias, e não de um arranjo político. Em quem votavam os liberais, no Brasil? No PSDB? Talvez. Mas agora há um partido, e por isso nossa democracia está mais completa. O mesmo vale para o PSOL, que é uma alternativa de esquerda mais nítida que o PT, e cresceu nestas eleições. DINHEIRO – As redes sociais vão ser um marco importante na análise dessas eleições? Schüler – Estas foram as eleições do cidadão comum, dos sem-retórica. O tipo que não se enquadra e mesmo reage a qualquer disciplinamento ideológico. Ele ganhou poder com a tecnologia, e vem produzindo um enorme barulho. Em geral, a elite intelectual não o suporta. Umberto Eco deu perfeitamente o tom: é o idiota da aldeia. Poucas vezes eu vi em uma democracia um divórcio tão grande entre o pensamento do homem comum e o pensamento da elite política intelectual. É uma espécie de incompreensão. Isso vem de um crescimento do politicamente correto, das restrições ao humor, à imposição de códigos identitários e a obediência a uma certa estética. Bolsonaro, em grande medida, se fez a representação do tipo que

A tranquila força da nossa democracia

A turma que apostou na teoria do “risco democrático”, agora, está com um problema: a internet. A internet é uma máquina de não esquecimento. Está tudo lá, registrado. Milhares de artigos, entrevistas, manifestos e “alertas” afirmando que a democracia iria ser destruída, de um modo ou outro, caso Bolsonaro ganhasse as eleições. Pois bem. Ele ganhou, e agora o tempo está correndo. Se a democracia de fato soçobrar, no Brasil, logo saberemos. Em um ou dois anos teremos já uma boa imagem do que ocorrerá com nossas instituições. Caso nossos ilustres acadêmicos estiverem certos, nos tornaremos uma nova Venezuela ou alguma variação próxima. O catálogo de grandes alertas é inesgotável. Agora é “civilização contra a barbárie”, diz Wagner Moura, com um olhar que só ele saberia fazer. Do exterior, a imaginação flutuou nas estrelas. Leio de um professor americano que andou por aqui como uma espécie de Roger Waters da ciência política, durante as eleições, que Bolsonaro irá mover uma guerra às facções criminosas do país, e quando a violência explodir suspenderá a Constituição e dará fim a nossa democracia. Leio outro que nos convoca a resistir enquanto for tempo. Enquanto ainda dispusermos de algum espaço e antes que “nossas liberdades sejam retiradas” pelo novo presidente. Não há nenhuma necessidade de discutirmos muito sobre a correção, ou não, da retórica catastrofista sobre o Brasil. Basta esperar. Estamos diante de uma espécie de experimento natural. Se o grande alerta estiver errado e nossa democracia sobreviver ao inominável monstro de Glicério (cidade natal do novo presidente), tenho convicção de nossos bons intelectuais farão uma discreta e silenciosa autocrítica. Não será preciso nenhum texto ou declaração pública (eles não o fariam, de qualquer maneira), nem mesmo um post, nas redes sociais. Sugiro apenas um brinde solitário em homenagem a nossa democracia e a nossas instituições, que julgaram tão mal. E quem sabe algum arrependimento pelo pecadinho tão impróprio a um acadêmico: ceder à tentação da militância. Ou pior: dar trela e transformar em tese acadêmica aquilo que não passava, no fim das contas, de retórica de campanha de um partido político. Não vale, neste debate, fazer uma confusão bastante elementar: caso a catástrofe não aconteça, sair pela tangente sugerindo que a democracia não terminou, mas que passamos por um retrocesso democrático, por conta da agenda conservadora do governo Bolsonaro. Vamos imaginar. O Congresso aprova, a partir de uma proposta apoiada pelo governo, a redução da maioridade penal para 17 anos. O projeto alcança 308 votos na Câmara e 49, no Senado, em dois turnos. Haveria algum problema democrático em uma decisão como esta? De minha parte, sou contra a redução da maioridade penal, o que é irrelevante. O aspecto relevante é: foi eleito um presidente com esta proposta, explicitamente defendida por anos a fio. Ato seguinte, ela recebe apoio do governo e é aprovada pelo Congresso. Sua aprovação será, portanto, um resultado da nossa democracia, ainda que possa desagradar uma imensa legião de brasileiros. O mesmo raciocínio vale para os demais itens da pauta conservadora, como a (ainda vaga) ideia de flexibilizar o estatuto do desarmamento. Tudo por uma simples razão: a democracia não se decide pelo que eu, você, um punhado de intelectuais, ou o maracanã lotado de gente movida pelas melhores intenções achamos que é certo fazer. A democracia, como não se cansava de repetir Norberto Bobbio, é o império das regras do jogo. É um sistema feito de freios e contrapesos, equilíbrio entre poderes e respeito à Constituição. Respeitadas as regras do jogo, nada diz sobre a qualidade da democracia se os seus resultados, isto é, se as decisões tomadas pelos cidadãos (nas eleições), pelo parlamento, sob a vigilância da Suprema Corte, forem consideradas por alguns como progressistas ou conservadoras. O que me espantou, nesta eleição, mais uma vez, é o mais completo desprezo que boa parte do mundo intelectual tem pela simples ideia do pluralismo e da tolerância como uma modo de ser que é próprio da democracia. Mais de 55 milhões de pessoas votam em um candidato, mas no dia seguinte isto é tomado como a mera expressão de um erro, tragédia, piada ou, como escutei de um bom amigo e intelectual, de uma campanha que não passou de “estridência ideológica vazia”. O novo governo já começa a enfrentar os problemas do mundo real da política, a necessidade de votos para a reforma da Previdência, a pauta da autonomia do Banco Central, no Congresso, a composição do ministério e formação da base partidária. O curso da política de carne e osso segue, a ritmo acelerado, enquanto uma estranha parte da sociedade parece não ter percebido que a campanha eleitoral terminou, que a democracia fez valer sua voz, e as instituições, talvez para desgosto de muitos, cumpriram exemplarmente o seu papel. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 31/10/18)

Existe ou não, afinal de contas, doutrinação ideológica em nossas escolas?

O projeto Escola se Partido é um tema difícil de tratar. Ele produz um debate necessário e toca em um problema real, ainda que não necessariamente ofereça a melhor solução para este problema. Meu ponto não é discutir o projeto, mas o tipo de debate que se criou ao seu redor. Acho curioso, em particular, um certo efeito avestruz que parece ter tomado conta de boa parte de nossa elite intelectual. A turma que simplesmente nega o fato óbvio de que existe um problema de doutrinação ideológica em nossas escolas. Há várias estratégias nesta direção. Alguns dizem que até pode existir algum viés político em nosso ensino, mas que é difícil medir seu tamanho. Faltaria algo como um “doutrinômetro”, um método ou instrumento para medir quantas horas/aula de doutrinação os estudantes receberiam, ano a ano, país afora. Outros apelam a argumentos com algum efeito retórico: se há doutrinação, como é possível que Bolsonaro tenha ganhado as eleições? Por esta lógica, deveria haver doutrinação quando Lula ganhava, com folga. Isto não quer dizer nada. É puro jogo de palavras sugerir alguma relação direta entre resultados eleitorais (por definição afetados por múltiplas circunstâncias) e o que se passa nas aulas de humanidades em nossas escolas. Há ainda os que apelam ao argumento da irrelevância: temos mais o que fazer do que pensar em livros didáticos ou no que dizem os professores nas salas de aula. A reforma da Previdência, por exemplo, ou quem sabe o desmatamento da Amazônia. E por aí vai. De minha parte, digo o seguinte: fiz uma pesquisa sobre o tema. Avaliei os livros de história e sociologia mais usados em nosso ensino médio. Observei o uso dos conceitos, a seleção factual, as fontes de informação e as indicações de livros e filmes. O viés ideológico é claro e brutal. Exemplo rápido: FHC é um desastroso neoliberal (“apesar de tentar negar”), que vendeu nosso patrimônio em meio a “denúncias e escândalos por todos os lados”, e Lula, o primeiro presidente “que não é da elite”. Seu governo foi acusado de um certo “mensalão” amplamente explorado pela “imprensa liberal”. É só um aperitivo. Está tudo lá. O problema é real. Parte de nossa elite intelectual não se importa com isso simplesmente porque concorda com o viés político. Inclui-se aí boa parte da academia. Outro tanto não concorda muito, mas não quer se incomodar. Gente que descobriu o óbvio: o melhor jeito de escapar da patrulha ideológica é concordar com ela, ou ao menos fazer de conta. Falácia bastante comum no debate sobre a doutrinação, na educação, é sustentar que a discussão se dá entre os que defendem a censura e os que defendem a liberdade de pensamento para os professores e alunos em sala de aula. Sejamos claros: o professor, em sala de aula, não detém nada parecido com uma liberdade absoluta para expressar suas posições políticas e visões de mundo. Ele não é livre, por exemplo, para dizer aos alunos em quem eles devem votar nas eleições. Foi este o sentido dado por Kant, no final do século 18, quando estabeleceu a distinção entre o que chamou de uso privado e uso público da razão. Qualquer um de nós, na condição de um cidadão, é perfeitamente livre para expressar suas convicções sobre a vida e o mundo da política. O mesmo não é verdade quando fazemos um uso privado da razão, isto é, quando cumprimos um determinado papel social. O âncora de um programa jornalístico, por exemplo. Ele simpatiza com esta ou aquela posição política, não há problema, mas no exercício de sua função profissional trata a informação com isenção e apego aos fatos. O mesmo ocorre com o professor. Sua função é promover o aprendizado e criar o melhor ambiente possível para o crescimento intelectual dos alunos. Seu papel não é convencer os alunos sobre esta ou aquela doutrina ou posição política, religiosa ou cultural. Para usar a expressão de Max Weber em “A Ciência como Vocação”, ele não deve agir como “profeta ou demagogo”, usando de sua posição de poder e sua audiência cativa para fazer a cabeça dos alunos. Isto é particularmente relevante para o ensino médio e fundamental, quando se está lidando com crianças e adolescentes no início de seu processo de formação intelectual. Dito isto, não é claro que o projeto Escola sem Partido ofereça a solução mais adequada para o problema da doutrinação, em nossas escolas. Confesso não gostar da ideia de incentivar que alunos denunciem seus professoresa órgãos de Estado. Considero bizarra a imagem de alunos gravando professores para posterior acusações públicas ou coisas do tipo. Isto sem prejuízo de que as direções de escolas, secretarias e mesmo o Ministério Público façam o seu trabalho, quando abusos de qualquer ordem forem cometidos. Que se coloque um cartaz nas salas de aula, contendo princípios consagrados na Constituição e nos documentos que regem nossa educação? Não vejo problema, mas desconfio que não irá adiantar muita coisa. Seja qual for a solução a ser dada ao tema da doutrinação ideológica em nossas escolas, ela começa com o reconhecimento simples de que o problema existe e deve ser discutido com franqueza. Dias atrás li um artigo sustentando que ideologização do ensino não tem nada a ver com a qualidade da educação oferecida a nossos alunos. Tem sim. Doutrinar, seja para que lado for, significa desprezar a lógica mais elementar do pensamento científico. Significa abrir mão do cultivo de competências analíticas fundamentais à vida profissional e à vida do cidadão, que envolvem apego ao dado empírico, distanciamento crítico e recusa do viés de confirmação. Não se trata apenas de induzir os alunos a apoiarem este ou aquele partido ou ideologia. Isto é ruim para a democracia, mas não é o maior problema. A questão central é recusarmos um tipo de educação que forma torcedores, em vez de pessoas capazes de pensar com racionalidade, isenção e método. E que possam, a partir daí, defender com propriedade as ideias que julgarem mais apropriadas, em qualquer terreno. Fernando Schüler

O País estará assinando um cheque em branco, nestas eleições?

O país parece ter decidido ir para o tudo ou nada. De alguma maneira, vamos repetir a polarização de 2014, apenas com uma temperatura mais elevada. Na dança das cadeiras da democracia brasileira, o PSDB perdeu o lugar para Bolsonaro. Perdeu por seus próprios erros e indefinições, mas também porque mudaram os termos do debate político. Ao contrário de 2014, o maior protagonista desta eleição é um tipo alheio ao pacto da transição democrática dos anos 80. Dilma ou Aécio, Lula ou FHC, podiam divergir sobre muitas coisas, mas todos chamavam 1964 de golpe e ninguém discutia o envolvimento de Brilhante Ustra com a tortura. Bolsonaro é expressão de uma outra história. Sua narrativa do Brasil é distinta de tudo que aprendemos, nos últimos trinta anos, nos livros didáticos. Seus heróis estão do outro lado. Ele é, de fato, um outsider da redemocratização brasileira. Diferente de 2014, o centro dessa eleição não é o debate sobre economia ou políticas públicas. Ninguém, de fato, está prestando muita atenção em temas aborrecidos como reforma da previdência, tributária, déficit público ou como resolver a tragédia de nossa educação pública.   Mesmo o tema das privatizações, que sempre produziu algum barulho, hoje está fora do jogo. Paulo Guedes sugere privatizar mais de cem estatais, e ninguém dá muita bola. Haddad propõe dar marchar ré na reforma trabalhista, regular a mídia e, quem sabe, convocar uma nova constituinte, e tudo parece dar sono. Em boa medida, com razão. Os eleitores aprenderam a não levar muito a sério programas de governo, depois de sete eleições. Bolsonaro promete uma renda universal de cidadania a todos os brasileiros. É isso mesmo: a proposta do senador Suplicy. Está lá, escrita, no seu programa de governo, mas duvido muito que ele sequer saiba disso. O general Mourão é nosso campeão. O homem que nos salva do tédio. Suas ideias sobre o 13º salário ou sobre a constituinte de notáveis não fazem muito sentido e não passam de pedaços de retórica soltos ao vento. Mas despertam mais atenção do que qualquer coisa bem estudada que o chamado centro político tenha dito, ao longo do debate eleitoral. Vai aí um subproduto de uma disputa pautada pela guerra cultural. O centro político desaparece porque sua agenda “racional” simplesmente está fora dessa eleição. Alckmin pode falar em reforma política, soletrar suas realizações no governo de São Paulo, e Meirelles contar como debelou a inflação e formulou a PEC do teto. Sono. O resultado disso tudo é que em boa medida assinaremos um cheque em branco, nestas eleições. Se o debate não é (quase nada) programático, o que exatamente estamos elegendo? Ok, é mais divertido ficar caçando bruxas, na internet, e chamando os oponentes de “leprosos morais”, como li dias atrás de um ilustre professor, tecendo considerações delirantes sobre a o “novo fascismo”, a destruição da família ou o próprio fim da civilização, caso a turma do outro lado vença as eleições. Mas tudo isso não passa de “bullshit”. Estética do exagero e destempero típicos do ecossistema digital, com o qual ainda não aprendemos a lidar. Na prática, o novo presidente, seja ele Haddad ou Bolsonaro, tomará posse em janeiro, formará uma base no Congresso (fundamentalmente com os mesmos partidos), e apresentará ao país uma agenda de reformas. Que agenda é esta é o que menos interesse desperta discutir, nesta campanha. Parecemos todos felizes em brincar de profetas do caos e guerreiros de posições extremas, nas redes sociais. Mas a conta fatalmente virá, logo adiante. (texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 04/10/18)

O Brasil não deveria ser tratado como uma república de bananas

Sempre apreciei a convivência com o Professor Jorge Castañeda, ex-Chanceler Mexicano e autor de bons livros, como Utopia Desarmada. Ontem me surpreendi com seu artigo no The New York Times sustentando a posição de que o Brasil deve permitir a candidatura de Lula à presidência da República. Seu artigo vai na mesma linha da recente nota do comitê de direitos humanos da ONU (não confundir com o Conselho de Direitos Humanos). Ambos não dão muita bola para pormenores da vida brasileira, como a Lei da Ficha Limpa, nem se preocupam muito em especificar a quem se dirigem quando falam que “o Brasil deveria fazer” alguma coisa. Talvez devessem se dirigir à Ministra Carmem Lúcia, visto que o assunto está com o judiciário, um poder independente, mas intuo que ambos não estejam muito preocupados com detalhes desse tipo. Na lógica de Castañeda, não há propriamente um sistema judiciário no País, com regras, autonomia e hierarquia. Há um “debate”. Há argumentos que apontam uma perseguição do Juiz Sérgio Moro a Lula, há uma campanha internacional a seu favor, contando inclusive com uma carta do senador Bernie Sanders, e há mesmo uma reunião em que o Papa teria escutado com atenção alguns aliados do ex-Presidente. A parte do Senador Bernie Sanders me pareceu particularmente curiosa. “Quem é essa gente”, parece perguntar Castañeda, “quem são esses juízes brasileiros para julgar, ou este Congresso para fazer uma lei da ficha limpa, se o próprio senador americano já se manifestou?” Castañeda comete um equívoco que vem pautando boa parte do barulho externo sobre o caso Lula: ele compra a retórica de campanha do ex-Presidente pelo valor de face. Sugere que poderia ser “pesado demais” para a democracia brasileira caso Lula não concorra e não consiga eleger seu substituto e que os fãs do ex-presidente poderiam se sentir privados do direito de votar. Há muitas coisas interessantes a observar nesta linha de argumentação. Em primeiro lugar, a visão algo fantasiosa do que se passa no Brasil. A começar pela confusão elementar entre “povo” ou “sociedade” e a militância organizada e relativamente restrita (ainda que ativa e barulhenta) de um partido politico, seja ele qual for. Ativismo e retórica são essenciais na democracia, mas não a definem. Em segundo lugar, há um problema evidente de equidade. As mesmas regras deveriam valer para todos (incluindo personagens pelos quais Castañeda ou o comitê da ONU, imagino, não teriam lá grande simpatia) ou deveríamos instituir, no País, um direito próprio para quem tem militância e algum apoio externo? Por fim, aposta-se na ideia difusa de que somos um País feito de uma elite política degenerada, com os juízes no comando e funcionando como “árbitros das eleições”. Uma espécie de república de bananas gigante, cujas leis e instituições não mereceriam ser levada muito à sério. O ponto é que vai aí uma visão fantasiosa sobre Brasil, a qual deveríamos rechaçar em respeito àquilo que nós mesmos soubemos construir nestas mais de três décadas de democracia. Uma democracia com muitos defeitos, a começar pela falta de consenso sobre o que deve, afinal, ser reformado em nosso sistema político. Vai daí o fato óbvio de que precisamos dobrar a aposta na moderação e no diálogo, e não jogar mais lenha na fogueira. Um bom ponto de partida seria observar o País sob o prisma daquilo que o País construiu na história recente. A Constituição de 1988 completa trinta anos, em nosso mais longo período de normalidade democrática. Soubemos respeitar uma rigorosa alternância de poder e sobrevivemos a dois processos de impeachment. Consolidamos instituições independentes, o que no fundo é o que parece incomodar muita gente. E em nenhum momento, ao menos até agora, estivemos diante de uma escolha entre a democracia e o estado de direito, como sugere o Professor Castañeda. Mesmo porque, no mundo moderno, do qual felizmente fazemos parte, essas coisas necessariamente andam de mãos dadas. (originalmente publicado pela Folha de São Paulo, em 21/08/2018)