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A grande síntese brasileira

Virou hábito chamar o atual governo de conservador. Eu mesmo utilizei esta expressão, algumas vezes. Gosto da ideia de que uma boa democracia é aquela capaz de dar expressão à multiplicidade de visões, na sociedade, e este foi um ganho das últimas eleições. Elas deram voz a um pensamento conservador há muito presente, e quem sabe hoje hegemônico, na sociedade brasileira.

Dito isto, há muitas coisas diferentes sob o rótulo do conservadorismo. Na expressão clássica de Oakeshott, ser um conservador “é preferir o familiar ao desconhecido, o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o real ao possível… o conveniente ao perfeito”. Vai aí um sentido profundo da grande tradição conservadora: não a defesa pura e simples da tradição, mas a ideia de caminhar à frente com prudência.

Não pelo culto do passado, mas o respeito ao futuro. Daí a aversão ao voluntarismo, do sujeito que se põe a regular a vida dos outros com base em um punhado de ideias abstratas que, por acaso, ele tem na cabeça.

É curioso observar, no atual governo, que é precisamente no Ministério da Educação, usualmente associado ao conservadorismo, que se vê crescer uma certa lógica voluntarista.

A ideia de reduzir recursos para universidades federais em função de “badernas” no campus, a noção de que o governo possa arbitrar a utilidade social das diferentes profissões, ou a imprudente sugestão de que alungos devam filmar os professores, em sala de aula.

Quando escutei isto, não acreditei. A ideia seria criar uma legião de pequenos torquemadas digitais caçando professores-bruxos no ambiente altamente racional e ponderado das redes sociais?

Acho que não é isso que o ministério deseja, e é por isso que se trata do avesso da atitude conservadora. É a ação feita de improviso, feita ao sabor da guerra cultural e sua lógica de curto prazo, sem muita preocupação com as consequências adversas daquilo que propõe.

Penso que o Brasil deveria andar por outro caminho, e a inspiração poderia vir exatamente da tradição conservadora. O caminho é buscar o que melhor fizemos em nossa experiência democrática, e encontrar novas bases de consenso, em um país fraturado.

Este é o primeiro aprendizado conservador: o que vale a pena preservar de nossos erros e acertos? A responsabilidade fiscal, por exemplo. Estados que a levaram a sério pagam hoje salários em dia, enquanto a pobreza cresceu 33%, no Brasil, com a aventura irresponsável que levou à crise de 2014-2016.

Vai aí a lição mais elementar: que o fosso que se imaginava separando a tradição liberal da boa social-democracia é muito menor do que já se imaginou, no passado. É disso, no fundo, que trata o ciclo de reformas que o país tem pela frente: a ideia de que o ajuste estrutural do Estado hoje é condição para transformar em realidade, no futuro, a sociedade de direitos desenhada na Constituição.

Da social-democracia aprendemos muitas coisas. A mais decisiva, a meu juízo, é nunca confundir a garantia de direitos com o privilégio. O BBC expressa um dirito; aposentadoria aos 50 anos, para quem quer que seja, não passa de um privilégio.

Dias atrás conversava com um egresso do Prouni. Vindo de uma família muito pobre, hoje tem emprego, faz mestrado e sonha longe. “Aquilo me deu o direito de escolher”, disse ele. Me veio um filme na cabeça. O filme de um país que pode dar certo se encontrarmos o jeito brasileiro de combinar coisas que na retórica política soam divergentes: incentivos de mercado e garantia de direitos.

Paulo Guedes acertou, naquela tarde desigual na CCJ, quando disse que nosso caminho não era o do Chile, mas o de um sistema de capitalização que incorporasse o sentido de solidariedade inscrito na Constituição. Ele parecia falar sozinho, assim como parece falar, no campo da esquerda, o governador petista da Bahia, Rui Costa, quando defende a reforma da Previdência, o diálogo com o governo e diz que rigor fiscal e PPPs não são coisas do demônio.

A grande síntese brasileira virá de uma certa teimosia. Da aposta em gente capaz de construir pontes e fazer avançar reformas graduais. É assim que deveria andar o atual governo, e desse modo se consagrar, de fato, como um governo conservador.

 (publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 02/05/19)

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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