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Não estamos em guerra

Meu último artigo gerou uma boa discussão. Uma das observações que recebi lembrava de nossa Lei antirracismo e argumentava que era correta a ação da Confederação Israelita contra o jornalista que relativizou o terrorismo do Hamas, fazendo menção à frase do Deng Xiaoping sobre “não importar a cor dos gatos, desde que cacem os ratos”. Há um ponto interessante aqui. A Conib, como qualquer outra organização, tem todo direito de mover uma ação, nos termos da lei. Caberá à justiça decidir a questão. Vale o mesmo para os crimes contra a honra. Se alguém se sentir caluniado ou difamado, pode acionar a justiça. Ações desse tipo, respeitando o devido processo, não ferem, mas reforçam o princípio da liberdade de expressão. Não se deve confundir uma ação privada, à posteriori, fundada em lei, com atos de censura prévia e “de ofício”, amplamente praticados no Brasil, nos últimos anos. Agradeço às observações feitas ao meu texto, e digo aqui que é do debate de ideias franco e cordial que se faz uma grande democracia.

Outra critica que recebi diz que vejo a liberdade de expressão como um “direito absoluto”. Não é o que penso. Até conheço algumas pessoas que defendem essa ideia, mas não é o meu caso. A liberdade sempre será regulada. A pergunta real é sobre como isto será feito. A partir de critérios restritos e bem estabelecidos, com base em lei aprovada no parlamento? ou a partir de critérios ad hoc, abertos a todo tipo interpretação e discricionariedade por parte de quem detém o poder?  Ainda na outra semana vi um exemplo disso. Um Ministro declarou que seria crime “comemorar o 8 de janeiro”. Na sua opinião, o 8 de janeiro foi um “golpe”, e comemorar um golpe seria crime. O exemplo é banal, mas está lá. Não há lei alguma no País dizendo que não se possa comemorar a tal data (seria de péssimo gosto, isso sim). Aquilo é simplesmente a opinião de uma autoridade, feita de um conjunto muito vago de interpretações. Um pouco a crônica do Brasil recente. Uma postagem, um documentário, um papo no Whatsapp, qualquer coisa pode ser um crime, desde que na opinião da autoridade aquilo seja um crime. Razões? A “verdade”, o “ódio”, não importa muito. Trata-se de uma visão com apoio na sociedade, mas vejo um crescente cansaço. Cada vez mais gente se dando conta que a intervenção arbitrária nos direitos individuais e a falta de isonomia nas regras do jogo é menos uma solução e mais uma causa da tensão política, no País.

Há uma outra tradição que tenta compatibilizar a preservação do mais amplo “mercado de ideias” e os demais valores que prezamos, como sociedade. Sua melhor expressão (mas não a única) é o longo aprendizado em torno da Primeira Emenda à Constituição Americana. Sua base é a clara distinção entre o universo da “opinião” e o da “conduta” das pessoas. Gustavo Maultasch trata disso em seu livro “Contra toda a Censura”, cuja leitura recomendo vivamente. A distinção vem de longe. Está lá no clássico de John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”, quando ele diferencia uma opinião na imprensa, culpando a propriedade privada e os comerciantes de milho pela fome, e esta mesma opinião em um discurso irado, diante da multidão furiosa, ameaçando um comerciante de milho à frente de sua casa. O ponto de Mill: a opinião só deve ser punida “se for provável que um ato violento resulte daquela manifestação”.

​No Brasil, poucos traduziram melhor esta distinção do que o Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto minoritário no caso Ellwanger, em 2003. A questão era conceder ou não um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, escritor que relativizava a história do holocausto, entre outras barbaridades. O Ministro Marco Aurélio fez uma dura defesa do direito à expressão, dizendo que ele se prestava precisamente para as “ideias controversas, radicais, minoritárias, desproporcionais”. E acrescentou: “a única restrição deve ser quanto à forma da expressão”. E fez a distinção: haveria crime se Ellwanger “em vez de publicar um livro […], distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre”, com dizeres do tipo “vamos expulsar estes judeus do País”. A simples defesa de uma tese, por estúpida que fosse, não configuraria crime.

A tese do Ministro se aproxima do clássico critério formulado por Oliver Holmes, na Suprema Corte Americana, em 1919: não havendo “perigo real e imediato” em um discurso, ele deve ser protegido. O argumento seria depois detalhado pelo Juiz Louis Brandeis, em um caso envolvendo a ativista comunista Charlotte Whitney. “O medo de danos graves”, diz ele, “por si só, não pode justificar a supressão da liberdade de expressão”. E foi direto: “se houver tempo para expor a falsidade, para reverter o mal pela educação, o remédio a ser aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado”.

A tese foi confirmada em um julgamento clássico, no final dos anos 60, quando um, dirigente da Ku Klux Khan, Clarence Brandenburg, fez um discurso atacando os direitos civis, nos Estados Unidos. Entre outras coisas, disse que os “negros deveriam ser devolvidos à África” e os “judeus devolvidos a Israel”. Seu discurso era odioso, mas seu direito foi defendido junto à Suprema Corte por um advogado judeu, Allen Brown, e uma jovem advogada negra e progressista, Eleanor Norton. Eles ganharam. Norton se tornou uma grande ativista. E sempre explicou que não lutava por este ou aquele discurso, mas pela preservação de um princípio: que não deve caber ao Estado decidir “quem e o que se pode falar”. Algo que “por vezes me obriga”, acrescentou, a “defender pessoas que jamais me defenderiam”.

Na vida americana, a tese de Brandeis e Holmes se tornou majoritária; No Brasil, aquela posição similar do Ministro Marco Aurélio, minoritária. Quem teria razão? Não sei. É possível que a tradição de Madison, Mill, Brandeis e Oliver Holmes esteja errada, e certos estejamos nós. Com direito a uma pergunta sobre quem somos “nós”. Escrevemos uma Constituição protetiva de direitos, derrubamos a lei de Imprensa, a lei de segurança nacional, vedamos a censura prévia. Nos últimos anos fomos cedendo, na liberdade de expressão, a um direito feito de frases vagas e pontos de exclamação. Qual é, no fim do dia, a nossa tradição?

Muita gente pode sinceramente desejar viver em uma democracia de tutela, oposta ao que disse Eleanor Norton, delegando ao Estado punir com base em critérios abertos, sejam as “notícias fraudulentas”, os “discursos de ódio”, as “ameaças à democracia”. Ou mesmo as “comemorações” desta ou daquela data. Ajuda a fantasia de que estamos em uma guerra permanente, que há um grande inimigo a ser combatido, e que não podemos agir como Chamberlain diante de Hitler. De minha parte, fico com as velhas lições de John Locke. “A liberdade”, dizia ele, consiste em viver segundo uma “regra estável”, não sujeito “à vontade incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem”. Nesse mês de janeiro, início de um novo ano, época tão propícia para dar uma parada e desarmar os espíritos, é sobre isto que deveríamos refletir.

 

 

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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