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O Natal Cancelado

“Depende do contexto”, respondeu a reitora da Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magil, no Congresso Americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de judeus”, na universidade. Acabou renunciando. Teria sido uma resposta infeliz, ainda que “legalista”, na visão do chairman da universidade, Scott L. Bok. Numa alegação puramente formal, seria possível sustentar que a retórica de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação contra este ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isto que estava em jogo. Se a pergunta fosse: “você considera admissível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou pessoas negras, na universidade”, é difícil imaginar que a reitora (ou qualquer pessoa minimamente razoável) fizesse aquela relativização. A conclusão óbvia é a de que o antissemitismo seria menos “problemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado.

O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a discriminação saiu do universo do Campus Universitário e foi para o Congresso. Para o grande debate, na sociedade. É algo comum no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero, raça e orientação sexual. Nesta lógica, pouco importa que o Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquininha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opressor”, aliado do ocidente (!). E a violência do outro lado um tipo de “reação”. Ou ainda: uma reação perfeitamente justificada, quiçá de “inteira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado, todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas doações, das universidades, e uma ampla reação se formou. Niall Ferguson resumiu a questão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insano que vivemos, nos últimos anos.

É possível que Ferguson tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “racismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos grandes jornais, a partir dos anos 2010. Agora os ventos mudaram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pesquisas mostrando que aqueles temas perderam terreno, nos últimos anos. “A terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drasticamente a procura por executivos de “diversidade”, nas empresas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e entender o que as pessoas de fora estão dizendo”, ao invés de simplesmente impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões ideológicas, nas universidades, apresentaram um recuo, segundo os dados da Fundação para os Direitos Individuais em Educação.

Explicar este fenômeno nos faz voltar ao tema dos limites. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingleses anunciando que o Imperador romano Heliogábalo, no século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias como esta, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, passaram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma agenda perfeitamente legítima de inclusão foi se convertendo em um radicalismo algo exótico e avesso ao bom-senso. A partir daí, a reação difusa, na sociedade. Muitos intelectuais tomaram à frente, mas a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e acontecimentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão pateticamente ideológica, no último ENEM, sobre o agronegócio. A cada semana observo este conflito silencioso nas escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas e comportamentais muito específicas. Por vezes é a imposição de uma educação “étnico-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gênero, devidamente enviesados; em outros casos é a mais pura mesquinharia, como vi ainda esta semana, em uma escola bacana de São Paulo, proibindo uma foto das crianças com aqueles gorrinhos de papai-noel, para celebrar o final de ano, no que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”, me disse, desanimada, a mãe de uma aluna.

O que se observa nestes casos é uma marca de nossa época, talvez acentuada pela revolução digital: a dicotomia entre a cultura dos ativistas e os valores do “common sense”. Pesquisa do The Hidden Tribes mostrou que os “ativistas progressistas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são ativos, no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultraconservadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento, e não é por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou  “exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que lê no Twitter, provavelmente terá uma visão distorcida, e muito mais radical, do que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoáveis, sem obsessões políticas e dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militante. Ele é amplamente minoritário, mas vai a todas as reuniões, é articulado e segue uma agenda da qual não abrirá mão. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês, sugerir atividades. E por nada desse mundo revisará seus bem-consolidados pontos de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “erro”. E como tal, precisam ser corrigidos.

Vai ai um desafio. Em especial, na educação. Ele foi bem formulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política”, e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo: universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se virar por conta própria. O que é realmente inaceitável é que a doutrinação seja feita nas escolas, diante de crianças sem capacidade de se contrapor à “autoridade intelectual” de um professor ou dirigente educacional. Foi exatamente este o ponto de Weber, em seu “A ciência como vocação”, que deveria ser lido e relido nos dias de hoje. Weber faz seu argumento iluminista, segundo o qual não cabe ao professor agir como “profeta ou demagogo”, nem usar sua autoridade, diante de alunos, para impor esta ou aquela agenda. De maneira bastante direta: cada um que fique com suas crenças. Mas tirem as mãos de nossas crianças.

Conversando com os pais de alunos, angustiados com o que se passa em nossa educação, sempre me dou conta: o que eles desejam não é uma escola “conservadora” ou “progressista”. Que induza crianças e adolescentes a esta ou aquela visão sobre gênero, orientação sexual ou alguma crença moral que paira na cabeça de uma minoria ativista. O que eles desejam é uma escola voltada ao conhecimento e ao espírito crítico. Ao “human flourishing”, na tradição iluminista de Von Humboldt, Mill e Isaiah Berlin. O direito irrenunciável a autonomia individual, nossa melhor herança moderna. Da qual somos não apenas herdeiros, mas fiadores para as gerações que vem à frente de nós.

Fernando L. Schüler

(originalmente publicado na Revista Veja, em dezembro de 2023)

 

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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