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Soma Variável

“Ninguém deveria ter um bilhão!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de um bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passar da quota de um bilhão? Se ela ficar com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de um bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então porque eu iria continuar trabalhando, tomando risco”? Por esporte? E se ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá…

Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia”, que a riqueza dos 5 mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-mad-man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um. Não há nenhum jogo de soma zero, funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas.

Me lembro quando li “O Capital no Século XXI”, do Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (de “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim, De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “vamos seguir o Stiglitz”. “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história.

Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a R$ 3.208 (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas no fundo mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É um discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “à favor”. É chato, complicado, exige buscar eficiência em política públicas, demanda soluções de mercado, em regra contraintuitivas, com resultados de longo prazo. E dá muito menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana .

Indermit Gill,  do Banco Mundial, tem uma sugestão bastante simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem sucedidas na redução da pobreza. Países do sudeste asiático, como a Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnam. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação.  Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”, e coisas do tipo. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2,6 mil. O País que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isto não acontece por que “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, estabilidade das regras, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que haviam por lá.

Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development,  avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a pobreza, de modo sustentável, é nisto que deveria prestar atenção. Qual educação estamos oferecendo, nas últimas posições no PISA? Que vias de inclusão ao mercado abrimos aos dependentes do Bolsa Família? Qual a qualidade do gasto público? O que significa 4,5% do PIB em incentivos fiscais, sem avaliar seriamente a relação custo-benefício? E os cinco bilhões no “fundão eleitoral”? A justiça e o legislativo entre os mais caros do mundo, enquanto os espertos pedem mais carga tributária? E o que se passa quando abrimos mão de reformas cruciais que o País precisava fazer? Não precisamos ir longe, aqui. Mário Covas nos falou sobre um “choque de capitalismo”, na longínqua campanha de 1989, mas nunca conseguimos produzir um consenso em torno disso, no Brasil. E talvez seja este, ano após ano, nosso desafio.

Fernando L. Schuler

(originalmente publicado na Revista Veja, em janeiro de 2024)

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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