A educação e a pandemia: o sistema dos não culpados

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim”. Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti”. Nas últimas semanas li o que pude sobre nossa educação pública, na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e e-mails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo. Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável. Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo? Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu. Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A PNAD Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo. Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos tem acesso à internet, os mais pobres não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma. A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isto pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil. Não é exatamente para lidar com isto que existe a educação pública? Estudo recente do IPEA calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o deficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público? Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso à redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto. Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “o setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula os pais simplesmente tiram os filhos. E o setor publico, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade? Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de não-culpados. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou na contratação de pessoal. Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas Ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios. Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital. Melhor tapar o sol com a peneira e por a culpa é da desigualdade. Ela mesma que que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020. (originalmente publicado na Folha de SP, em nov 2020)
Direitos e oportunidades são a resposta ao debate nonsense sobre a meritocracia

Daniel Markovits lançou um livro chamado “A armadilha da meritocracia” (ainda sem tradução), com as habituais denúncias contra o “mito” ou a “farsa” da meritocracia. O argumento central é um velho truísmo. Nossas sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e, por óbvio, os pontos de partida de cada um na vida são muito diferentes. O interessante desse debate é que raramente alguém diz quem exatamente defende a ideia sem sentido de que nossas sociedades sejam meritocráticas. As referências sempre se dirigem a uma vaga “cultura popular” que preza o mérito, ou recomenda que as pessoas confiem nelas mesmas e ponham a mão na massa (a cultura da autoajuda é isso, não?). Nos anos 50, o sociólogo inglês Michael Young escreveu um livro distópico, The Rise of Meritocracy, tentando imaginar como funcionaria uma sociedade em que as posições de poder fossem acessíveis aos mais talentosos. A coisa toda era, por óbvio, uma grande ironia. E um inferno totalitário, apenas isso. Há uma confusão elementar nisso tudo. Uma coisa é dizer que esforço e a disciplina fazem diferença na vida, outra é imaginar que o mérito seja a base sobre a qual a sociedade distribua recursos e posições de poder. As organizações podem fazer isto, com base em critérios próprios, mas não a grande sociedade, onde os critérios são dispersos (ainda bem), e onde o acaso cumpre um papel essencial. Hayek matou esta charada quando registrou que o mercado não remunera mérito e sim a criação de valor, segundo a “votação” que cada um faz, a cada momento, a partir de suas próprias preferências, quando decide ou não pagar por alguma coisa. E que a condição de nascimento, assim como uma “mente brilhante, uma bela voz, um rosto bonito ou mãos habilidosas (…) são tão independentes dos esforços de um indivíduo quanto as oportunidades ou experiências que já teve”. E que seria um inferno, em especial para os menos favorecidos, uma sociedade em que de fato se acreditasse na lorota de que uma boa renda é prova de mérito e uma má posição pressupõe sua ausência. Ao invés de perder tempo com moinhos de vento, deveríamos discutir com seriedade qual o parâmetro de justiça plausível em uma sociedade aberta. A melhor que conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais para todos e uma base equitativa de oportunidades para cada um. Isto nada tem a ver com igualdade de oportunidades, que implicaria na eliminação de tudo aquilo que possa servir de vantagem para alguém na ideia tola de que “a vida é uma corrida”. O grande Bernard Williams tratou disso com primor. Igualar oportunidades implicaria em eliminar a influência do dinheiro, e logo da comunidade, da língua, e por fim da família e das aptidões naturais (e quem sabe também da sorte) da vida das pessoas. A par de destruir qualquer traço de identidade pessoal, um exercício de nonsense. O que se deve efetivamente oferecer é uma base mais homogênea de oportunidades. Isto significa muitas coisas ligadas ao direito de crescer com saúde, ser tratado com a mesma consideração e respeito que os demais e poder escolher uma (boa) escola onde estudar (direito hoje concedido apenas aos mais ricos, sob aplausos gerais). O prof. Markovits diz que temos que abrir as escolas dos mais ricos para a frequência dos mais pobres. Ele está certíssimo. Sem colocar os alunos (com mais ou menos renda) a estudar nas mesmas escolas (e nem me refiro aqui às superescolas) não vai rolar base nenhuma de oportunidades iguais. Como fazer isso? Bolsas? Contratos de gestão com o setor privado? É isto que nosso velho corporativismo mais odeia, não é mesmo? De qualquer forma, a ideia de que cabe ao Estado assegurar uma base mais equitativa de oportunidades a todos é algo que a tradição liberal há muito incorporou. E não penso que ela seja recusável por um pensamento de esquerda igualmente atual. Talvez vá aí a base de algum consenso público para além da querela política e sobre o qual o País tenha boas razões para se concentrar.