História e sociologia na nova base curricular: ideologia e confusão

Artigo publicado originalmente na revista Época Responda rápido: se você não quiser resolver muita coisa, mas fazer uma boa discussão, por onde deve começar? Há muitas respostas para esta pergunta. A minha favorita é: fazendo um mau diagnóstico. Ok, a resposta é meio óbvia, mas é exatamente disso que se trata o debate travado no País em torno da nova “base nacional comum curricular”. Pra quem não está familiarizado com o tema, trata-se de implantar um currículo obrigatório comum para todas as escolas brasileiras, estatais ou privadas, de ensino médio e fundamental. Na prática, uma lista de conteúdos para disciplinar o ensino básico. Orientar os autores de livros didáticos, o trabalho dos professores, em sala de aula e as provas do ENEM. Meu argumento: a proposta de uma base curricular comum parte de um diagnóstico errado. Ela diz que que há um problema com nossa educação básica e que a implantação de um currículo nacional é fundamental para reduzir nossas “desigualdades educacionais”. Isto está lá, na primeira frase do site do “Movimento pela base nacional comum”. Os dados são conhecidos: o Brasil possui 190 mil escolas voltadas ao ensino básico. Perto de 80% tem gestão governamental. No ensino médio, alcançam 3,4, em média, no IDEB. A rede privada, por sua vez, tem um IDEB de 5,4. A discrepância se repete no PISA: alunos de escolas privada alcançam uma média pouco acima de 500; alunos de escolas públicas ficam perto do último lugar, com média de 387. Observando estes dados, alguém poderia desconfiar que há um problema com a educação estatal, no Brasil. Desconfiar que há um problema com o alto absenteísmo de professores na rede pública (estudo mostrou que 12 mil professores faltam à aula todos os dias na rede estadual paulista); com a burocracia da gestão governamental, as amarras da lei das licitações, a estabilidade no emprego dos professores, a precariedade das instalações, a falta de continuidade administrativa, a pressão sindical contra qualquer inovação e meritocracia, as greves em série, et, etc. Alguém podia ter pensado nestas coisas, mas ninguém pensou. No cânone do debate educacional brasileiro, pode-se chegar a qualquer conclusão, menos que exista algum problema como o modelo de gestão estatal de nossas escolas. Questionar o “modelo” gera, como me disse certa vez a dirigente de uma ONG voltada à educação, um “problema político”. E ninguém quer encarar um problema politico, não é mesmo? Uma vez decidido não enfrentar o cânone, produziu-se um singular diagnóstico: o que está faltando na nossa educação é uma lista de conteúdos que as escolas devem ensinar. Tenho curiosidade de saber que tipo de evidência empírica se usou para se chegar a essa conclusão. Suspeito que nenhuma. Talvez apenas a velha ideia de que é preciso “centralizar” quando alguma coisa não está funcionando. Pois bem, feito o diagnóstico, o governo brasileiro partiu para a elaboração da lista. O MEC formou uma comissão de 116 professores e pôs mãos à obra. Depois de algumas revisões, publicou uma última versão da lista de conteúdos no mês de maio. Relutei, confesso, em analisar o seu conteúdo, pelas razões expostas acima. Mas fui em frente. Me concentrei nas áreas de história e sociologia. Li e reli a lista de conteúdos, e confesso que me surpreendi. Ela é muito pior, mais confusa e mais pesadamente carregada de viés ideológico do que havia imaginado. O viés ideológico da base comum surge com nitidez na área de sociologia. Nos 28 conteúdos sugeridos, o arco conceitual é feito de palavras chaves como “classes sociais”, “dominação”, “divisão social do trabalho”, “relações sociais de produção”, “movimentos sociais”. Não há, em toda lista, uma única menção a conceitos como liberdade, ética, indivíduo, direitos individuais, mercado, tecnologia ou inovação. Nada sobre a sociedade pós-industrial, de Daniel Bell; sobre a sociedade de rede, de Manuel Castells; ou a sociedade aberta, de Karl Popper. Alguém diria que estes são temas “difíceis”? Não acho. Não é a dificuldade que separa a boa sociologia do proselitismo. A lista consagra uma visão binária de sociedade, baseada em polarizações de “classe” e movimentos sociais. Linha já adotada em nossos livros didáticos de sociologia. A novidade é que agora ela ameaça se tornar visão “oficial” do estado brasileiro. No primeiro ano do ensino médio os alunos aprenderão sobre “localização social, como classes sociais”; No segundo ano refletirão sobre “movimentos sociais baseados em classes sociais e, no terceiro, “problematizarão a divisão de classes no modo de produção capitalista”. No quarto fariam uma revolução, imagino. Brincadeira. A expectativa realista é que passem a integrar algum “movimento social”. Para deixar claro: é razoável que este tipo de conteúdo seja apresentado como uma dentre outras linhas de interpretação sociológica no mundo moderno. Nada razoável, no entanto, é que ele seja apresentado como “a” sociologia como tal. Como pensamento único, travestido de realidade e pronto a fazer a cabeça dos nossos alunos. O que temos aqui é um clássico problema de ação coletiva: quem exatamente é capaz de expressar o “pensamento comum” ou a reflexão sociológica “adequada” para as 190 mil escolas brasileiras? Uma comissão de 116 especialistas escolhida pelo Ministério da Educação? Uma espécie de ágora digital com todo mundo dando palpite na internet? O Conselho Nacional de Educação? O Congresso? O resultado da base curricular, na área da sociologia, ao menos até agora, mostrou apenas o perfeitamente previsível: que a definição dos conteúdos foi “capturada” por um grupo de opinião ideológica muito particular. E ameaça se tornar “opinião oficial” do governo brasileiro. O vezo ideológico se repete na área de história, apenas de maneira mais confusa. Depois de ler e reler os 56 itens sugeridos para os três anos do ensino médio, confesso que tudo me pareceu uma bricolagem de conteúdos “multiculturais”. Tentativa de compor algo como uma “história étnica”, livre de linhas de tempo, feita de distintas “temporalidades” africanas, ameríndias, europeias ou asiáticas. A ideia, aparentemente, é retirar da civilização “ocidental” ou “europeia” qualquer “primazia” no estudo da história. O estudo do império brasileiro teria o mesmo status que tem o estudo
Um golpe contra os pobres está em curso

Publicado originalmente na Revista Época A responsabilidade fiscal virou um saco de pancadas no Brasil atual. O Tribunal de Contas da União, por unanimidade, apontou graves irregularidades na gestão fiscal, em 2014, mas o governo diz que nada de mais aconteceu. Nada diferente do que fizeram “outros governos”. Diante de um gráfico, mostrando os pagamentos a descoberto, feito por bancos oficiais, a programas do governo, sem o devido repasse pelo Executivo, eminentes juristas e economistas “em defesa da democracia” dizem nada enxergar. Talvez seja a realidade que ande por baixo, no Brasil de hoje. Dias atrás li um artigo do professor da Universidade de São Paulo Vladimir Safatle, em um jornal paulista, reproduzindo a narrativa do “golpe”. Seu argumento era o seguinte: não há sentido em acusar a presidente em função das pedaladas fiscais, dado que, neste país, ninguém respeita um orçamento público. Orçamentos, no Brasil, dizia o professor, não passam de “mera carta de intenções”. E mais: que, se orçamentos valessem, “não sobrava de pé um só representante dos Poderes Executivos”. O texto poderia ser ofensivo a milhares de bons gestores públicos, Brasil afora, mas por certo ninguém deu bola. Desconheço se o referido professor algum dia analisou a execução orçamentária de um município ou Estado brasileiro. O curioso é que ele “sabe” que nenhum deles cumpre coisa nenhuma. Safatle segue a última moda da intelectualidade governista: se o PT, o melhor de todos os partidos, cometeu algum deslize, é óbvio que todos os outros já fizeram coisa muito pior. O partido pode até ter cometido algum pecado. Mas será sempre inocente, por definição, dado que ninguém é virtuoso o suficiente para julgá-lo. A lógica complementar, nesse argumento, é mais direta: que importância tem, afinal de contas, a ideia de responsabilidade fiscal? Se o governo ficou sem caixa, em algum momento de 2014, para honrar os repasses aos programas sociais (leia o quadro na página seguinte), não seria lógico mandar os bancos públicos pagarem a conta? Qual seria a alternativa? Deixar de pagar o Bolsa Família? O seguro-desemprego? As bolsas do Fies? Foi Lula que deu o tom desse argumento, logo no início do debate sobre as pedaladas fiscais. E ele tem sido seguido à risca pela intelligentsia oficial. Como de costume, a narrativa governista empurra alguns detalhes para debaixo do tapete. Um deles: a parte gorda das pedaladas fiscais foi feita para bancar os empréstimos a juros subsidiados, feitos pelo BNDES, dentro do PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, a empresas brasileiras. Lula poderia ter explicado que as pedaladas serviram ao “mercado”, primeiro, e em tese beneficiaram os mais pobres, depois. Sua base militante, por certo, entenderia. De qualquer modo, correto mesmo teria sido dizer que elas serviram ao governo, que driblou a contabilidade pública e ganhou as eleições em novembro de 2014. A “narrativa pela metade” de Lula explicita um paradoxo da democracia. Temas de gestão pública são, frequentemente, complexos, mas o discurso político requer simplificação. As pessoas dificilmente perderão um episódio de House of cards, ou uma boa cerveja, no fim do dia, tentando entender se as pedaladas foram uma “operação de crédito” disfarçada, e, portanto, vetada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou um simples “inadimplemento”, mera “tecnicalidade contábil”, como escutei de um intelectual amigo, dias atrás. Tudo funciona, no fim do dia, como um convite à irresponsabilidade, fiscal e hermenêutica. Talvez seja este “estado de irresponsabilidade” que democracias maduras aprendem a superar, com o tempo. Em maio de 2000, o PT votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Dois meses depois, o partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo, contra a Lei. A “narrativa” usada, à época, pelo partido, era de que a Lei faria mal aos trabalhadores. Tratava-se de uma imposição da “austeridade”, do FMI, do mercado financeiro, aquelas coisas de sempre. Cinco anos depois, já no governo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fazia autocrítica da posição do partido, dizendo que a responsabilidade fiscal havia se tornado “um valor da sociedade, de caráter suprapartidário e acima de questões pessoais”. A julgar pelo atual debate em torno do processo de impeachment, não poderia estar mais errado o simpático ex-ministro. Havia, é verdade, uma equipe econômica convencida do valor da responsabilidade fiscal, no início do primeiro governo Lula. Algo muito distante, porém, da ideia de um “valor compartilhado” em nossa cultura política. Isso não deveria ser assim, e quiçá a atual crise sirva para algum aprendizado. Responsabilidade fiscal é um valor estratégico, em primeiro lugar, para a estabilidade da economia. O descontrole das contas públicas está na raiz da inflação, e a inflação é o pior imposto que recai sobre os mais pobres. Quem vive de salário e não tem acesso a papéis que protegem o valor de seu dinheiro. A responsabilidade fiscal é, também, um valor essencial na democracia. Ao praticar uma pedalada fiscal, o governo está fraudando a vontade do legislador, no Congresso Nacional, a quem cabe aprovar a lei orçamentária. Aprovando um Orçamento deficitário, um Parlamento, por sua vez, pode estar enganando a sociedade, com a promessa de recursos inexistentes. Ou, ainda, comprometendo o futuro, com a contração de dívida pública. Há um problema de justiça entre gerações, aqui, que vai para além dos limites da democracia. Por fim, a responsabilidade fiscal é um valor fundamental para a simples sustentabilidade – leia-se, seriedade – na gestão de programas sociais. Observe-se o que ocorreu com o Fies. O investimento no programa saltou de R$ 7 bilhões para mais de R$ 13 bilhões, entre 2013 e 2014. A conta, devidamente “pedalada”, surgiu no exercício seguinte, quando o programa sofreu cortes severos. A irresponsabilidade fiscal é madrasta com os mais pobres, pelo simples fato de que são eles os usuários de programas públicos, escolas e hospitais públicos. A “esquerda” pode alimentar seus mitos, mas não é o “neoliberalismo” que sucateia os serviços públicos. É seu inverso: a cultura da irresponsabilidade fiscal, o estado gastador, frágil diante do corporativismo, tomado pela burocracia e pelo vezo patrimonialista que
É ético usar a sala de aula para “fazer a cabeça” dos nossos alunos?

Publicado orginalmente na Revista Época As aulas voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os exemplares e pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis as horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles livros. No fim, acho que entendi. O resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um claro viés ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica. Talvez livros assim existam, e gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo livro “manco”. E sempre para o mesmo lado. Com um adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no colégio. O viés politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda Star Wars: o lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão. No Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem mais sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história recente. No livro Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouca coisa se investigou”. Nossos alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e que o país assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”. Na página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na história brasileira, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, graças à “política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a economia crescer e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”. Lendo isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E fui em frente. Na leitura seguinte, do livro História Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de gerenciamento do tráfico e do crime organizado”, acrescentam os autores. Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”. O livro termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que talvez os anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”. O livro História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola (2001). FHC manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários países africanos, asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os especuladores; Lula beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma bandeira vermelha. Mas me contive. O padrão “João Santana” se repete no livro História para o ensino médio, da Atual Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”. Alguma menção ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal? Não. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”. No livro
Faz sentido ser apaixonado por um partido político?

Publicado originalmente na Revista Época O apaixonado é frequentemente um tolo, ensinou Roland Barthes. Barthes se referia à paixão amorosa. A paixão louca dos amantes, dos namorados. Dos amores eternos e dos impossíveis, desses que a gente vê nos filmes. Não faço ideia do que Barthes diria de um sujeito apaixonado por um partido político. Ou pior: por um político de carne e osso. Um prefeito, governador, presidente ou ex-Presidente. De minha parte, teria um bom nome a dar a esse sujeito, que prefiro não usar aqui. Digo apenas que acho o passionalismo partidário um tanto ridículo, ainda que eficiente para quem dele se aproveita para chegar – ou se manter – no poder. Sobre isso, tive uma experiência interessante, dias atrás. Escrevi um artigo a respeito das investigações sobre Lula. Havia me impressionado a reação apaixonada e violenta da entourage lulista contra as investigações do Ministério Público e da Política Federal, e resolvi escrever sobre o assunto. Meu ponto era apenas dizer que o país tem instituições, que é importante que elas possam agir com serenidade, e que Lula deve der investigado como o seria qualquer outro brasileiro. Que isto era importante, no caso de Lula, precisamente por ele ser, como costumam frisar seus apoiadores, o “mais importante líder político deste país”. Recebi umas 400 mensagens. 30% delas de apoiadores do ex-presidente. 100% furiosas. Não dá pra citar todos os argumentos – diria “fragmentos”, num tom barthesiano – mas a coisa vai por aí: Lula é inocente/Não deve ser investigado/o Ministério Público, Polícia Federal e judiciário são instituições de araque/outros partidos também roubam/a mídia é de direita/querem dar um golpe como fizeram com Jango e JK. Me surpreendeu a inclusão de “JK”. Na faculdade aprendi que o JK era de “direita”. Talvez fosse para dar “amplitude” ao argumento. Mas esse não é o ponto. Gostei das mensagens: pude ampliar minha coleção de fraseologia jus esperniandi. Uma fonte inesgotável de bolinhas de sabão ideológicas, sempre com o mesmo núcleo: a mídia, o golpe, a direita. O que realmente me surpreendeu foi não receber sequer uma única mensagem dizendo: “podem investigar, nós confiamos na honestidade do Lula”. Ou, algo mais sofisticado: “é bom investigar. Lula é nosso líder (entre outras razões) porque é honesto. Se ele não for, ao menos saberemos e poderemos rever algumas posições”. Mas nada. Nem uma mísera mensagem nessa direção. O intrigante seria esta nossa atitude em qualquer tema relevante da nossa vida. A papinha do bebê, por exemplo. Imaginem a mãe dizendo: “ok, há suspeitas de que a papinha que usamos é tóxica, mas não quero saber. Conversa da concorrência, vamos continuar comprando”. Pense. Qualquer assunto: a ração do gato, o colégio das crianças, a erva do chimarrão, a marca do silicone. Você nunca vai escutar a seguinte frase: “vou colocar esse silicone amanhã. A Anvisa diz que a marca é suspeita, mas não quero saber. Confirmei a cirurgia”. A pergunta a fazer é: se não agimos assim com as nossas coisas, então por que tratamos desse jeito nossas escolhas políticas? Por que, diante de informações que não nos agradam, tapamos os ouvidos e cantarolamos, como um criança mimada? Por que, de antemão, em vez de ponderar os fatos, resolvemos que a ração do gatinho é ótima, ainda que denunciada pelo conselho de veterinária? Em vez de prestarmos atenção às investigações do Ministério Público, preferimos entrar na hashtag “lulaeuconfio” e ficar gritando “é tudo uma conspiração da direita!” A questão mais geral é: há alguma “racionalidade” na paixão política? Arrisco dizer que sim. A explicação vai na linha do que o economista americano Anthony Downs chamou de “ignorância racional” do eleitor. A tese diz o seguinte: um vez que o voto de cada indivíduo decide quase nada, numa eleição, não é lógico investir muito tempo buscando – seriamente – informação sobre candidatos, políticas públicas, etc. A alienação não seria uma decisão irracional. Mais: quando o sujeito compra um celular desta ou daquela marca, ele toma 100% da decisão e arca com 100% do custo da sua escolha. Se o treco não funcionar, é ele quem arca com as consequências. Na política é diferente. Se ele escolher errado, todos vão pagar a conta. O custo é socializado, mas ele pode privatizar o benefício de manter sua “coerência”. Inventa uma explicação qualquer e toca a vida pra frente. Tudo isso funciona como um convite à irresponsabilidade. Não deveria ser assim, mas acabamos lidando com a política como lidamos com o futebol. Nos entregamos, xingamos a mãe do juiz, dizemos que está tudo arranjado. Nós sabemos de tudo. Inclusive que “não vai dar nada”, se tudo que dissermos não passar de uma grande besteira. A paixão política é assim, uma forma “saborosa” de alienação. Antes que alguém tenha um chilique, digo que isso ocorre, em maior ou menor grau, com todos os partidos. Democratas, PSDB, PMDB. Até pelo recém-criado “partido da mulher brasileira” deve ter um ou outro apaixonado. Mas o lulo-petismo, vamos convir, é, de longe, o caso mais agudo. Se pudesse sugerir alguma coisa, recomendaria que as pessoas fossem um pouco mais criativas: que se apaixonem por uma grande ideia. A liberdade, por exemplo. Ou a justiça, os direitos humanos. A livre escolha educacional (uma das minhas, reconheço). A filantropia, quem sabe. Mas sempre com um chá de camomila por perto. A política pode ser feita com um sentido de missão e um senso de responsabilidade, como sugeriu Max Weber. O primeiro serve como ímpeto, o segundo como comedimento. Não é uma equação fácil, nestes tempos nervosos, mas é a melhor para a democracia, além de preservar velhas e boas amizades. Daí meu gosto todo especial pela frase de Camus: “se houvesse um partido daqueles que não sabem se têm certeza, eu faria parte dele”.
Fascistas são os outros

Publicado originalmente na Revista Época Dias atrás, o cartunista Chico Caruso, de O Globo, publicou uma charge mostrando um pistoleiro entrando em um saloon, destes de filme de cowboy. Lá de dentro vem a pergunta: bandido ou mocinho? “Pior”, alguém responde: “advogado.” Achei boa a brincadeira, ainda que meio comum. Piada de advogado tem às pencas, por aí. Deve ser a profissão mais zoada do planeta. Perde para os políticos, é verdade, e mais recentemente para os padres e pastores. Naquele dia, o Chico resolveu brincar com os advogados. E foi ecumênico. No Saloon havia políticos para todos os gostos. Do Lula ao Fernando Henrique. São os tempos. No Brasil de hoje, humor tem que ser pluralista. Mas vamos lá: bastou a charge do Chico pra um punhado de blogs “progressistas” esbravejarem que a charge do Chico era – pasmem – fascista. Uma charge fascista! Se a revista Charlie Hebdo fosse brasileira, pensei cá comigo, estava liquidada na primeira piada. Logo me e dei conta que, na cabeça dos blogueiros governistas, os advogados que defendem políticos e empresários metidos na Operação Lava Jato são uma espécie de guardiões da virtude. O bastião de resistência contra o grande golpe orquestrado pelo juiz Sérgio Moro e sua turma, lá de Curitiba. Não é sensacional? O ponto que me chamou a atenção foi a facilidade com que anda se usando, aqui nos trópicos, a palavra “fascista”. Há variações, é verdade. Na reta final da última campanha, Lula comparou Aécio Neves aos “nazistas”. Das profundezas da estatística e de alguma discussão sociológica, havia-se sugerido de que a dependência do bolsa família favorecia o voto governista. Alguém teria, não se sabe de que jeito, dito um absurdo desses… Pois bastou para colar uma suástica na testa do candidato da oposição. Na blogosfera ideológica, fascista virou feijão com arroz. Em geral, a palavrinha é usada como um “dedo na cara”. Qualquer derrapada do politicamente correto, não dá outra. O sujeito toma a palavrinha na testa. Usuário frequente da estratégia é o blogueiro Leonardo Sakamoto. Dia desses, ele denunciou como fascista a plantação de flores e cactos embaixo dos viadutos. Elas atrapalham as “pessoas em situação de rua” que desejam dormir por ali, segundo o blogueiro. As prefeituras andam forradas de fascistas, não há dúvidas. A palavrinha, faça-se justiça, tem saído do mundo cão da blogosfera para áreas mais sofisticadas. Em uma palestra para estudantes de história, em Uberlândia, o historiador Leandro Karnal chamou todos os leitores da Veja de “absolutamente fascistas”. Achei curioso o “absolutamente”. Fiquei imaginando o que seria um leitor “relativamente” fascista. O Karnal acrescentou que o referido leitor, além de fascista, é “tapado em qualquer sentido”. Não acho que Karnal pense isto, de verdade. Acho que apenas quis fazer média com a plateia. E parece ter conseguido. Outro que escorregou na palavrinha foi meu amigo Luiz Felipe Pondé. Em um artigo recente, chamou de fascista a turma politicamente correta que tenta impedir que se acenda um charuto cubano em um barzinho. Nessa aí, até eu dancei. Não tenho nada contra quem fuma um Cohiba, mas não vou gostar se o sujeito vier baforar um do meu lado. Talvez eu mesmo seja um fascista, tenho que ver isso melhor. O fascismo foi uma tragédia histórica bem conhecida. O genocídio na Etiópia, a deportação dos judeus italianos aos campos de concentração, o modelo síntese do estado totalitário. No Brasil, virou um xingamento político. Um sintoma a mais da banalização de nosso debate público, embalado na língua suja das redes sociais. Ninguém foi mais longe no seu uso do que a professora Márcia Tiburi. Seu livro Como conversar com um fascista leva ao estado da arte o estilo “dedo na cara”. Tiburi defende o amor e o diálogo. Sustenta que nossa atitude com o “outro” deveria ser “compreendê-lo, acolhê-lo, amá-lo”. Curiosamente, escreve um livro de 196 páginas chamando o “outro” de fascista. Suspeito que faz isso por saber que não há mesmo muita chance do “outro” comprar o seu livro. Dito tudo isso, não nego que haja muita gente por aí com jeito de fascista. Tempos atrás, circulou nas redes sociais o vídeo de um professor da UFRJ, chamado Mauro Iasi, sugerindo ao proletariado carioca fuzilar a “direita” e os “conservadores”. “Conservadores”, imagino, são o “outro” tiburiano do Professor Iasi, e o máximo de violência revolucionária que consigo imaginar, observando seu discurso sem graça, é uma guerra de travesseiros. A verdade é que nem mesmo o professor Iasi é um fascista. É apenas um falador de besteiras escondido atrás de um emprego público, e da nossa complacência. Muito parecido, diga-se de passagem, com a legião de pregadores de ódio escondidos no anonimato do mundo digital. Ódio há para todos os gostos, mas cada um de seus apóstolos parece concordar com a máxima sartreana: o inferno – no caso, os fascistas – são os outros. Retratos de um tempo de banalidade intelectual da qual só o humor pode nos salvar. Por isso, viva o Chico Caruso!
Que diabos significa o sucesso de Donald Trump?

Publicado originalmente na Revista Época As primárias americanas começam em fevereiro, em Iowa, mas a campanha já tem sua primeira imagem icônica: Rose Hamid, com seu véu muçulmano, sendo retirada do comício de Donald Trump na Universidade de Winthrop, na Carolina do Sul. Rose é militante do Partido Democrata e foi fazer um happening no comício de Trump. Na sua roupa, trazia a frase: “salam, eu venho em paz”. Rose conta que foi bem recebida, comeu pipoca com o pessoal da arquibancada, tudo numa boa. Até que Trump começou sua arenga vinculando refugiados sírios a militantes do Estado Islâmico. Ela se levantou, alguém falou em “bomba”, a multidão começou a gritar e a polícia entrou em ação. No outro dia, ela aparecia tranquila, dando uma entrevista na CNN, como uma efêmera celebridade. Fica a pergunta: o episódio tem alguma gravidade? ou tudo não passa de um grande espetáculo? Trump se apresenta como o americano menos racista de todos, mas tem colocado lenha na fogueira do preconceito anti-islâmico, nos Estados Unidos. Ninguém leva muito a sério, mas ele propôs fechar, por uns tempos, o país aos muçulmanos, até que se entenda melhor “o que está acontecendo”. Foi mais adiante: propôs expulsar do país todos os imigrantes ilegais (algo como 11 milhões de pessoas) e depois trazer de volta os “caras legais”. A proposta mais bizarra, e a de maior sucesso, até agora, é construir o grande muro na fronteira com o México. Karl Rowe, estrategista republicano da era Bush, fez troça, perguntando se Trump sabia que a fronteira tinha 1.254 milhas, e se tinha ideia de quanto essa brincadeira iria custar. Trump respondeu chamando Rowe de “perdedor” e dizendo “não me importo, os mexicanos é que vão pagar”. Bizarrices à parte, parece não haver dúvidas de que ele conseguiu transformar em simpatia eleitoral o desconforto contemporâneo com a explosão migratória. A lenda popular que associa a perda de empregos, a mutação de valores e a violência com a abertura comercial e os “excessos” do multiculturalismo. Vai aí um paradoxo: Trump, o empreendedor global, ícone americano do livre mercado, fatura eleitoralmente revivendo um nacionalismo caipira. Do tipo que reclama da invasão dos carros japoneses e quinquilharias chinesas. Diz que tudo anda errado na América. Que o país virou uma terra de dumping, um “tigre de papel”, e por aí vai. Numa síntese: protecionismo econômico com um toque de xenofobia. Nada que não pareça em sintonia com a onda contemporânea de partidos e movimentos ultraconservadores, na Europa, como a Frente Nacional, na França; o partido Lei e Justiça, na Polônia, ou o Partido do Povo Suíço. Isso tem lhe rendido apoios desconfortáveis. Em Iowa, uma coalisão de “nacionalistas brancos” trabalha duro para Trump. Sua última iniciativa foi financiar trezentas mil mensagens telefônicas em que se pode ouvir Jared Taylor, editor da revista American renaissance, dizendo “nós não precisamos de muçulmanos. Precisamos de gente branca esperta e bem educada, capaz de assimilar nossa cultura”. No Brasil, uma frase dessas configuraria crime inafiançável. Nos Estados Unidos, seu autor está protegido pela Primeira Emenda à Constituição. Trump rejeita o apelo racista, mas diz entender a raiva que o motiva. Aqui há um ponto importante: os EUA vivem uma transição acelerada de uma sociedade relativamente homogênea para uma sociedade multirracial e multicultural. 2011 foi o primeiro ano da história americana em que o número de bebês brancos não hispânicos foi superado pelos nascimentos “não brancos”. Em menos de três décadas, os brancos não hispânicos serão minoria nos Estados Unidos. Trump parece expressar o mal estar da transição. Mas as razões para o sucesso de Trump vão muito além do tema da imigração. Ele encarna à perfeição um tipo popular na cultura americana: o self made man, espécie de caubói contemporâneo, que se fez sozinho, não depende de ninguém e diz o que pensa. “Eu financio minha própria campanha”, repete Trump, à exaustão. “Vejam a campanha do Jeb Bush”, faz graça, “torrou 68 milhões e não consegue fazer um comício!”. Os comícios de Trump funcionam como um talk show, quando não uma comédia stand-up. Ed Pilkington, analista do The Guardian, bem observou que, antes de bombardear seus ouvintes com política, Trump os faz rir. E estamos falando de comícios com milhares de pessoas, em um ritmo alucinante. Nada parecido acontece com os demais pré-candidatos republicanos. Alguns dizem que é pelo espetáculo. As pessoas vão lá comer pipoca e se divertir, mas nada garante que terão paciência para votar nas primárias. É o que se saberá em fevereiro. O talk show de Trump é como um programa de domingo, na TV aberta. Uma sequência de gracinhas e simplificações. A mensagem básica é: tudo vai mal, nos Estados Unidos, porque colocamos as pessoas erradas para governar. Quando eu estiver lá, tudo vai mudar. Em segundo lugar, a narrativa excludente. O discurso fácil no “nós contra eles”. Em algum lugar que não me lembro onde, algo na linha do “nunca antes neste país”. A dicotomia de Trump não é entre ricos e pobres, mas entre os “espertos” e os “estúpidos”. Os estúpidos são todos os “outros”, os adversários, em especial Obama e Hilary Clinton. Estes dois, além de tudo, não gostam muito de trabalhar. Hillary faz um comício e desaparece por uma semana. Seu oponente democrata, Bernie Sanders, quer aumentar os impostos para 90%. “Alguém aqui está disposto a pagar 90% em impostos?”, pergunta Trump, e recebe uma tremenda vaia como resposta. Alguns identificam em Trump apenas um fenômeno do moderno marketing político, mas intuo que estejam errados. Por uma razão: ele não parece ser um fenômeno reproduzível. Seu maior trunfo é precisamente resgatar uma certa autenticidade perdida no teatro da política profissional americana. Trump orgulha-se de falar sem telepronter, e de fato parece dizer exatamente o que lhe vem à cabeça. Daí a gafe, a piada por vezes grotesca, o show politicamente incorreto que encanta boa parte da classe média eleitora do Partido Republicano. E a mídia: Trump obteve, até aqui, perto de 70% da cobertura das primárias republicanas.
Com nova lei do direito de resposta, Estado faz papel de editor

O Congresso Nacional errou na dose, ao regulamentar o chamado direito de resposta. Talvez seja reflexo do clima belicoso, que tomou conta da vida pública brasileira, e que não raras vezes tem oposto políticos a órgãos de imprensa. Isto deveria ser visto como normal, em uma democracia. Talvez seja normal exagerar um pouco, ao se interpretar um dispositivo constitucional. Por isso a importância em se debater o tema, com equilíbrio e isenção. O texto constitucional é econômico – ao definir o direito de resposta. Apenas estabelece que ele será “proporcional ao agravo”. A partir daí, abre-se a questão: qual a amplitude que se deve dar a esta prerrogativa? Há um longo debate sobre isto, no plano internacional. Duas vertentes predominam: a primeira, mais restrita, enfatiza o direito em seu aspecto “corretivo”. O veículo publica uma informação equivocada, por inépcia ou má fé, e o ofendido tem direito a dar sua versão dos fatos. A segunda, mais ampla, diz que o cidadão tem direito a contraditar ideias e opiniões que julgar ofensivas a sua pessoa. O ofendido passa a ocupar, com o amparo do Estado, um espécie de editoria paralela do veículo de comunicação. Trata-se de uma leitura muito particular do conceito de democracia, nos meios de comunicação. Uma vertente pouco adotada, internacionalmente. A lei aprovada pelo Congresso Nacional foi mais adiante. Criou uma interpretação amplíssima do direito de resposta. Ela diz, basicamente, que qualquer pessoa ou empresa que se sentir ofendida em sua “honra, intimidade, reputação, conceito, nome, marca ou imagem” por alguma “matéria, nota ou reportagem”, poderá requerer direito de resposta ao veículo de comunicação. Vamos imaginar: algum colunista de jornal, blogueiro, ou mesmo comentarista de uma rádio comunitária faz um comentário duro sobre a tragédia de Mariana. A Vale do Rio Doce, sentindo-se prejudicada, requer direito de resposta. Não importa que os fatos apresentados sejam falsos ou verdadeiros. O departamento jurídico da empresa aciona o veículo e pede a resposta, com espaço idêntico ao da matéria original. Se o espaço não for dado em até sete dias, a empresa vai à justiça. O juiz, a seu critério, e em rito sumário, decide a questão. Há um paradoxo aí. Por um lado, a democracia supõe liberdade de pensamento, e logo de imprensa. E é da sua natureza produzir opinião, refletir, criticar e ser objeto de crítica. Por outro, é também um direito do cidadão defender sua honra e expor sua opinião. No limite, temos um paradoxo sem solução. Se, para cada crítica, facultarmos ao criticado, com o amparo do Estado, intervir no veículo de comunicação, restaria, ao cabo, muito pouco do que hoje entendemos como liberdade de imprensa. Consagraríamos a ideia do Estado, via poder judiciário, como grande tutor do livre pensamento e do pluralismo social. Do que pode ou não ser dito, do que merece ou não ser contraditado. A Suprema Corte Americana, ainda nos anos 70, tomou uma posição bastante clara sobre este paradoxo. Sua decisão é uma verdadeira aula sobre o sentido mais amplo da liberdade de imprensa. A Corte simplesmente declarou inconstitucional qualquer legislação sobre “direito de resposta”. O argumento é de que, ao determinar que isto ou aquilo deva ser publicado em um jornal, o Estado está, de fato, fazendo as vezes de editor do jornal. Está forçando o veículo a publicar algo que, de outro modo, ele não o faria. Mais: está impondo uma pena ao veículo, uma vez que a edição forçada gera custos. Por fim, está indiretamente inibindo a livre cobertura de temas potencialmente controversos. Os Estados Unidos, por óbvio, diferem do Brasil visto que, por lá, o direito de resposta não está inscrito na Constituição. No Brasil está, mas intuo que nossos congressistas não regularam a matéria com o necessário senso de equilíbrio. É compreensível. O Congresso é formado por políticos, e políticos são usuais alvos da crítica da imprensa. E todos concordamos que isto é bom para nossa democracia. Penso que a melhor maneira de regulamentar o direito de resposta, no Brasil, seria seguir o modelo sugerido pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Em síntese, a recomendação europeia diz que direito de resposta deve se ater à correção dos fatos tidos como equivocados. Nunca à opinião. É certo que a fronteira que separa fatos de opiniões nem sempre é clara. Mas ao menos tem-se um critério a ser seguido pelo judiciário: o Estado não interferirá no direito à opinião, por parte do jornalista, comentarista, blogueiro ou articulista. É esta também, em linhas gerais, a posição que as Nações Unidas tem tomado, sobre o tema, e é a que me parece mais sensata, para o caso Brasileiro. Para finalizar, uma reflexão: vivemos a era do cidadão-intelectual. Milhões de pessoas, na blogosfera, nas redes sociais, expressam suas opiniões, todos os dias, freneticamente, sobre qualquer tema da nossa vida pública. De certo modo, cada cidadão torna-se, cada vez mais, um “veículo de comunicação social”. Basta postar vídeos, no Youtube, ter um site ou blog, ou manter uma conta no Facebook. O universo da comunicação é, por definição, multifacetado e pluralista. E surpreendente: um só blogueiro ou twitteiro pode alcançar mais influência do que a soma de dezenas de veículos de mídia tradicional. A parte isto, boa parte do que lemos é escutamos é produzido no exterior. Há certa ingenuidade em imaginar que este universo caótico será regulado pelo Estado. Intuo que seria melhor, para nossa democracia, deixar que à própria sociedade a tarefa de filtrar o que é boa ou má informação. A cada indivíduo, em última instância. Judicializar o conflito de opiniões e visões de mundo não me parece uma boa ideia. Isto sem prejuízo de que, a qualquer momento, o cidadão possa recorrer à justiça quando se sentir ofendido. Como já ocorre hoje. A imprensa livre é um das pedras angulares da democracia, e assim tem sido no Brasil, nestas mais de três décadas, deste transição do regime autoritário. E é preciso reconhecer que nossa imprensa, com erros e acertos, tem cumprido muito bem o seu papel.
Elie Horn e sua pequena revolução

Não conheço Elie Horn. Mas li muito sobre seu gesto, de doar 60% de sua fortuna para a filantropia. Um ponto fora da curva neste País mediano. Uma notícia diferente, neste País de notícias parecidas. Por isso escrevo sobre ele. Ele conta que a mulher, de inicio, não gostou muito da ideia. Talvez pensasse que era um desperdício. Que ele merecia desfrutar da riqueza feita nestas cinco décadas, desde a criação da Cyrela. E que no fim era melhor deixar para os filhos, como a maioria costuma fazer. Horn manteve sua posição. Os filhos tiveram boa formação e já andavam no comando da empresa. Qual a vantagem de herdar meio bilhão a mais? A pergunta é difícil de responder. Há quem sinta um secreto prazer de dispor de uma boa conta bancária. Dessas com muito, mais muito mais do que se pode gastar, ao longo de uma vida. Outros concluem que se pode fazer coisa melhor. Ajudar a erradicar uma doença endêmica, combater a subnutrição, construir escolas, coisas assim. É um pouco abstrato, eu sei, mas foi por aí a escolha de Elie Horn. E por isso ele foi o primeiro brasileiro a assinar a The Giving Pledge. The Giving Pledge é uma campanha lançada em 2010 por Bill Gates e Warren Buffet. É aberta a qualquer pessoa. Basta ter um bilhão de dólares e assinar uma carta prometendo doar metade – ou mais – para projetos humanitários. 138 pessoas, mundo afora, já aderiram. O Brasil tem 54 bilionários, mas nenhum ainda tinha tomado a coragem. Horn justifica sua decisão com base na religião. É um judeu não apenas de tradição, mas de fé. Tudo ótimo, mas minha tese a seu respeito é um pouco distinta. Vejo Elie Horn como representante de uma nova geração de mecenas que reconhece a grande transição do nosso tempo, de um mundo de escassez para um mundo de abundância. E intui que não faz sentido deixar tanta gente pelo caminho. É possível que Horn não tenha lido o último e brilhante livro de Peter Singer, The most good you can do, ainda sem tradução no Brasil, mas suas ideias parecem perfeitamente coincidentes. Singer não é religioso. É um filósofo racionalista e pragmático. Denominou sua tese de “altruísmo efetivo” e hoje é um dos pensadores mais influentes da filantropia global. Singer e Horn parecem coincidir em algumas ideias bastante simples. A primeira diz que você deve tentar fazer o maior bem que puder, ao longo da vida. O bem para “estrangeiros”, para gente que você não conhece. Vai aí o segredo de uma vida ética. Singer dá o exemplo de Henry Spira, pioneiro dos direitos dos animais, que lhe disse, antes de morrer: “na hora final, quero saber que deixei este mundo melhor para os outros”. Horn escreveu quase o mesmo, quando assinou a sua carta: “a única coisa que levamos dessa vida”, disse ele, “são as boas sementes que plantamos neste mundo”. Surge aqui a segunda ideia: fazer o bem para os outros é um jogo de ganha-ganha. Faz bem para os outros e para você também. Altruísmo e egoísmo não estão em contradição. Singer conta que Hobbes, o grande filósofo do egoísmo racional, certo dia foi cobrado por dar uma esmola a um mendigo, nas ruas de Londres do século XVII. Retrucou dizendo que isto melhorava o seu estado de espírito, e era perfeitamente coerente com o seu interesse racional. Há uma tonelada de pesquisas, mundo afora, mostrando que o dinheiro, a partir de uma certa quantidade, produz quase nenhuma felicidade. Angus Deaton e Daniel Kahneman, dois vencedores do prêmio nobel, fizeram uma pesquisa concluindo que são imperceptíveis variações positivas de felicidade a partir de uma renda anual de 75 mil dólares. Uma pesquisa recente da Gallup, em 136 países, perguntou às pessoas: você fez alguma doação à filantropia no mês passado? Em 122 países, era positiva a correlação entre quem respondeu “sim” e quem se dizia significativamente mais feliz. Quem sabe as pessoas doem mais por que são mais felizes. Quem sabe felicidade e generosidade se retroalimentem. Cada um pode avaliar. No caso de Horn, a escolha parece evidente: o sujeito tem 71 anos e um bilhão de dólares. O que o faria mais feliz: usar 60% desse valor para ajudar milhares, quiçá milhões de pessoas, ou morrer, daqui a algum tempo, com essa dinheirama toda na conta? A conclusão é tão evidente que surpreende não seja seguida por mais pessoas, e não somente por bilionários. A terceira ideia diz que, para fazer o melhor pelos outros, é bom ser um tipo bem sucedido. Você pode imaginar que Deus ou a natureza lhe deram certos talentos. Descubra quais são e faça o melhor possível. Dá na mesma substituir “talentos” por “vocação”. Horn, por exemplo, descobriu que não era um intelectual. Seu negócio não era escrever ou fazer palestras, mas comprar terrenos e construir edifícios. Isso e quatorze horas de trabalho por dia fizeram com que, neste final de 2015, ele pudesse assinar a The Giving Pledge. Sua decisão veio junto com o anúncio de Mark Zuckerberg doará 99% de sua fortuna. O mesmo que já fizeram Warren Buffet e Larry Ellison, criador da Oracle. O único detalhe é que Zuckerberg tem apenas 31 anos. Sua estratégia é doar um bilhão por ano, através de uma empresa criada apenas para gerenciar o dinheiro e escolher bons projetos. Vai ai a quarta ideia, que diz respeito à eficiência. Não basta doar, é preciso que o modelo de doação seja sustentável ao longo do tempo. O segredo é a instituição dos chamados endowments. Nenhum bilionário que se preze sairia simplesmente distribuindo o dinheiro entre milhares de projetos. A estratégia é formar um fundo financeiro, sob gestão profissional, e converter os resultados obtidos em iniciativas sociais. É assim que funciona a Gates Foundation, o Carnegie Endowment e outras milhares de fundações americanas. O ponto é que há um novo conceito em gestação: a riqueza fluída. O jogo é ganhar e compartilhar, como exercício de liberdade
As lições do rinoceronte quindim

Em Caçadas de Pedrinho, Monteiro Lobato conta a história do Rinoceronte Quindim. O bicho fugiu do circo e foi se esconder no Sítio do Pica Pau Amarelo. Avisado, o governo não perdeu tempo: criou o Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte. Com tudo a que tem direito, um chefe, doze assessores, uma boa datilógrafa. O maior desafio do departamento era justamente não encontrar o Quindim. Se encontrasse, ele perderia a função, e sumiriam os empregos do pessoal. Exagerou um pouco, nosso grande escritor. O departamento podia até pegar o rinoceronte, e continuar funcionando. Bastava inventar que tinha muitos bichos fugitivos por aí. Fazer uns protestos e explicar que seria uma calamidade fechar a repartição. A sátira de Lobato deveria ser leitura obrigatória pra quem ocupa função pública, no Rio Grande do Sul. Ela trata de um tipo de irracionalidade comum no setor público. Do Estado que só cresce, nunca diminui. Dos orgãos públicos que são criados, ao longo do tempo, e nunca são repensados. Mesmo que o mundo tenha mudado, a tecnologia tenha avançado e todos os rinocerontes já tenham sido caçados. Imagine uma empresa gráfica criada no início dos anos 70, no auge do milagre Brasileiro. Seu objetivo era executar serviços gráficos. Diário Oficial do Estado, Diário da Assembleia, Diário da Justiça, Diário da Indústria, etc. Presumivelmente, à época, o mercado gráfico era menor, com menos tecnologia, e por óbvio sem a chance de fazer publicações digitais. Quatro décadas depois, os poderes são independentes, com suas próprias publicações. Quase tudo pode ser publicado na internet e contratado a melhor preço no mercado. Um caso interessante é o das televisões educativas. Não me refiro a esta ou aquela emissora estatal. A regra vale para todas. O sistema foi regulado pela Lei 239/67, com a finalidade de oferecer “programas educativos, mediante a transmissão de cursos, palestras, conferências e debates”. Viviamos em pleno regime militar, o País apresentava um severo deficit de acesso à educação básica e, por óbvio, não havia nada parecido com a internet. Passado quase meio século, qualquer indivíduo tem acesso gratuito a uma quantidade de cursos, palestras e debates que não poderia acompanhar, mesmo que vivesse mil anos. Produções feitas em Porto Alegre ou na Província do Quebec, não importa. Informação instantânea e abundante, feita pela comunidade, pelos indivíduos, universidades e pelo mercado. Mas continuamos achando essencial que o Estado faça a mesma coisa, com nossos impostos. Nosso Estado tem uma máquina pública grande e ineficiente. Ela custa, todos os meses, R$ 400 milhões a mais do que o governo arrecada. É ilusão imaginar que haverá alguma solução mágica para isso. O governo tem, de um modo bastante simples, duas opções. A primeira é manter a máquina do jeito que está, e aumentar a carga tributária. Passar a conta ao contribuinte. A segunda alternativa é passar à limpo a estrutura do Estado. Fazer o que qualquer pessoa faz, quando anda gastando mais do que recebe. Trata-se de uma solução que traz alguns custos de curto prazo, e benefícios difusos, ao longo do tempo. Para esta parte da reforma, sugiro um roteiro para avaliar cada um dos serviços prestados pelo Estado, suas empresas, autarquias, fundações, institutos, departamentos, parques, próprios, legislações e programas. O roteiro é feito de três perguntas simples: é função do Estado prover este serviço? Se a resposta for sim, parte-se para a segunda questão: trata-se de uma prioridade? Prioridade em um estado agudamente deficitário, com virtualmente nenhuma capacidade de investimento? Se a resposta for um novo sim, parte-se para a terceira pergunta: o serviço deve ser gerido diretamente pela máquina pública? Ele não pode ser contratado, a menor custo, no setor privado? Ou executado em parceria, via contratos de gestão, com o terceiro setor? Vai por ai o caminho da reforma do Estado. Ela é boa para o cidadão, que voltará a ter um estado com capacidade de investir. É boa para os funcionários, que cumprirão funções estratégicas em um Estado eficiente. E será o caminho de um governador estadista, disposto a inaugurar o futuro, ao invés de fazer o mesmo de sempre. (Texto originalmente publicado na Revista Voto)
Da agenda fiscal e reforma estrutural

A crise fiscal tem sido um tema recorrente, no Rio Grande do Sul. Salta aos olhos a informação de que, nos últimos quinze anos, apenas entre 2007 e 2009 o Governo alcançou resultado orçamentário positivo. A boa notícia é que o Governo do Estado vem apresentando clara disposição de enfrentar o problema. O projeto da LDO, recentemente aprovado na Assembleia Legislativa aponta nesta direção. O ponto é que é preciso dar uma passo adiante. Para equacionar seu problema de longo prazo, o Estado precisa migrar da pauta fiscal para a reforma estrutural do setor público. Seja por conservadorismo, seja pelo acirrado conflito político ou pela força das corporações, o Estado tem falhado nisso. É hora de enfrentar o problema. A modernização supõe repensar a ampla malha de órgãos públicos, departamentos, equipamentos, fundações, autarquias e empresas estatais, assim como eventuais distorções e privilégios existentes na máquina pública. Institutos que, se fizeram sentido no passado, eventualmente hoje não o façam mais. Bom exemplo disso é o projeto do Governo extinguindo as chamadas “licenças prêmio”, na máquina do Estado. Ao passar a limpo a estrutura do Estado, cabe ao governo fazer algumas perguntas muito simples: este instituto ou órgão público ainda corresponde a sua função? Os contribuintes escolheriam continuar pagando por eles? Há uma maneira mais eficiente de prestar este ou aquele serviço? Para citar um exemplo, o Estado conta, desde 2008, com uma legislação que faculta ao Estado a contratualização da prestação de serviços públicos com organizações privadas, sem fins lucrativos, qualificadas como organizações da sociedade civil de interesse público. Trata-se de uma legislação moderna e devidamente regulamentada. Pronta para ser utilizada pelo Estado. Legislações similares tem produzido excelentes resultados, seja na União ou em diversos estados. Os exemplos vão desde a gestão do Impa, nosso notório Instituto de Matemática Pura e Aplicada, no Rio de Janeiro, passando pelo hospital Sara Kubischeck, em Brasília, até a rede de organizações sociais da saúde, os hospitais OS, do Estado de São Paulo. Ao contrário do que muitas vezes se imagina, trata-se de um movimento a favor, e não contra, a profissionalização e valorização do quadro de funcionários do Estado. Eles serão convidados a assumir novas responsabilidades, de natureza estratégica, na definição de metas e controle de resultados, ao invés de simplesmente gerir e prestar serviços em um modelo burocrático. Por que o Rio Grande tem ficado para trás, neste processo? No fundo, trata-se de uma escolha. Continuar insistindo em velhos preconceitos, ou apostar na inovação. Lembrando que, no setor público, frequentemente, onde há maior preconceito há, não por coincidência, maior potencial de inovação.