Reforma administrativa ou reforma do Estado?

Acho ótimo que o governo e o Congresso avancem na pauta da reforma administrativa. Nosso setor público quebrou. O governo deve investir 0,3% do PIB no ano que vem, e as despesas obrigatórias engessam 94% do Orçamento federal. E há um problema de qualidade nos serviços públicos, cuja conta é paga pelos mais pobres. O Brasil andou na contramão nos anos 1980. Enquanto o mundo tratava de ajustar o Estado à globalização e modernizar a gestão pública, o Brasil apostou em um super Estado burocrático na Constituição de 1988. Oferecemos estabilidade rígida no emprego para os servidores, misturamos carreiras de Estado com carreiras comuns do serviço público, criamos a lei das licitações, engessamos os orçamentos e eliminamos qualquer espaço para a meritocracia na área pública. Criamos um Estado competente para administrar amplos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o BPC, mas cronicamente incapaz de gerenciar uma escola ou um posto de saúde. O resultado é conhecido. A classe média tratou de fugir dos serviços públicos e migrou para o setor privado. Escola particular, saúde e previdência privadas. Os mais pobres ficaram reféns do Estado e sua tragédia. Nas filas do SUS, na escola que não funciona. E não raro nas unidades socioeducativas, quando tudo dá errado. O Estado, que era para produzir equidade, produziu o oposto: aumentou ainda mais o fosso da nossa desigualdade. Não porque “concentrou renda”, como anda na moda discursar, mas pela incapacidade de garantir oportunidades básicas minimamente iguais para todos. Nos anos 1990, ensaiamos um ciclo virtuoso de reforma do Estado. Surgiu a figura das organizações sociais e a contratualização de serviços públicos. Aprovou-se a emenda 19 à Constituição, que, entre outras coisas, determinou a avaliação dos servidores públicos e a possibilidade da demissão por insuficiência de desempenho. Em 2000, veio a Lei de Responsabilidade Fiscal Depois disso, andamos em marcha lenta. O modelo das organizações sociais pouco andou, na esfera federal, ainda que tenha avançado em muitos estados, a começar por São Paulo, com as OSs de saúde e cultura. A avaliação dos servidores nunca foi regulamentada pelo Congresso. Faz 20 anos, e não consta que o Supremo tenha se mexido para lidar com isso, sob o argumento da “omissão legislativa”. A PEC do Teto, no final de 2016, terminou por escancarar a falência do Estado brasileiro. Ou colocamos um artigo, na Constituição, que nos obriga a fazer reformas de verdade, ou afundamos de vez. É o ponto em que nos encontramos. O risco é cair na ilusão de que basta uma reforma fiscal, que corte despesas, combata “privilégios”, mas mantenha intacta a lógica de um Estado estruturalmente ineficiente. Isso seria a cara de um país medíocre. O desafio é ir além: mexer na governança do Estado, na qualidade da oferta dos serviços públicos. O país deu passos tímidos nesta direção com a lei de governança das estatais e, mais recentemente, a nova lei das agências reguladoras. O governo anuncia um amplo programa de privatizações e concessões de parques e presídios, o que é positivo, mesmo que tudo pareça ainda bastante incerto. Não acho que deveríamos reinventar a roda neste tema. Há uma experiência brasileira em reforma do Estado, que sinaliza um caminho. Basta ir ao oeste do Paraná e observar a concessão do parque do Iguaçu, no entorno das Cataratas; visitar a periferia de Belo Horizonte e conhecer as escolas em modelo PPP; andar pelo antigo centro do Rio de Janeiro e fazer uma visita ao Museu do Amanhã, e depois dar um pulo na Floresta da Tijuca para conhecer o Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). E quem sabe terminar a semana assistindo a um concerto da Osesp, na Sala São Paulo. Os exemplos têm um ponto em comum: o governo abriu mão de executar serviços e terminou produzindo resultados muito melhores. O governo recuou, não abriu concurso, não inchou a máquina do Estado ou a previdência pública. Manteve seu perfil enxuto e sua função de inteligência, deixando de fazer o que a sociedade e o mercado podem fazer melhor. Não há nenhum grande mistério aí. Basta um pouco de bom senso, disposição para aprender e não pensar o Brasil a partir dos interesses corporativos. No fundo é este o desafio da reforma do Estado, se é que desejamos pensar com alguma ousadia. Fernando Luis Schüler, Cientista Político. (publicado originalmente no Jornal Folha de SP)
Negacionismo democrático

“Os cidadãos são racionais em sua visão das instituições políticas, atualizando sua avaliação em resposta ao que observam”, diz o relatório recém lançado sobre a percepção da democracia, da Universidade de Cambridge. A confiança nas instituições declina porque os governos falharam em coisas como “a coordenação econômica na zona do euro” e na resposta mais efetiva à “mudança climática global”. Fiquei em dúvida se os autores listavam alguns itens de suas próprias predileções políticas ou de fato imaginam que sejam estas as preocupações das pessoas e causa de sua crescente insatisfação com a política. Mas este não é o ponto. O ponto é que suas conclusões expressam bem o que os professores Christopher Achen e Larry Bartels chamam de teoria “folk” da democracia. Achen e Bartels discutem o tema em seu livro “Democracia para Realistas”. Seu alvo são as visões ingênuas que teimam em tratar a democracia como expressão dos “interesses” dos eleitores que talvez tenha florescido à sombra da famosa frase de Lincoln em Gettysburg. A partir daí sua crítica é devastadora. Eleitores, em primeiro lugar, detém muito pouca informação relevante sobre temas políticos. Isso acontece por que o custo da informação é alto. Muita gente imaginou que a internet resolveria isso, com informação barata e abundante, mas tudo parece ter piorado pela raiva, pelo excesso, pelo tribalismo e essas coisas que todos sabemos. O livro traz exemplos saborosos sobre como os eleitores de fato agem nas democracias. Um deles mostra como pequenas alterações nas palavras, ou na maneira como uma pergunta é feita, podem produzir uma enorme mudança na opinião das pessoas. Exemplos: uma pesquisa mostrou que perto de metade dos americanos achavam ok “não permitir” que um comunista pudesse discursar por aí, mas apenas ¼ concordava em “proibir” ele de falar. Outra mostrou 2/3 dos eleitores, às vésperas da Guerra do Golfo, favoráveis ao uso da “força militar”, mas apenas 30% a favor de “ir à guerra”. Traço comum é o que Keith Stanovich chama de “myside bias”. Ao invés de ajustar opiniões diante da realidade, ajusta-se a realidade a opiniões. E regra do grupo ou “lado” politico. É o feijão com arroz de nossas democracia. Exemplo disso tivemos no debate sobre a suposta privatização do SUS, na última semana. Bastava um clique na internet para saber que já há milhares de unidades de saúde gerenciadas pelo setor privado. Inclusive PPPs, desde o primeiro e bem sucedido contrato feito pelo ex-governador Jaques Wagner, na Bahia. Mesmo com informação e uma penca de bons estudos acadêmicos disponíveis, as pessoas prosseguiam “ajustando” sua narrativa. Promover estudos sobre as parcerias seria “inconstitucional” (!); tem a “pandemia” (!) tem coisa “por trás” (!) O que mesmo os estudos indicam? Isto pode melhorar a qualidade do atendimento ? Sei lá, mas a gritaria tá grande, na internet. É um tipo de negacionismo democrático, hoje banal e possivelmente sem cura. Ainda que todos pudessem ganhar com um debate público qualificado, não há incentivos para que cada um aja de acordo, isto é, pense com algum distanciamento e julgue programas públicos com responsabilidade. O Professor James Fishkin, da Universidade de Stanford, desenvolveu um modelo de democracia deliberativa para lidar com isso. Ele faz uma amostra da população e expõe as pessoas a um ambiente reflexivo, com argumentos a favor e contra, e incentivos para que todos ajam de modo sereno e responsável. Há alguns anos atrás assisti a um de seus experimentos. De metade a dois terços das pessoas tendem a mudar sua visão ao longo do processo. Sua mudança (esta é a tese) reflete o que aconteceria com a grande sociedade, caso algo similar fosse possível. Obviamente não é. O que nos leva a uma indagação perturbadora: nossas melhores esperanças democráticas funcionariam apenas em condições de laboratório? De certo modo, é a resposta de Fishkin. De minha parte não tenho resposta. Sei apenas que daqui de fora, da selva, deveríamos pensar a respeito.
Confundir o público com o estatal é um velho erro da tradição brasileira

Como de hábito, a desinformação toma conta do debate público quando se trata de temas complexos de gestão pública. Não foi diferente com esta discussão sobre a suposta “privatização do SUS”, provocada pelo anúncio (mal feito e depois revisto) de que o governo estudaria a gestão de unidades de saúde em parceria com o setor privado. O curioso é que este debate é antigo e o País há muito conta com uma sofisticada legislação regulando a gestão em parceria com o setor privado. Apenas no município de São Paulo, mais de 60% das unidades básicas de saúde são gerenciadas por organizações sociais privadas. A pergunta a ser feita é: com os cuidados devidos, isto é, bons contratos e boa supervisão, os modelos de parceria podem funcionar melhor para as pessoas, em regra os mais pobres, que irão efetivamente utilizar os serviços? Há muita pesquisa sobre o tema. Uma deles é de Marcelle Gaiguer, da Fucape, no Espirito Santo. Ela comparou a gestão de um hospital público tradicional com a de um hospital gerenciado por uma Organização Social privada, na capital capixaba, e os resultados foram bastante claros. No modelo de gestão privada, a estrutura é mais enxuta, as taxas de infecção são significativamente mais baixas e tempo médio de permanência do paciente é menor. O estudo conclui que “quando abordamos o custo total em relação ao volume de produção (…) encontramos maior eficiência” no hospital sob gestão privada, e que “os indicadores de qualidade (taxa de infecção hospitalar) registram que na OSS a gestão mais eficiente dos custos não penaliza a qualidade”. Vão na mesma direção pesquisas muito mais abrangentes. É o caso do estudo realizado por Daniel Corrêa, da Universidade do Porto, a partir de dados do Ministério da Saúde e considerando 808 hospitais públicos brasileiros. Os hospitais públicos de gestão privada registraram eficiência 8,4% superior aos da administração direta. Daniel conclui que “a maior autonomia gerencial, regras de recursos humanos, legislação trabalhista e mecanismos de contratação mais ágeis aumentam a eficiência dos hospitais públicos” Alguém poderia perguntar: mas e as PPPs? Quando a gestão é feita via Organizações Sociais a entidade não visa lucro, o mesmo não ocorrendo no modelo das parcerias público privadas. A questão relevante se repete: é um modelo capaz de produzir melhores serviços para as pessoas? A resposta mais sugestiva vem da Bahia, onde foi realizada, em 2010, pelo então governador Jaques Wagner, a primeira experiência de gestão de um hospital público, do SUS, via PPP. É o Hospital do Subúrbio, em Salvador, classificado pelo Infrastructure Jounal como um dos 10 melhores projetos de PPPs da América Latina. Foi o primeiro hospital público do nordeste a obter a certificação máxima de excelência em serviços da Organização Nacional de Acreditação (ONA) e é objeto de múltiplos estudos. Um deles, conduzido por Almerinda Luedy, da Universidade Federal da Bahia, comparando metas e resultados obtidos pelo Hospital, concluiu que “as PPPs em saúde é um caminho possível para a oferta de serviços públicos de saúde mais eficiente, seguro e de qualidade elevada”. Não deixa de ser curioso que, dez anos após o início dessa experiência, e com farto material de pesquisa à disposição, a ideia de fazer estudos sobre PPPs em saúde produza tanta acidez no debate públco. Outro indicativo vem da área da educação, a partir da pesquisa feita por Bruno Rodriguez, da FGV, junto à rede de escolas públicas de Belo Horizonte, construídas e gerenciadas na forma de PPP. O modelo de gestão é híbrido. O parceiro privado faz a gestão operacional e os professores da rede municipal o trabalho pedagógico. Os resultados são claríssimos. A avaliação dos serviços é superior e os diretores das escolas contratualizadas têm 25% mais de tempo para as atividades educacionais, ao invés de cuidar da administração e “apagar incêndios”. Um dado em particular chama a atenção: o tempo de construção das unidades. Máximo de 13 meses, ou 45% inferior ao tempo médio gasto nas unidades feitas diretamente pelo governo. Isto poderia acontecer em maior escala na saúde, não? Médicos e enfermeiros focados em suas atividades em um ambiente de baixa burocracia. As pesquisas não definem o tema, mas apontam caminhos. É preciso tirar a raiva política do debate. Defender que o governo possa estabelecer parcerias não significa que o Estado abrirá mão de prestar serviços ou garantir direitos. Ao contrário: significa que o governo pensar mais na qualidade do serviço que chega na ponta e menos nos interesses das corporações que estão no meio. Visão de Estado, não de máquina pública. No Brasil se confunde, historicamente, o que é público e o que é estatal. Está na hora de desfazer esta confusão. Para quem quiser clarear as ideias sugiro assistir a um concerto da OSESP, na Sala São Paulo. Observe a arquitetura, a acústica impecável, a qualidade da música. Aquilo tudo é bastante complexo, 100% público e 100% gestão privada. E funciona. Talvez sirva de inspiração. (Artigo originalmente publicado na Folha SP, outubro 2020)
A educação e a pandemia: o sistema dos não culpados

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim”. Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti”. Nas últimas semanas li o que pude sobre nossa educação pública, na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e e-mails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo. Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável. Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo? Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu. Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A PNAD Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo. Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos tem acesso à internet, os mais pobres não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma. A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isto pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil. Não é exatamente para lidar com isto que existe a educação pública? Estudo recente do IPEA calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o deficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público? Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso à redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto. Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “o setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula os pais simplesmente tiram os filhos. E o setor publico, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade? Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de não-culpados. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou na contratação de pessoal. Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas Ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios. Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital. Melhor tapar o sol com a peneira e por a culpa é da desigualdade. Ela mesma que que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020. (originalmente publicado na Folha de SP, em nov 2020)
Direitos e oportunidades são a resposta ao debate nonsense sobre a meritocracia

Daniel Markovits lançou um livro chamado “A armadilha da meritocracia” (ainda sem tradução), com as habituais denúncias contra o “mito” ou a “farsa” da meritocracia. O argumento central é um velho truísmo. Nossas sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e, por óbvio, os pontos de partida de cada um na vida são muito diferentes. O interessante desse debate é que raramente alguém diz quem exatamente defende a ideia sem sentido de que nossas sociedades sejam meritocráticas. As referências sempre se dirigem a uma vaga “cultura popular” que preza o mérito, ou recomenda que as pessoas confiem nelas mesmas e ponham a mão na massa (a cultura da autoajuda é isso, não?). Nos anos 50, o sociólogo inglês Michael Young escreveu um livro distópico, The Rise of Meritocracy, tentando imaginar como funcionaria uma sociedade em que as posições de poder fossem acessíveis aos mais talentosos. A coisa toda era, por óbvio, uma grande ironia. E um inferno totalitário, apenas isso. Há uma confusão elementar nisso tudo. Uma coisa é dizer que esforço e a disciplina fazem diferença na vida, outra é imaginar que o mérito seja a base sobre a qual a sociedade distribua recursos e posições de poder. As organizações podem fazer isto, com base em critérios próprios, mas não a grande sociedade, onde os critérios são dispersos (ainda bem), e onde o acaso cumpre um papel essencial. Hayek matou esta charada quando registrou que o mercado não remunera mérito e sim a criação de valor, segundo a “votação” que cada um faz, a cada momento, a partir de suas próprias preferências, quando decide ou não pagar por alguma coisa. E que a condição de nascimento, assim como uma “mente brilhante, uma bela voz, um rosto bonito ou mãos habilidosas (…) são tão independentes dos esforços de um indivíduo quanto as oportunidades ou experiências que já teve”. E que seria um inferno, em especial para os menos favorecidos, uma sociedade em que de fato se acreditasse na lorota de que uma boa renda é prova de mérito e uma má posição pressupõe sua ausência. Ao invés de perder tempo com moinhos de vento, deveríamos discutir com seriedade qual o parâmetro de justiça plausível em uma sociedade aberta. A melhor que conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais para todos e uma base equitativa de oportunidades para cada um. Isto nada tem a ver com igualdade de oportunidades, que implicaria na eliminação de tudo aquilo que possa servir de vantagem para alguém na ideia tola de que “a vida é uma corrida”. O grande Bernard Williams tratou disso com primor. Igualar oportunidades implicaria em eliminar a influência do dinheiro, e logo da comunidade, da língua, e por fim da família e das aptidões naturais (e quem sabe também da sorte) da vida das pessoas. A par de destruir qualquer traço de identidade pessoal, um exercício de nonsense. O que se deve efetivamente oferecer é uma base mais homogênea de oportunidades. Isto significa muitas coisas ligadas ao direito de crescer com saúde, ser tratado com a mesma consideração e respeito que os demais e poder escolher uma (boa) escola onde estudar (direito hoje concedido apenas aos mais ricos, sob aplausos gerais). O prof. Markovits diz que temos que abrir as escolas dos mais ricos para a frequência dos mais pobres. Ele está certíssimo. Sem colocar os alunos (com mais ou menos renda) a estudar nas mesmas escolas (e nem me refiro aqui às superescolas) não vai rolar base nenhuma de oportunidades iguais. Como fazer isso? Bolsas? Contratos de gestão com o setor privado? É isto que nosso velho corporativismo mais odeia, não é mesmo? De qualquer forma, a ideia de que cabe ao Estado assegurar uma base mais equitativa de oportunidades a todos é algo que a tradição liberal há muito incorporou. E não penso que ela seja recusável por um pensamento de esquerda igualmente atual. Talvez vá aí a base de algum consenso público para além da querela política e sobre o qual o País tenha boas razões para se concentrar.
Cultura do cancelamento vem criando um debate público avesso ao risco e à divergência

Tentaram “cancelar” Steven Pinker, o linguista de Harvard, intelectual com jeito de roqueiro das antigas, autor de alguns livros monumentais (“Os Anjos Bons de Nossa Natureza” e “Iluminismo Agora”). Sua ideia-força é a de que estamos melhorando, como civilização, seja na redução global da violência, respeito a direitos, incidência da guerra. Isso irrita muita gente. Uma carta assinada por um grupo de acadêmicos pedia à Associação Americana de Linguística (LSA) sua destituição das listas de membros prestigiados. O caso virou uma ótima síntese do que define a cultura do cancelamento. Em primeiro lugar, o grupo dos canceladores era grande. Algumas centenas de assinaturas. Para cancelar você precisa de muita gente gritando, como nas antigas praças de execução pública. A carta contra Pinker também fazia questão de dizer que não era um cancelamento. Perfeito. Ninguém cancela dizendo que está cancelando. A turba está apenas fazendo “justiça”. Havia também o anacronismo. Pinker era acusado por alguns tuítes feitos anos atrás (o primeiro deles em 2015), mas tudo curiosamente apresentado como “no exato momento” em que ocorrem as mobilizações antirracistas. E por fim, a pretensão de verdade. Pinker era acusado de “deturpar” fatos. Na cultura do cancelamento não há a ideia de “divergência”. Ele poderia ter apenas uma outra visão ou simplesmente estar sugerindo a leitura de um artigo no The New York Times. O jogo é: eu sei o que você deveria ter dito e as palavras que você deveria ter usado. E sei porque tem uma multidão do lado de cá que vai fazer você entender isso. No final não funcionou. A LSA disse que não iria cancelar Pinker e que não era sua missão “controlar a opinião de seus membros”. Pinker se deu bem. Não fosse um cara renomado talvez fosse demitido ou coisa pior, como tantos outros. Há quem veja nas técnicas de cancelamento uma saudável “supervisão” da sociedade sobre os indivíduos (para que andem na linha, imagino). A tese seria a mesma que sustenta a lógica do derrubamento de estátuas: dado que haja uma multidão (do lado “certo”, obviamente) disposta a jogar alguma coisa no lixo, é justo que ela seja jogada. O cancelamento não tem a ver com justiça, mas com poder. Em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente. Pede-se à universidade que o descontrate, à TV que o demita, ao jornal que não o publique e ao evento que o “desconvide”. Um desconvite que me chamou a atenção foi ao ex-Presidente Fernando Henrique, coisa de quatro anos atrás. Ele iria participar do encontro da Latin American Studies Association (LASA) e um grupo de acadêmicos brasileiros fez um abaixo assinado para que ele fosse retirado do programa. Era um “golpista” e tal. A LASA se recusou o cancelamento, mas ele acabou não indo. Deu certo. E mostra que nada disso é propriamente novo. Essa lógica hoje virou feijão com arroz no mundo público. Contra ela se formou um grupo de intelectuais que vão de Noam Chomsky a Deirdre McCloskey. Publicaram um documento curto que vai direto ao ponto: “editores são demitidos por publicar artigos controversos; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos temas; professores são investigados por citar obras de literatura em sala de aula”. No final, sugerem que “precisamos de uma cultura que deixe espaço para experimentação, riscos e até erros”. Não vai rolar, pensei. A lógica do cancelamento é feita exatamente para que você não arrisque. Diga apenas o que pode ser dito. E o erro é uma impossibilidade, dado que há sempre uma “intenção” e algo indesculpavelmente grave em tudo que é dito. Difícil não perceber como tudo isto é uma reedição da antiga lógica da “patrulha”. Ela apenas ganhou escala. E não é feita pelo Estado ou pela direção do partido, mas pela multidão. A multidão patrulheira. Suas armas são a difamação e a pressão econômica. Há dois riscos envolvidos nisso tudo. O primeiro é a distração sobre aquilo que realmente importa combater. O segundo é o cultivo da conformidade e do medo na cultura pública. Medo dos temas que não devem ser tratados, dos livros ou dos dados que não se deve citar e das perguntas que não devem ser feitas. Talvez seja um ponto onde Pinker errou. O teórico que gosta de mostrar, com uma infinidade de dados, que o mundo sempre melhora talvez precise reconhecer que, ao menos em um aspecto –bastante sombrio– estamos piorando. Fernando L Schüler é cientista político e professor do Insper (Publicado originalmente na Folha de SP, julho 2020)
Novo Fundeb: faz sentido engessar ainda mais os recursos da educação?

Há um ponto que deveria merecer especial atenção na proposta do novo Fundeb que está para ser votada no Congresso. Trata-se da obrigação de que um mínimo de 70% do valor do fundo seja gasto com os servidores públicos da educação. Num primeiro momento, a ideia parece boa. Para muitos municípios, isso nem mesmo faz muita diferença, a curto prazo, pois o gasto com pessoal vai bem além desse percentual. O Brasil, porém, é grande, e a Constituição é feita para o longo prazo. Ao longo do tempo, o efeito disso será péssimo. Em um momento que o país toma consciência de que precisa avançar na reforma do Estado, vamos incentivar ainda mais comprometimento de gastos com pessoal e engessar, na Constituição, a aplicação dos recursos da educação. A Constituição foi sábia em criar um sistema misto de gestão educacional. Conforme explicita o artigo 213 da Carta, os recursos para a educação devem ser destinados às redes próprias, podendo também o ser às escolas filantrópicas, ou seja, públicas não estatais. A Constituição não estipulou nenhuma hierarquia aí. Apenas criou a opção, de forma que cada gestor (envolvendo governadores, prefeitos, secretários e conselhos de educação) pudesse decidir, à luz da realidade local, qual o melhor modelo para a gestão. Isso foi feito porque o Brasil é um pais continental e diverso. A ideia sempre foi permitir a avaliação de modelos e oferecer autonomia ao sistema. No atual debate, a pergunta é bem mais simples: como saber se daqui a dez ou vinte anos, nos 5.570 municípios brasileiros, será ainda preciso aplicar 70% ou 80% dos recursos com pessoal? Me surpreende que o Congresso Nacional, que foi capaz de aprovar um conjunto expressivo de reformas, desde as reformas trabalhista e previdenciária até o recente marco do saneamento básico, arrisque agora a produzir um engessamento inédito na educação brasileira. Engessamento que expressa um traço de nossa cultura corporativa, de que o acesso dos cidadãos a serviços suponha que eles sejam prestados diretamente pela máquina pública. Trata-se da velha confusão brasileira entre o público e o estatal. Serviços públicos podem ser oferecidos de modo concorrencial, via contratos, com medição de resultados e, sempre que possível, dando poder aos cidadãos para que façam as suas escolhas. Na educação brasileira este tema é especialmente atual, dado os resultados pífios que o modelo estatal tem mostrado, cronicamente, seja no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), seja no exame do Pisa, realizado a cada três anos pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Ele também é atual porque há alternativas ao modelo tradicional que o próprio país vem produzindo. Em todo o Brasil, mais e mais crianças estudam em escolas filantrópicas de ótima qualidade, lado a lado com seus pares de famílias de maior renda. Cria-se algo essencial para quem leva a sério o tema da igualdade de oportunidades no Brasil: permitir que alunos mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de classe média. Estas experiências ainda não possuem escala, dada nossa fixação no modelo estatal e aos entraves burocráticos que criamos. É isso que está em jogo no desenho do novo Fundeb. Não vai aqui rigorosamente nenhum veto a este ou àquele modelo, seja estatal ou não estatal. Esta avaliação precisa ser feita pelos gestores em todo o país, como faculta a Constituição, com base em dados e na realidade local. O erro é tomar o modelo estatal como o único possível, sem qualquer análise comparativa e contra todos os sinais que nos chegam da realidade da educação brasileira. É este o erro que o Congresso corre o risco de cometer na votação do novo Fundeb. Todos sabemos que a pressão corporativa é forte e o lobby das famílias mais pobres é inexistente. Elas certamente optariam por dispor dos mesmos direitos à escolha educacional hoje disponíveis à classe média e aos mais ricos no Brasil. Não se trata de um luxo, como escutei tempos atrás, mas do exercício de direitos fundamentais que nenhum de nós concordaria em abrir mão. (Publicado originalmente na Folha de SP, em 09-07-2020) Fernando Luís Schüler, cientista político e professor do Insper
O que realmente queremos com a renda básica?

O tema da exclusão racial tomou o centro do debate e é bom que isso tenha acontecido. Pedro Fernando Nery sintetizou em um dado o drama brasileiro: 60% dos meninos negros como o Miguel, abandonado no elevador daquele apartamento bacana no Recife, vivem abaixo da linha da pobreza. O país precisa avançar em políticas sociais inteligentes e esta pode ser uma das principais lições da crise. O primeiro tema diz respeito à renda básica. O governo anunciou que irá apresentar a Renda Brasil. E o faz do seu jeito estranho, com pouco amor ao detalhe sobre como vai funcionar e de onde sairá o dinheiro. Mas OK, a pauta é boa. O Brasil vem experimentando um modelo bastante amplo de transferência de renda emergencial. Seu desenho é precário, e o custo proibitivo. O modelo custaria em torno de 7% do PIB e implicaria um completo redesenho de nosso pacto social. O que parece viável é avançar com moderação. Estudo apresentado por Sergei Soares, Letícia Bartholo e Rafael Osorio, do Ipea, sugere a unificação do Bolsa Família, abono salarial, salario-família e as deduções-criança do Imposto de Renda. Haveria ganhos de focalização e coordenação. 77% dos recursos do Bolsa Família vão para o terço mais pobre da população, enquanto as deduções-criança vão direto para o terço mais rico. Não parece haver muita dúvida sobre o que fazer. Há duplicações de benefícios e uma ampla parcela de famílias pobres que não recebem benefício algum. O simples ganho de eficiência na aplicação dos recursos duplicaria seu efeito, com impacto fiscal zero, na redução da pobreza e da desigualdade. A economista Monica de Bolle sugere algo distinto (e correto, na minha visão): o foco em uma renda básica infantil. Famílias com crianças de 0 a 6 anos receberiam um complemento de até meio salário mínimo, com impacto fiscal esperado entre 1% e 1,5% do PIB. No fundo, estamos diante de uma discussão que envolve elementos normativos e funcionais. O país quer priorizar a proteção da infância? A ideia é simplesmente não deixar que ninguém viva abaixo de um certo padrão de dignidade? Ou o objetivo é mais arrojado e envolve a redução e, por fim, a eliminação da miséria? Não acho que exista clareza alguma sobre estas coisas, e acho curioso que o país (a começar pelo governo) se dedique a desenhar programas sem explicitar sua visão normativa de longo prazo. Seria como ir levantando paredes sem antes perguntar em que tipo de casa se quer morar. Definido o sentido normativo do programa, seu desenho fica mais fácil de fazer, e os economistas, como observou provocativamente Samuel Pessoa, podem calcular quanto tudo irá custar. De minha parte, digo que a renda básica brasileira deveria atender a quatro pontos normativos: ter um foco claro nos mais pobres e definir condicionalidades (além das hoje existentes no Bolsa Família, envolvendo formação profissional, por exemplo). Deveria integrar programas a partir do Bolsa Família, que pode ser corrigido em seu alcance e valor, hoje irrisório. Integrar, aqui, tem um sentido amplo: substituir programas menos eficientes pela oferta direta de renda às pessoas. Esta a reconversão de longo prazo que assistimos no “welfare state” contemporâneo: menos intermediação das burocracias públicas e mais poder para que as pessoas façam suas escolhas, com liberdade. Por fim, o caráter emancipatório. Se o objetivo de um programa de renda básica é superar a pobreza, seu foco civilizatório deve ser a autonomia das pessoas frente ao Estado, de modo que elas possam viver do seu trabalho e senso empreendedor. A transferência de renda é apenas um dos elementos que podem nos ajudar a superar a pobreza. Pouco adianta garantir uma renda básica se a escola não funciona e 56% dos lares mais pobres não têm acesso à coleta de esgoto. É por isso que a repactuação do país precisa ser muito mais ampla do que costumamos reconhecer. Oxalá a crise nos ajude a esquecer um pouco a querela política e pensar nas coisas que de fato importam. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo. (texto originalmente publicado na Folha de São Paulo em 11,06,20)
Ghandi encaixotado: a mudança social e a simples intolerância

A estátua de Mahatma Gandhi amanheceu coberta por uma caixa metálica, dias atrás, na Parliament Square, em Londres. O monumento foi inaugurado em 2015 para homenagear o líder pacifista indiano, mas agora há uma campanha para retirá-lo de lá sob a acusação de racismo. Um dos colegas de praça de Gandhi é Jan Smuts, ex-primeiro-ministro segregacionista da África do Sul. Smuts também circula em uma lista de derrubamentos, mas tem merecido menos atenção. Churchill é o mais famoso da praça e já foi devidamente vandalizado. A menção a Gandhi não vem por acaso. Valeria o mesmo para as diversas estátuas de Cristóvão Colombo queimadas ou decapitadas em cidades americanas, ou para o nosso padre António Vieira, gentilmente vandalizado no centro de Lisboa. João Pereira Coutinho associou nosso tempo a uma certa revivescência medieval. A época pré-iluminista das inquisições. Diria que vivemos uma Idade Média mais bem educada. As multidões de hoje não se reúnem mais em praça pública para amaldiçoar algum infiel ardendo na fogueira. As bruxas em geral queimam na internet e não importa muito a ideologia. Na vida real (ao menos por enquanto e com algumas tristes exceções), a multidão derruba apenas estátuas e vandaliza espaços públicos. Coutinho estaria errado se a raiva popular estivesse sempre do lado certo da história. O antirracismo contemporâneo, por exemplo, na trilha de Martin Luther King. As multidões trariam consigo o germe da razão e do progresso moral. Saberiam escolher entre a civilização e o que deve ir para o lixo da história. De minha parte sou cético. Se alguém quer entregar à multidão irada a decisão sobre proibir um filme, retirar a palavra a um orador ou derrubar uma estátua, boa sorte. Só lembre-se que um dia desses a multidão pode errar e sua fúria se voltar exatamente contra as ideias que mais prezamos. Não foram poucas vezes que isso aconteceu, e nem muito longe daqui. É exatamente por isso que inventaram essa coisa quase insuportável chamada liberdade de expressão. Exatamente a coisa que está no centro do debate atual e que vem desafiando a nossa democracia. Há um lado curioso nisso tudo. Nos anos 1990 muita gente imaginava que a internet iria aproximar as pessoas e melhorar o debate público. Ocorreu o contrário. Cresceu a paixão tribal no mundo do pensamento. Numa expressão, a tecnologia nos medievalizou. Os riscos disso tudo são evidentes. O mais óbvio é a perda de referência. A incapacidade de distinguir entre demandas legítimas de transformação social, como o antirracismo, e a simples intolerância. Barack Obama acertou na mosca pedindo que os movimentos antirracistas que incendiaram os EUA não “racionalizassem” a violência. Mencionou uma velha senhora que teve a loja de rua destruída e disse que todos sabiam como aquilo tudo estava fadado a terminar. E arrematou: “Se queremos a justiça e a sociedade funcionando sob um código ético mais exigente, precisamos nós mesmos agir desse modo”. Obama é o cara que disse, um dia após a eleição de Trump, que a democracia era assim, um jogo de vitórias e derrotas em que todos ganham, no longo prazo. Mas pouca gente entendeu, como sempre. Outro risco é a contaminação das instituições. Não há que se esperar muito da multidão digital. Por vezes ela irá acertar, por vezes errar, e mesmo sobre o erro e o acerto não haverá acordo. A paixão e o ódio político serão o feijão com arroz das democracias. No Brasil atual me surpreende (em que pese não deveria) que tenhamos ressucitado a “famigerada” Lei de Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo em 1983. Para alguns, a lei que era um entulho autoritário se transformou em instrumento da democracia; para outros, que com ela simpatizavam, se tornou ferramenta do arbítrio. Num e noutro caso, o apelo indignado à liberdade de expressão. Não deixa de ser uma perfeita imagem do nosso tempo. Não vejo chance de essas coisas mudarem, e o máximo que me permito é acreditar que nossas instituições e liderança pública não irão embarcar nesse jogo. Acreditar com cada vez menos força, confesso. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
A democracia e o direito às ideias erradas

“Instituições não são a democracia”, diz o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em um tuíte, semanas atrás. O deputado segue fazendo considerações sobre o sentido da democracia (“é a vontade popular”) e termina com uma afirmação: “Quem tem atacado tanto o Estado de Direito quanto a vontade popular é o STF”. A frase acima consta no despacho do ministro Alexandre de Moraes como exemplo de mensagens ilícitas ou fraudulentas (as expressões poderiam variar aqui: falsas, odiosas, agressivas) que justificam a operação policial realizada na quarta, no inquérito das fake news. Outra mensagem diz simplesmente: “Doria e STF trabalhando em conjunto para matar o povo de fome”. Essa não sei de quem é, o que é irrelevante. Há milhares de frases como essa, todos os dias, na internet. Aliás, há pouco mais de 30 anos, quando comecei a prestar atenção à política, escuto gente atribuindo a fome ou a miséria a esta ou àquela autoridade. Outra mensagem parece mais globalizada: “Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!”. Sabe-se lá o que a frasista queria dizer com isso. Imagino que tenha a ver com a defesa de algum tipo de iliberalismo. Mas é só um palpite. Há frases bem sem gracinha, do tipo “a maioria dos juízes nunca foi juiz”, e, pasmem, “não querem se reformar”. Há frases mais pesadas. Palavrões, que me permito não citar aqui, e bobagens, em regra mal escritas e de gosto duvidoso. Discordo dessas frases e , diferente de seus autores, sempre tive nossa Suprema Corte em alta conta. Dias atrás elogiei o ministro Celso de Mello pela sua recusa em proibir uma passeata com críticas ao STF e promovendo precisamente o tipo de ideias que as tais mensagens expressam. Celso de Mello o fez com afirmação simples e precisa: não cabe ao Supremo ou à Justiça a “proibição estatal do dissenso”. Pois é o que nossa Suprema Corte faz agora. Já havia feito quando interditou uma publicação da revista Crusoé, por ser caluniosa ou falsa. À época, muita gente protestou, com razão. Houve editoriais de jornais respeitáveis. Agora os ventos mudaram. A coisa diz respeito a pessoas “do outro lado” da política. O despacho do ministro diz suspeitar que as mensagens compõem uma complexa rede de pessoas que expõe “a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes e o Estado de Direito”. Trata-se, sem tirar nem por, de punir o delito de opinião. Opinião individual ou organizada, não importa. Opiniões “perigosas” para a República. Opiniões, repito, que inundam as redes sociais, no Brasil e mundo afora, todos os dias. O Estado brasileiro, pela mão de nossa Suprema Corte, se prepara para assumir a função de reguladora do grau de risco que uma frase ou grupo de frases podem trazer à República, às instituições ou à ideia mais geral da democracia. Conhecendo o histórico do STF em defesa da liberdade de expressão, intuo que muitos de seus membros se sentirão incomodados ao passar os olhos por aquelas mensagens toscas e imaginar que alguém possa considerar que sua expressão não esteja garantida pela Constituição brasileira. Ela está. Isso foi perfeitamente consagrado na histórica decisão tomada pelo próprio Supremo, quando da revogação da Lei de Imprensa. O ministro Ayres Britto foi direto: “Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”. Isso não exclui, por óbvio, o direito de resposta ou à reparação, sempre a posteriori. O que é estranho ao nosso ordenamento institucional, ao menos até agora, é a ideia de um Estado praticando um controle prévio e genérico de opinião, arbitrando o falso e o verdadeiro. É precisamente isto que parece estar mudando. Parecemos estar migrando para um modelo de tutela do Estado sobre a opinião pública. Como sempre ocorre nesses casos, ninguém sabe bem quais são as ideias erradas e qual é o limite do que pode ou não ser dito. No lugar de definições que deveriam ser claras e transparentes, há um imenso vazio. Esta vacuidade é o avesso do direito. O problema do Estado tutor é sempre o mesmo: ideias erradas costumam habitar o outro lado do mundo político, e um acordo sobre essas coisas não é tarefa simples em sociedades abertas. Não acho que deveríamos enveredar por este caminho. A maioria pode estar gostando, ou ao menos a maioria dos que ainda podem se expressar sem medo. Mas não é um bom caminho. Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.