A ponte do rio das Antas

A ponte ruiu em setembro do ano passado. Foi aquela enxurrada, no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro que ligava Nova Roma do Sul ao mundo se foi. Os governos estadual e federal colocaram a nova ponte no orçamento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mobilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto, a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6 milhões, ponte simples que resolve o problema da comunidade. “Ainda sobrou um milhão”, diz o presidente da Associação que comandou o processo. “A comunidade agora vai se reunir”, diz ele, “para ver o que fazer com o dinheiro”. Quando li sobre isto me lembrei de Tocqueville. De sua seus relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena escala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos de 1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-se para tudo, e aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Não apenas como uma forma resolver problemas, mas como um modo ativo de exercício da democracia. Ao invés de esperar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comunitário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de Nova Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Tocqueville provocou contando como milhares de americanos haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parecemos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas acontecendo no País. E vale à pena prestar atenção. A colônia italiana e alemã tem uma longa tradição de associativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”, como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu, neste episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra, ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas uma ponte? Nova Roma tem coisa de quatro mil habitantes. É evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali. “Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger Bregman escreveu um livro instigante, “Humanidade: uma história otimista do homem”, argumentando que foi exatamente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jonathan Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o auto interesse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que manda um pix com um pedacinho de sua poupança para pagar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que depois desfila em um velho Aero Willis, festa de inauguração. E disso tudo extrai uma secreta felicidade. Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo. O Governador Eduardo Leite explicou que o Estado tem um projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O problema não deste ou daquele governo, mas da estrutura da máquina pública, no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso Estado é eficiente para executar um programa de distribuição de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em larga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quando a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Economy, ocupamos o constrangedor 130º lugar, em eficácia governamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito aprendeu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a depender o mínimo possível dos serviços do governo. A notícia interessante é que o País foi desenvolvendo um contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade, ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engrenar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo deve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Paulo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as Organizações Sociais, na reforma do Estado conduzida por Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pesquisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma OSESP, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais públicos do País. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que permitiu reduzir 20 para perto de 11 meses o tempo de construção das escolas infantis, em Belo Horizonte, fazer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da administração pública atual: governo focado nas funções estratégicas; setor privado fazendo a execução e a gestão, na ponta. Seja uma empresa ultra especializada, seja uma associação comunitária, no interior do Rio Grande do Sul. É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocqueville descreveu a América do início do século XIX. Na última edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição, entre 142 Países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei de perto a doação de mais de R$ 170 milhões para a Fábrica de Vacinas, do Instituto Butantan. A questão é como transformar isto em
Fernando Schüler: “Precisamos aprender a diferença entre o público e o estatal”

O Estado da Arte dá início a um Especial sobre os caminhos para educação no Brasil. Quais os modelos mais bem sucedidos ao redor do mundo? Quais as vias possíveis para as nossas políticas públicas? Quais são os diagnósticos, prognósticos e terapêuticas mais avalizados à nossa disposição? Abrindo a série, o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler critica o modelo de gestão estatal no Brasil e avalia alternativas, como os sistemas de contratualização com escolas privadas e de vouchers para educação, como o ProUni, em que os estudantes subsidiados podem escolher a instituição em que desejam se formar. O senhor vem argumentando que o núcleo do problema da educação brasileira é o modelo estatal de gestão das escolas e do sistema de ensino. Em um artigo para a revista Época, o senhor caracterizou isso como “o lobby da educação estatal”. O que explica a força desse lobby? O artigo parte de um reconhecimento: não há uma crise genérica da educação, no Brasil. O que existe é uma crise do Estado na educação. Nossa rede privada de ensino está longe de ser de excelência, mas seus resultados, em média, são próximos aos dos estudantes norte-americanos, no Programa Internacional para a Avaliação Internacional de Estudantes. O que existe no Brasil é a brutal falência do modelo de gestão estatal do ensino. Reconhecer isto é o primeiro passo para mudar a realidade. Há um problema endógeno afetando nossas escolas estatais. Ele provém da forma como estruturamos a gestão pública brasileira na Constituição de 1988. Escolas são repartições públicas; professores têm estabilidade total no emprego; a burocracia impera e tudo tem de ser feito via lei de licitações (a Lei 8.666/93), que é lenta e inadequada para gerenciar escolas. Os diretores de escolas são eleitos, sujeitando-se a toda sorte de pressões corporativas; os governos mudam a cada quatro anos, afetando qualquer ideia de planejamento de longo prazo. Em boa medida, é o mesmo problema que afeta a saúde pública e outras áreas de prestação de serviços pelos governos. O resultado é previsível: a classe média fugiu do Estado e migrou para as escolas particulares. Com isto geramos, ao longo do tempo, uma brutal desigualdade educacional. Me espanta que nossos gestores públicos e boa parte da academia brasileira não reconheça nada disso. Imagino que isto ocorra por comodismo político, pressão das corporações ou simplesmente por ideologia. É esse o lobby da escola pública. Os sindicatos são apenas sua cara “visível” e barulhenta. O Brasil tem um grande número de movimentos, institutos e fundos dedicados ao tema da educação. Se esse tema da gestão não está na pauta, qual é, então, o foco desses grupos que atuam em defesa de melhorias na educação? Há muitas instituições fazendo um ótimo trabalho. Elas ajudam a treinar gestores escolares, propor inovações didáticas, combater o preconceito e a intolerância, premiar boas práticas, e tudo isto é sumamente importante. A única coisa que ninguém parece se permitir é o questionamento do “modelo”. No cânone brasileiro, as ideias de “público” e “estatal” se confundem. Não se reconhece a possibilidade de uma esfera pública não estatal, a simples ideia de que o Estado pode garantir o direito à educação sem necessariamente gerir todas as escolas. O Brasil, neste ponto, é um país curioso: reconhece-se que o governo não é competente para gerir estradas, portos ou aeroportos; mas para gerir escolas imagina-se que sim. Lá no fundo, imagino, ninguém realmente acredita nisso. É apenas uma situação confortável. A mesma elite que promete melhorar a educação no “longo prazo” há muito tempo recorre à rede privada de ensino para educar seus próprios filhos. Este é o lado mais cruel de nosso apartheid educacional. Ele tem um componente ético: nega-se aos mais pobres um tipo de direito (estudar em boas escolas, ou simplesmente escolher onde estudar) do qual nenhum de seus defensores, sob hipótese alguma, abriria mão. Este é um ponto que enfatizo em meu artigo: há um pacto silencioso. Não digo que ninguém desejou criar um sistema de exclusão educacional, no Brasil. Mas ela está aí. É uma “consequência indesejada” do modelo estatal. E é uma situação a que todos nos acostumamos, sempre contando com a infinita paciência dos mais pobres para esperar que o “longo prazo” um dia apareça. O senhor menciona em seu artigo mais recente para a revista Época duas alternativas ao sistema estatal: as charter schools e o voucher educação. Esses modelos, no entanto, têm apresentado resultados muito desiguais, com resultados positivos (que o artigo ressalta bem) e negativos, como apontou o relatório do Departamento de Educação norte-americano no último mês de que mostrou resultados negativos para os vouchers no distrito de Columbia. O que tem dado errado? O que deve ser evitado, caso se busque implementar esse modelo no Brasil? A avaliação feita no sistema de voucher do Distrito de Colúmbia refere-se apenas ao primeiro ano de funcionamento do programa. No processo das charter schools tem sido registrado o mesmo fenômeno. Quando há a migração de um estudante de uma escola pública tradicional para uma escola privada de maior performance, é necessário um tempo de adaptação. Isto aconteceria no Brasil ou em qualquer lugar. O Estado de Wisconsin tem o mais antigo programa de voucher dos Estados Unidos, com 27 anos de funcionamento, e os resultados são bastante positivos. Estudo feito pelo Center for Research on Educational Outomes, da Universidade de Stanford, mostrou que os alunos que fazem a transição para charter schools apresentam, logo de partida, uma pequena piora em relação aos que permaneciam no sistema estatal. Mas a partir do segundo ano seus resultados já são ligeiramente superiores. No quarto ano, é notável o avanço em seu desempenho. Mas é preciso cuidado neste tipo de análise. Nenhum modelo, por si só, tem o poder de mudar a educação. É preciso que seu design institucional seja bem feito. No Chile, por exemplo, houve equívocos na implantação do voucher. Permitiu-se que as famílias adicionassem dinheiro à bolsa recebida, de modo a contratar escolas mais caras e sofisticadas. Reproduziu-se um modelo de desigualdade. Em 2008 isto foi corrigido, em boa medida, com excelentes resultados. Você vai encontrar bons e maus resultados em diferentes modelos de gestão educacional. O ProUni, no Brasil, que
A educação e a armadilha da crise do Estado

O papo estava descontraído, antes de um debate, e o professor me comentou que não fazia chamada, em suas turmas. “Na minha aula vem quem quer”, disse ele. “Fica menos gente na sala, me incomodo menos, é muito melhor”. O que me chamou a atenção foi o desdém, o tom blasé. Dar a “sua aula” era mais importante do que saber se os alunos estavam ou não aprendendo. Achei compreensível. Ele leciona em uma universidade estatal dessas bacanas, que a gente costuma chamar de “públicas”, tem estabilidade e não é avaliado pelo desempenho em sala de aula. A atitude do meu colega de debate é uma migalha do que acontece na educação estatal brasileira. Estudo feito pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mostrou que, em média, os professores faltam 36 dias por ano na rede pública do município de São Paulo. Na rede estadual a média é de 30 dias. Não se trata aqui de julgar os professores, dizer que são piores ou melhores do que os do setor privado. É a regra do jogo que está mal desenhada. É o “modelo” de educação estatal que leva a este resultado. Os efeitos disso tudo são conhecidos. Nossos alunos das redes públicas ocupam as últimas posições no PISA (teste feito pela OCDE com estudantes aos 15 anos, em 65 países) e o IDEB alcançado pelas escolas privadas, no ensino médio, é 51% maior do que o das redes públicas. A falência da educação estatal levou a uma migração maciça da classe média para as escolas particulares. Criamos um sistema brutal de exclusão: os mais ricos escolhem a escola de seus filhos e obtém os melhores resultados; os mais pobres ficam por conta do Estado. Espécie de versão aguda da metáfora da Belíndia, criada nos anos 70 pelo economista Edmar Bacha. Nossa modelo de apartheid educacional produziu algo próximo ao que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”. A inspiração vem da passagem bíblica que diz “ao que tem, mais será dado…mas ao que nada tem, até mesmo isso lhes será tomado”. O mecanismo de exclusão leva a um ciclo de “desvantagens cumulativas”: menor renda, colégios de baixo desempenho, redes restritas de interação social, estigma, estreitamento do leque de oportunidades. É evidente que o ciclo não determina o destino de ninguém. É sempre possível dar a volta por cima. De vez em quando acontece, mas não é a regra. Quebrar o apartheid educacional brasileiro significa exatamente isto: buscar que se torne regra o que hoje é exceção. É possível que tudo isso seja apenas uma “consequência não intencionada” do sistema de ensino estatal, no Brasil. Prefiro pensar que se trata de um resultado bastante previsível. Escolas estatais, no Brasil, funcionam como repartições públicas. Não tem autonomia orçamentária ou liberdade para contratar ou descontratar professores; subordinam-se à burocracia da lei das licitações; diretores são eleitos, gerando um pacto corporativo com os professores; governos se alternam, a cada quatro anos, e no fundo podem fazer muito pouco para melhorar o sistema, a longo prazo. Exceções, como o sempre mencionado bom desempenho das escolas de Sobral, no Ceará, apenas servem para confirmar a regra. Diante desse cenário, nossos gestores públicos se recusam a buscar alternativas. No fundo é uma situação confortável, feita do pacto silencioso entre a corporação sindical e a elite (empresarial e acadêmica) disposta a “mudar a educação”. Disposta a patrocinar estudos e pinçar exemplos de sucesso aqui e ali, imaginando que tudo será diferente em dez ou vinte anos. No curto prazo, as coisas prosseguem como sempre foram. A corporação com seus “direitos” e os mais ricos à salvo em boas escolas particulares. Os mais pobres, como reza a tradição, em silêncio. Penso que é preciso mudar. O País precisa experimentar novas formas de gestão da educação pública, do ensino básico ao ensino superior, sem preconceitos. No plano global, há duas grandes linhas de inovação: os sistemas de voucher, em que o governo oferece uma bolsa e dá direito de escolha às famílias, ao invés de gerenciar escolas; e o modelo das charter schools, em que o governo assina contratos de gestão com instituições especializadas, de direito privado e sem fins lucrativos. Em ambos casos, o governo passa da condição de gestor direto para regulador do sistema. O Brasil já conhece estes modelos. O ProUni funciona como um sistema de voucher, e é um sucesso. Pesquisa encomendada pela ABRAES, com base nos resultados do ENADE entre 2010 e 2012, mostrou que os alunos com bolsa integral no sistema obtém notas superiores a dos alunos de Universidades Públicas, com renda média muito superior. Este e outros indicadores tem ajudado a derrubar uma das mais cruéis narrativas do debate educacional brasileiro, segundo a qual os alunos não conseguem aprender devido à pobreza. No plano das charter schools, o Brasil desenvolveu, nas últimas duas décadas, o bem sucedido modelo das Organizações Sociais. São amplamente conhecidos os resultados obtidos pelas OS da saúde, no Estado de São Paulo, bem como o sucesso obtido por organizações como a OSESP, Pinacoteca do Estado, o Museu do Amanhã e outras organizações culturais. Na educação, temos a experiência do IMPA e exemplos de menor alcance em diversos municípios brasileiros. Recentemente, o País aprovou o novo marco legal das organizações da sociedade civil, a LEI 13.019/14, que funciona como uma perfeita legislação para a implementação do modelo de charter schools. A lei explicitamente prevê a celebração de termos de colaboração dos governos com organizações privadas sem fins lucrativos, na área da educação. Nosso marco jurídico está completo e temos a nossa disposição uma série de bons exemplos. O que nos impede de avançar? Os estudos realizados com programas de voucher tem oferecido resultados mistos. Na Índia, um programa experimental realizado no Estado de Andhra Pradesh, com crianças escolhidas aleatoriamente, mostrou resultados promissores. Em que pese os resultados em disciplinas tradicionais, como a matemática, não apresentassem variações consideráveis, os alunos que migraram para as escolas privadas passaram a aprender mais rapidamente (ganho médio de 30%) e a
O fim da era Vargas

A era Vargas não termina, vai terminando. Fernando Henrique sugeriu ter feito uma parte do trabalho, com a quebra do monopólio do Petróleo; Itamar já havia dado um pequeno empurrão, com a privatização da Cia Siderúrgica Nacional; agora foi a vez de Michel Temer. Sua reforma altera uma centena de artigos da CLT, faz crescer a segurança jurídica no mundo do trabalho e cria modelos novos de contratação, como o trabalho intermitente. Seu lugar nos livros de história, goste-se ou não de suas mesóclises, está garantido. A reforma trabalhista é, em primeiro lugar, perfeitamente legítima. A CLT foi criada por decreto, em meio a uma ditadura. A atual reforma é produto da democracia, de um amplo debate e uma votação amplamente majoritária em um Congresso eleito. No dia da votação haviam duas ou três centenas de pessoas protestando à frente do Congresso. Tentou-se fechar uma via pública, em São Paulo, sem grande sucesso. Algumas senadoras tentaram uma performance, ocupando na marra a mesa do Senado por sete longas horas. Ninguém deu muita bola. Vamos lá: não se fez nenhuma revolução. Ninguém mexeu no que se habituou chamar de “direitos fundamentais do trabalhador”, como o salário mínimo, seguro-desemprego ou o 13º salário. A lista de direitos está toda lá, chancelada pela reforma e não passíveis de negociação coletiva. Ninguém fez o País voltar aos “tempos da escravidão”, como se escutou de gente bacana nos debates da semana. O que esteve realmente em jogo, nesta reforma, foi um pequeno passo em um caminho que não termina: o ajuste de instituições velhas a novas tecnologias. E ao aprendizado da vida. Quando Getúlio Vargas assinou a CLT, em 1943, dois terços da população vivia no campo e 55% dos brasileiros eram analfabetos. Fazia sentido uma legislação rígida e ultra protetora? Cada um pode julgar. Em 2017, em um país 85% urbano, com acesso universal à educação, e em meio a uma revolução tecnológica, faz sentido seguir com a mesma rigidez? Alguém ainda acha que ainda cabe ao Estado regular o tempo de almoço ou a distribuição dos dias de férias dos funcionários das empresas? A reforma não retira o Estado-tutor de cena, no Brasil, mas abre espaços para que empregados e empregados atuem com um pouco mais de autonomia. Há riscos, por óbvio, neste processo. O que irá contar como “remuneração de qualquer natureza” para o trabalho no campo, em regiões mais pobres e isoladas no País? Em que circunstâncias um “médico de confiança” dará um atestado para que a gestante possa trabalhar em locais de “insalubridade média”? Em situações extremas, falar em “livre negociação” pode não passar de um truque retórico. Daí a necessidade de regras e da vigilância social. O ponto é que não há evidências de que uma legislação rígida, como a que temos hoje, efetivamente proteja aos mais pobres. Conforme observou o economista José Márcio Camargo, 60% dos trabalhadores na faixa dos 20% mais pobres atuam na informalidade. “A CLT exclui os mais pobres”, diz o economista. Talvez por isso não se tenha visto ninguém nas ruas em sua defesa, nesses meses todos. A CLT se tornou, desde há muito, um exemplo acabado do argumento das “consequências indesejadas”. O termo foi popularizado pelo sociólogo americano Robert Merton, e diz o seguinte: uma regra pode ser muito generosa, na teoria, mas produzir, na prática, péssimos resultados. A CLT obrigava as empresas a contar como hora trabalhada o tempo de transporte oferecido aos funcionários. Na prática? Corta-se a oferta de transporte. Exemplos não faltam: empresas que não contratam serviços de firmas individuais ou trabalhadores autônomos, ou mesmo proíbem o home-office, com medo de configurar vínculo trabalhista. Viramos o País da “proteção de papel”, na feliz expressão do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho. A reforma, no fundo, é um passo ainda tímido em um terreno nebuloso da vida pública brasileira: o da liberdade individual. Talvez pela formação ibérica ou pela raiz tupi-guarani, o fato é que a liberdade “econômica” tem funcionado como uma espécie de não-valor em nossa cultura política. Temos sido um País viciado em razões de “utilidade”: queremos saber se novas leis trazem desenvolvimento ou geram empregos. Ou qualquer coisa que possa ser vista como “objetiva” em uma reunião de gente grande, em Brasília. Dessa vez a conversa foi diferente. A lei caminha na direção contrária da tradição. Ela fala em liberdade para contratos “não contínuos”, para o sujeito negociar seu banco de horas e decidir se paga ou não o sindicato. Alguma coisa mudou, ou anda mudando, em Pindorama. É evidente que ainda estamos diante de uma legislação imensamente paternalista. Ainda achamos crucial que a lei diga caber ao funcionário a “higienização” de seu uniforme de trabalho, ou coisas de gosto metafísico, como a permissão de dividir as férias em três pedaços, “sendo um deles não inferior a quatorze dias corridos”. Curioso é observar que a reforma oferece um pouco mais de liberdade para negociar contratos para os brasileiros que recebem mais de R$11.052,62 por mês e tem curso superior. A ideia é proteger os mais fracos tirando deles a liberdade para negociar. Cada um faça o seu juízo sobre isto. Tempos atrás li uma entrevista do ex-Presidente da FGV, Luís Simões Lopes, homem de confiança de Vargas e criador do antigo DASP, o Departamento Administrativo do Serviço Público. Na entrevista, ele chama a ditadura do Estado Novo de “recesso parlamentar” e mostra como foi possível, graças ao estado de exceção, modernizar o Estado brasileiro. “Os políticos”, diz, nunca pensam no futuro do País, só em seus votos”. O vezo autoritário parece ecoar do fundo da história republicana. Na democracia, é inexorável, os políticos farão a festa. A tese foi retomada em grande estilo no ciclo militar de 64. O curioso é que muita gente boa, em nossa historiografia, comprou esta ideia vaga. O autoritarismo, desde ao menos os anos 30, teria sido o preço a pagar pela modernização do País.. Com Júlio Prestes estaríamos condenados a uma eterna república velha, como num museu de
O Brasil precisa aprender a fazer escolhas difíceis

O ex-Presidente Fernando Henrique afirmou, dias atrás, que o Brasil precisa de uma nova onda de privatizações. “O que puder privatizar, privatiza”, disse FH, “ou você terá outro assalto ao Estado por parte dos setores políticos e corporativos”. O diagnóstico deixou muita gente surpresa. Na algazarra das redes sociais, Fernando Henrique costuma ser tratado como um teimoso social democrata, avesso a reformas de mercado e à retórica liberalizante. Injustiça. Em seu governo, o ex-Presidente estabilizou a economia e comandou um amplo programa de privatizações. Mas isto são aguas passadas. Seu diagnóstico é para hoje. Seu foco é apontar um dos tantos caminhos que o País terá de trilhar se quiser sair desta crise, lá adiante, melhor do que entrou. O raciocínio de FH é simples: quanto mais áreas da economia funcionarem sob a logica do mercado político, mais incentivo existirá para sua “captura” – por vias legais ou ilegais. Na prática: se há boa chance de obter um financiamento a juros subsidiados no BNDES por que as empresas buscariam competitividade no mercado de crédito privado? O mesmo vale para temas de regulação e política fiscal. Os economistas Marcelo Curado e Thiago Curado conduziram um estudo mostrando que as isenções fiscais (envolvendo incentivos para a indústria automobilística, Zona Franca de Manaus e uma enorme gama de benefícios setoriais) saltaram de R$ 24 bilhões para R$ 218 bilhões entre 2004 e 2013. Ao invés de optar por um modelo de impostos baixos e igualdade diante da lei, escolhemos o caminho inverso: carga tributária alta e alocação desigual, segundo a capacidade de pressão de cada setor econômico. Curiosa lógica tropical: oneração fiscal para todos e desoneração para muitos, de acordo com critérios e regras frequentemente difíceis de compreender. A mesma lógica invade o sistema político. Exemplo perfeito é o curioso sistema de fatiamento do orçamento federal com base nas chamadas “emendas parlamentares”. Cada parlamentar pode apresentar até 25 “emendas individuais,” no valor total de R$ 15,3 milhões (ano base 2017). Os recursos vão para as regiões e prefeituras da base eleitoral do parlamentar. Servem como moeda eleitoral e criam uma enorme vantagem competitiva para os candidatos detentores de mandatos. Geram desigualdade eleitoral e dificultam a renovação política. O Governo, por sua vez, dita o ritmo da liberação das emendas conforme sua conveniência política. Patrimonialismo em dose dupla: do deputado em relação a sua base política e do governo em relação ao parlamento. O custo, como de hábito, vai para o contribuinte. O País apostou, desde o processo de redemocratização, em uma combinação explosiva: um Estado grande e interventor, com ampla capacidade de alocação discricionária de recursos, e um sistema de financiamento empresarial de campanhas. Durante décadas, incentivamos nossos candidatos, de vereador a presidente, a sentar em uma mesa e pedir dinheiro aos mesmos empresários que logo ali à frente concorreriam para administrar um sistema de abastecimento de agua, no município, ou fariam lobby, no Congresso, para obter um regime fiscal especial. Um modelo fadado a produzir os resultados que ora estamos colhendo O problema foi, em parte, corrigido em 2015, quando o STF proibiu o financiamento empresarial de campanhas. Tratou-se da face mais simples do problema, e em grande medida ilusória. Empresários podem fazer contribuições na “pessoa física”, para não falar da praga do caixa dois. A questão central é enfrentar o lado mais difícil do problema: diminuir a vulnerabilidade do Estado brasileiro à pressão dos interesses especiais. À lógica das corporações, do lobby empresarial e do próprio sistema político. Para que isto aconteça, não há outra saída: o Estado precisa diminuir de tamanho. Fernando Henrique tem razão, neste sentido. É preciso transferir os recursos do FGTS para gestão privada e concorrencial; privatizar as empresas que produzam bens e serviços de mercado; migrar o sistema previdenciário para modelos de capitalização; contratualizar a prestação de serviços públicos não exclusivos de Estado com o setor privado (como já se faz com as organizações sociais da saúde); fechar velhas autarquias e fundações estatais criadas no período anterior à Constituição e que hoje perderam relevância social e econômica. Há uma extensa agenda aí. Uma agenda de desestatização da sociedade e despatrimonialização do sistema político. Sua execução exige clareza e liderança política. Exige mais: um novo “consenso majoritário” da sociedade voltado à modernização do Estado. Algo da mesma dimensão que soubemos produzir, nos anos 80, em torno da redemocratização do País. Não se trata de tarefa simples. Fazer escolhas difíceis nunca foi uma especialidade brasileira. Ainda sofremos para flexibilizar regras de uma lei trabalhista feita nos anos quarenta e para fixar uma idade mínima para a previdência que países como Chile e Argentina há muito estabeleceram. Nosso maior risco, no fundo, é a inércia. Ver o tempo passar, jogar fora o esforço feito com a aprovação da PEC do gasto público, assistir o custo previdenciário corroer lentamente as contas públicas. Tropeçar na armadilha da renda média e das velhas ilusões. Envelhecer, quase sem notar, antes mesmo de nos tornarmos jovens. Fernando Schuler é cientista político e professor do Insper
A lógica infernal da burocracia no Brasil

Artigo originalmente publicado na revista Época Por que não conseguimos reduzir a burocracia no Brasil? Tenho um amigo que resolveu abrir uma MEI e virar “micro empreendedor individual”. O cara foi lá, abriu a empresa e começou a trabalhar. Prestou alguns serviços até que um cliente disse que só lhe pagaria se ele abrisse uma conta pessoa jurídica. O sujeito foi no banco abrir a conta e lhe pediram a carteira de identidade. Ele havia perdido a carteira mas tinha o passaporte e a carteira de trabalho. Não deu. Foi no Poupatempo fazer a identidade e lhe pediram a certidão de nascimento. Mostrou passaporte e outros papéis mas não adiantou. Precisava da certidão. Ele era novo em São Paulo e pediu para um parente revirar as coisas do apartamento, em Curitiba. O cara achou e mandou pelo correio. De volta ao Poupatempo lhe pediram dez dias para entregar a carteira. Depois voltou no banco, entregou a papelada, desta vez com a carteirinha, e lhe prometeram que em até dez dias terá uma resposta da análise dos documentos. O dinheiro ainda não recebeu, mas, como bom brasileiro, não desiste nunca. A burocracia no Brasil é sempre perfeitamente lógica. Não é lógico mostrar a identidade pra abrir a conta no banco? Além disso, cá entre nós, custa alguma coisa mostrar a certidão para fazer a nova carteirinha? Custava alguma coisa o sujeito andar com o documento em uma pasta, organizado, ao invés de deixar em uma gaveta no apartamento antigo? Qual é exatamente o problema? Diria que é exatamente este: cada exigência burocrática tem sua lógica e poderia ser, com alguma dose de organização, atendida por qualquer pessoa ou empresa. É exatamente este o caso das regras que compõem o cipoal do pagamento de impostos, no Brasil. Cada uma tem sua explicação. Meu contador, aliás, é mestre em me explicar, sempre que eu fico nervoso, a perfeita razão de cada uma. No conjunto, é por causa delas que estamos em 181º entre 190 países no ranking do Banco Mundial que mede a facilidade para pagar impostos. Por isso nossas empresas gastam 2.038 horas todos os anos para lidar com tributos, contra 163 horas na média dos países da OCDE. Também é por isso que estamos em último lugar no ranking de encargos trabalhistas elaborado entre 29 grandes economias pela Rede Internacional de Contabilidade e Consultoria UHY, com sede em Londres. Não faz sentido limitar os contratos temporários a noventa dias? Não é lógico pagar 40% de multa sobre o fundo de garantia do funcionário demitido? Não é lógico, aliás, que o dinheiro do fundo seja gerido por um conselho de vinte e quatro pessoas, junto à Caixa Econômica? O pessoal não iria torrar tudo, se cada maluco pudesse decidir por conta própria o que fazer com o seu dinheiro? É tudo perfeitamente lógico, não é mesmo? Semana passada, o Ministro Henrique Meirelles, prometeu reduzir a burocracia para pagar impostos. A promessa já havia sido feita no ano passado, mas não é esse o ponto. Meirelles tem crédito, entre outras coisas por que foi o arquiteto da PEC do limite do gasto público. Ele diz que há um time de técnicos do Ministério trabalhando para descobrir que regras, exatamente, é possível “desregrar”. Me lembrou o novo vereador paulista, Fernando Holiday, e sua ideia de fazer um “revogaço” na cidade de São Paulo. Ao invés de criar novas regras, descriar. Achei a ideia muito boa. Oxalá ela inspire vereadores, deputados e grupos de cidadãos, Brasil afora. Apenas acho que nosso problema é muito mais amplo do que suprimir essa ou aquela regra tributária ou trabalhista. Vamos lá: por que precisamos de um título de eleitor? Por que cargas d’agua precisamos (eu mesmo, desatento, descobri isso tempos atrás) renovar a carteira de motorista a cada cinco anos? Pra que o pobre coitado que acabou de ficar desempregado tem que gramar na fila de uma agência do Sine para tirar o seguro desemprego? Revirar essas coisas é mexer com o Brasil barroco que nos tornamos. Não são apenas as duas mil horas que as empresas gastam para lidar com seus impostos. É o tempo incontável que perdemos todos os dias para carimbar o óbvio em cartórios e pagar multas de R$ 3,51 porque não fomos votar nos dois turnos das últimas eleições. País barroco e imensamente difícil de mudar. Por uma razão: em que pese concordamos que toda essa burocracia, no conjunto, passou do ponto, garanto que a opinião será outra quando passamos a analisar regra por regra, documento por documento, multa por multa. A cada regra corresponderá uma certa “racionalidade” e um grupo disposto a defendê-la. E mais: a supressão de cada regra não fará grande diferença na vida de ninguém, mesmo que a soma de todas as regras possa piorar muito a vida de todo mundo. Por essa razão prosaica, o desejo abstrato de fazer a grande mudança pode ser forte, mas é fraco o incentivo concreto para fazer cada reforma. É exatamente o mesmo problema enfrentado pelos projetos de redução do tamanho do Estado. A extinção de qualquer órgão público não resolverá o problema fiscal, ainda que uma redução coordenada de muitas repartições, autarquias, fundações, empresas e fontes de gastos não prioritários poderá oferecer uma resposta. Arrisco dizer que nos tornamos um país campeão em burocracia essencialmente porque o individuo, o “sem corporação”, é sub representado em nosso mundo político. Ninguém para pra perguntar, numa tarde quente de Brasília, ao se discutir uma nova regra, se ela é estritamente necessária e quantas horas da vida de um cidadão ela vai custar. É no silêncio dessas tardes quentes que perdemos a mão. Há um problema ético aí. Um punhado de gente por vezes bem intencionada toma decisões e todos pagam a conta. De bico calado. Encaramos o cartório, carregamos nossos documentos, nos adaptamos. Formamos filas, nos domingos de votação, pra “justificar a ausência”, pagamos as multas e corremos atrás da papelada. E de vez em quando damos um jeitinho. Não queremos saber
Lei Rouanet: hora de modernizar

A Lei Rouanet foi criada sob a batuta do então Secretário Nacional de Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, em 1991, na segunda fase do governo Collor. A antiga lei Sarney havia sido extinta e a ideia era fazer uma legislação de incentivo mais transparente e com maior controle público sobre o uso dos recursos. Lembro de uma longa conversa que tive à época com Rouanet, em uma vinda sua a Porto Alegre. Sua preocupação era criar uma lei de parceria público-privada, em que o governo – leia-se: os contribuintes – aportassem uma parte dos recursos e uma outra parte fosse investida pelas empresas. Essa foi a lógica que inspirou o que conhecemos como Artigo 26º da Lei Rouanet. A empresa abate 30% ou 40% do valor apoiado em seu Imposto de Renda, além de inscrever o valor como despesa, em sua contabilidade. No total, tem um abatimento real de pouco mais de 60%. Apoiando um projeto com R$ 100 mil, a empresa tira de seu caixa em torno de R$ 36 mil. Um bom negócio, supondo um bom aproveitamento em termos de marketing cultural e atitude junto à sociedade. A segunda maior preocupação de Rouanet era criar um lei que evitasse certos “excessos” registrados com a Lei Sarney. Havia rumores sobre desvios e apoios a projetos sem uma clara natureza cultural. Nunca soube nada objetivo sobre isto, mas vá lá. Esta era a preocupação. O foco do governo era de que o Estado deveria ter controle sobre o uso dos recursos. Aprovar projeto por projeto e depois analisar sua prestação contas. E mais: evitar qualquer subjetivismo na análise. O Estado não deveria ter opinião cultural. A lei Rouanet, com alguns deslizes, sempre foi assim: uma lei “não perfeccionista”. A aprovação de projetos sendo feita por uma comissão mista, a CNIC, formada por membros do governo e representantes de diversos setores culturais. A Lei “pegou”. Seu uso cresceu, ano a ano, e começou a surgir, no Brasil, um amplo setor especializado em marketing cultural. Lembro de Roberto Muylaert, Cândido Mendes e tantos outros. O foco era claro: se a empresa aporta recursos, era preciso que o investimento fizesse sentido do ponto de vista de sua estratégia de comunicação. Ocorre que, no final dos anos 90, a Lei foi modificada. O Ministério da Cultura atendeu à pressão dos produtores culturais e alterou a redação do Artigo 18, criando o incentivo de 100% para certos segmentos culturais (teatro, dança, música instrumental, livros de arte, entre outros). A modificação seguia a trilha da chamada “lei do audiovisual”, que oferece incentivos de 125% às empresas, para apoio a projetos audiovisuais. Isto é: para cada R$ 100 mil aportados em um filme, sai R$ 125 mil do bolso do contribuinte. A partir daquela modificação, boa parte do que se chama de marketing cultural, no Brasil, foi transformado um exercício de “aproveitamento fiscal”. Criou-se a ideia de que o dinheiro para a cultura “não custa nada”. As empresas fazem o seu marketing e os contribuintes pagam a conta. Não vai aqui uma crítica às empresas e produtores culturais. Agentes econômicos agem segundo incentivos, e isto não foi diferente com a lei Rouanet: a “dominância fiscal” passou a ser a regra do jogo. O aporte efetivo de recursos, com a Lei, ultrapassa R$ 1,3 bilhão/ano. O maior captador, no último exercício, foi uma produtora de grandes musicais, e o controle do Estado não impediu que a Lei fosse usada para financiar projetos de apelo comercial, como as turnês de Claudia Leitte e Luan Santana, o Cirque du Soleil e o Rock in Rio. A lei anda sob debate público, e talvez seja a hora de encarar algumas mudanças. A primeira pergunta a fazer, é: o Brasil ainda precisa de uma lei de incentivo à cultura? Em sua ideia original, a Lei deveria ser transitória. Favorecer o surgimento de um mercado cultural autossuficiente e desaparecer. Como em regra ocorre com os incentivos, ocorreu o contrário: o mercado se tornou dependente do dinheiro público. A segunda questão, é: não é hora de revisar a lógica do abatimento integral? Não é hora de retomar o projeto original do Secretário Rouanet, de fazer uma lei de parceria público-privada? Se for esta a intenção, me parece que há um caminho: eliminar a dicotomia entre os Artigos 18º e 26º, que discriminam as áreas culturais, e preservar apenas uma regra de incentivo. Ela pode oferecer 50% de abatimento e permitir a inscrição do valor do apoio como despesa operacional. Isto levaria o abatimento total a mais de 80%. É alto. Mas é um primeiro passo no retorno à lógica da parceria. Com uma vantagem: permite que a empresa enquadre metade do valor apoiado nos 4% de seu Imposto de Renda devido (limite máximo que a Lei autoriza). O apoio total irá, na prática, a 8% do imposto devido. O dobro do que hoje é praticado. Alguns dirão que isto faria diminuir os investimentos em cultura. Bobagem. Em pouco tempo, eles iriam aumentar. E com mais critério e qualidade. Torço para que a nova equipe do Ministério encare estas mudanças. Elas farão bem à cultura brasileira. Fernando L. Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e professor do Insper, em São Paulo.
Um golpe contra os pobres está em curso

Publicado originalmente na Revista Época A responsabilidade fiscal virou um saco de pancadas no Brasil atual. O Tribunal de Contas da União, por unanimidade, apontou graves irregularidades na gestão fiscal, em 2014, mas o governo diz que nada de mais aconteceu. Nada diferente do que fizeram “outros governos”. Diante de um gráfico, mostrando os pagamentos a descoberto, feito por bancos oficiais, a programas do governo, sem o devido repasse pelo Executivo, eminentes juristas e economistas “em defesa da democracia” dizem nada enxergar. Talvez seja a realidade que ande por baixo, no Brasil de hoje. Dias atrás li um artigo do professor da Universidade de São Paulo Vladimir Safatle, em um jornal paulista, reproduzindo a narrativa do “golpe”. Seu argumento era o seguinte: não há sentido em acusar a presidente em função das pedaladas fiscais, dado que, neste país, ninguém respeita um orçamento público. Orçamentos, no Brasil, dizia o professor, não passam de “mera carta de intenções”. E mais: que, se orçamentos valessem, “não sobrava de pé um só representante dos Poderes Executivos”. O texto poderia ser ofensivo a milhares de bons gestores públicos, Brasil afora, mas por certo ninguém deu bola. Desconheço se o referido professor algum dia analisou a execução orçamentária de um município ou Estado brasileiro. O curioso é que ele “sabe” que nenhum deles cumpre coisa nenhuma. Safatle segue a última moda da intelectualidade governista: se o PT, o melhor de todos os partidos, cometeu algum deslize, é óbvio que todos os outros já fizeram coisa muito pior. O partido pode até ter cometido algum pecado. Mas será sempre inocente, por definição, dado que ninguém é virtuoso o suficiente para julgá-lo. A lógica complementar, nesse argumento, é mais direta: que importância tem, afinal de contas, a ideia de responsabilidade fiscal? Se o governo ficou sem caixa, em algum momento de 2014, para honrar os repasses aos programas sociais (leia o quadro na página seguinte), não seria lógico mandar os bancos públicos pagarem a conta? Qual seria a alternativa? Deixar de pagar o Bolsa Família? O seguro-desemprego? As bolsas do Fies? Foi Lula que deu o tom desse argumento, logo no início do debate sobre as pedaladas fiscais. E ele tem sido seguido à risca pela intelligentsia oficial. Como de costume, a narrativa governista empurra alguns detalhes para debaixo do tapete. Um deles: a parte gorda das pedaladas fiscais foi feita para bancar os empréstimos a juros subsidiados, feitos pelo BNDES, dentro do PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, a empresas brasileiras. Lula poderia ter explicado que as pedaladas serviram ao “mercado”, primeiro, e em tese beneficiaram os mais pobres, depois. Sua base militante, por certo, entenderia. De qualquer modo, correto mesmo teria sido dizer que elas serviram ao governo, que driblou a contabilidade pública e ganhou as eleições em novembro de 2014. A “narrativa pela metade” de Lula explicita um paradoxo da democracia. Temas de gestão pública são, frequentemente, complexos, mas o discurso político requer simplificação. As pessoas dificilmente perderão um episódio de House of cards, ou uma boa cerveja, no fim do dia, tentando entender se as pedaladas foram uma “operação de crédito” disfarçada, e, portanto, vetada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou um simples “inadimplemento”, mera “tecnicalidade contábil”, como escutei de um intelectual amigo, dias atrás. Tudo funciona, no fim do dia, como um convite à irresponsabilidade, fiscal e hermenêutica. Talvez seja este “estado de irresponsabilidade” que democracias maduras aprendem a superar, com o tempo. Em maio de 2000, o PT votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Dois meses depois, o partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo, contra a Lei. A “narrativa” usada, à época, pelo partido, era de que a Lei faria mal aos trabalhadores. Tratava-se de uma imposição da “austeridade”, do FMI, do mercado financeiro, aquelas coisas de sempre. Cinco anos depois, já no governo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fazia autocrítica da posição do partido, dizendo que a responsabilidade fiscal havia se tornado “um valor da sociedade, de caráter suprapartidário e acima de questões pessoais”. A julgar pelo atual debate em torno do processo de impeachment, não poderia estar mais errado o simpático ex-ministro. Havia, é verdade, uma equipe econômica convencida do valor da responsabilidade fiscal, no início do primeiro governo Lula. Algo muito distante, porém, da ideia de um “valor compartilhado” em nossa cultura política. Isso não deveria ser assim, e quiçá a atual crise sirva para algum aprendizado. Responsabilidade fiscal é um valor estratégico, em primeiro lugar, para a estabilidade da economia. O descontrole das contas públicas está na raiz da inflação, e a inflação é o pior imposto que recai sobre os mais pobres. Quem vive de salário e não tem acesso a papéis que protegem o valor de seu dinheiro. A responsabilidade fiscal é, também, um valor essencial na democracia. Ao praticar uma pedalada fiscal, o governo está fraudando a vontade do legislador, no Congresso Nacional, a quem cabe aprovar a lei orçamentária. Aprovando um Orçamento deficitário, um Parlamento, por sua vez, pode estar enganando a sociedade, com a promessa de recursos inexistentes. Ou, ainda, comprometendo o futuro, com a contração de dívida pública. Há um problema de justiça entre gerações, aqui, que vai para além dos limites da democracia. Por fim, a responsabilidade fiscal é um valor fundamental para a simples sustentabilidade – leia-se, seriedade – na gestão de programas sociais. Observe-se o que ocorreu com o Fies. O investimento no programa saltou de R$ 7 bilhões para mais de R$ 13 bilhões, entre 2013 e 2014. A conta, devidamente “pedalada”, surgiu no exercício seguinte, quando o programa sofreu cortes severos. A irresponsabilidade fiscal é madrasta com os mais pobres, pelo simples fato de que são eles os usuários de programas públicos, escolas e hospitais públicos. A “esquerda” pode alimentar seus mitos, mas não é o “neoliberalismo” que sucateia os serviços públicos. É seu inverso: a cultura da irresponsabilidade fiscal, o estado gastador, frágil diante do corporativismo, tomado pela burocracia e pelo vezo patrimonialista que
É ético usar a sala de aula para “fazer a cabeça” dos nossos alunos?

Publicado orginalmente na Revista Época As aulas voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os exemplares e pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis as horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles livros. No fim, acho que entendi. O resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um claro viés ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica. Talvez livros assim existam, e gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo livro “manco”. E sempre para o mesmo lado. Com um adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no colégio. O viés politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda Star Wars: o lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão. No Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem mais sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história recente. No livro Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouca coisa se investigou”. Nossos alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e que o país assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”. Na página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na história brasileira, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, graças à “política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a economia crescer e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”. Lendo isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E fui em frente. Na leitura seguinte, do livro História Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de gerenciamento do tráfico e do crime organizado”, acrescentam os autores. Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”. O livro termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que talvez os anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”. O livro História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola (2001). FHC manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários países africanos, asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os especuladores; Lula beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma bandeira vermelha. Mas me contive. O padrão “João Santana” se repete no livro História para o ensino médio, da Atual Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”. Alguma menção ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal? Não. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”. No livro