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O fim da era Vargas

A era Vargas não termina, vai terminando. Fernando Henrique sugeriu ter feito uma parte do trabalho, com a quebra do monopólio do Petróleo; Itamar já havia dado um pequeno empurrão, com a privatização da Cia Siderúrgica Nacional; agora foi a vez de Michel Temer. Sua reforma altera uma centena de artigos da CLT, faz crescer a segurança jurídica no mundo do trabalho e cria modelos novos de contratação, como o trabalho intermitente. Seu lugar nos livros de história, goste-se ou não de suas mesóclises, está garantido.

A reforma trabalhista é, em primeiro lugar, perfeitamente legítima. A CLT foi criada por decreto, em meio a uma ditadura. A atual reforma é produto da democracia, de um amplo debate e uma votação amplamente majoritária em um Congresso eleito. No dia da votação haviam duas ou três centenas de pessoas protestando à frente do Congresso. Tentou-se fechar uma via pública, em São Paulo, sem grande sucesso. Algumas senadoras tentaram uma performance, ocupando na marra a mesa do Senado por sete longas horas. Ninguém deu muita bola.

Vamos lá: não se fez nenhuma revolução. Ninguém mexeu no que se habituou chamar de “direitos fundamentais do trabalhador”, como o salário mínimo, seguro-desemprego ou o 13º salário. A lista de direitos está toda lá, chancelada pela reforma e não passíveis de negociação coletiva. Ninguém fez o País voltar aos “tempos da escravidão”, como se escutou de gente bacana nos debates da semana.

O que esteve realmente em jogo, nesta reforma, foi um pequeno passo em um caminho que não termina: o ajuste de instituições velhas a novas tecnologias. E ao aprendizado da vida. Quando Getúlio Vargas assinou a CLT, em 1943, dois terços da população vivia no campo e 55% dos brasileiros eram analfabetos. Fazia sentido uma legislação rígida e ultra protetora? Cada um pode julgar. Em 2017, em um país 85% urbano, com acesso universal à educação, e em meio a uma revolução tecnológica, faz sentido seguir com a mesma rigidez? Alguém ainda acha que ainda cabe ao Estado regular o tempo de almoço ou a distribuição dos dias de férias dos funcionários das empresas? A reforma não retira o Estado-tutor de cena, no Brasil, mas abre espaços para que empregados e empregados atuem com um pouco mais de autonomia.

Há riscos, por óbvio, neste processo. O que irá contar como “remuneração de qualquer natureza” para o trabalho no campo, em regiões mais pobres e isoladas no País? Em que circunstâncias um “médico de confiança” dará um atestado para que a gestante possa trabalhar em locais de “insalubridade média”? Em situações extremas, falar em “livre negociação” pode não passar de um truque retórico. Daí a necessidade de regras e da vigilância social. O ponto é que não há evidências de que uma legislação rígida, como a que temos hoje, efetivamente proteja aos mais pobres. Conforme observou o economista José Márcio Camargo, 60% dos trabalhadores na faixa dos 20% mais pobres atuam na informalidade. “A CLT exclui os mais pobres”, diz o economista. Talvez por isso não se tenha visto ninguém nas ruas em sua defesa, nesses meses todos.

A CLT se tornou, desde há muito, um exemplo acabado do argumento das “consequências indesejadas”. O termo foi popularizado pelo sociólogo americano Robert Merton, e diz o seguinte: uma regra pode ser muito generosa, na teoria, mas produzir, na prática, péssimos resultados. A CLT obrigava as empresas a contar como hora trabalhada o tempo de transporte oferecido aos funcionários. Na prática? Corta-se a oferta de transporte. Exemplos não faltam: empresas que não contratam serviços de firmas individuais ou trabalhadores autônomos, ou mesmo proíbem o home-office, com medo de configurar vínculo trabalhista. Viramos o País da “proteção de papel”, na feliz expressão do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho.

A reforma, no fundo, é um passo ainda tímido em um terreno nebuloso da vida pública brasileira: o da liberdade individual. Talvez pela formação ibérica ou pela raiz tupi-guarani, o fato é que a liberdade “econômica” tem funcionado como uma espécie de não-valor em nossa cultura política. Temos sido um País viciado em razões de “utilidade”: queremos saber se novas leis trazem desenvolvimento ou geram empregos. Ou qualquer coisa que possa ser vista como “objetiva” em uma reunião de gente grande, em Brasília. Dessa vez a conversa foi diferente. A lei caminha na direção contrária da tradição. Ela fala em liberdade para contratos “não contínuos”, para o sujeito negociar seu banco de horas e decidir se paga ou não o sindicato. Alguma coisa mudou, ou anda mudando, em Pindorama.

É evidente que ainda estamos diante de uma legislação imensamente paternalista. Ainda achamos crucial que a lei diga caber ao funcionário a “higienização” de seu uniforme de trabalho, ou coisas de gosto metafísico, como a permissão de dividir as férias em três pedaços, “sendo um deles não inferior a quatorze dias corridos”. Curioso é observar que a reforma oferece um pouco mais de liberdade para negociar contratos para os brasileiros que recebem mais de R$11.052,62 por mês e tem curso superior. A ideia é proteger os mais fracos tirando deles a liberdade para negociar. Cada um faça o seu juízo sobre isto.

Tempos atrás li uma entrevista do ex-Presidente da FGV, Luís Simões Lopes, homem de confiança de Vargas e criador do antigo DASP, o Departamento Administrativo do Serviço Público. Na entrevista, ele chama a ditadura do Estado Novo de “recesso parlamentar” e mostra como foi possível, graças ao estado de exceção, modernizar o Estado brasileiro. “Os políticos”, diz, nunca pensam no futuro do País, só em seus votos”. O vezo autoritário parece ecoar do fundo da história republicana. Na democracia, é inexorável, os políticos farão a festa.

A tese foi retomada em grande estilo no ciclo militar de 64. O curioso é que muita gente boa, em nossa historiografia, comprou esta ideia vaga. O autoritarismo, desde ao menos os anos 30, teria sido o preço a pagar pela modernização do País.. Com Júlio Prestes estaríamos condenados a uma eterna república velha, como num museu de cera. O reformismo gradualista seria inviável no Brasil.

Nossa história recente vem colocando em cheque esta suposição. A democracia brasileira tem se mostrado capaz de modernizar o País. Foi assim com o Real, a Lei da Responsabilidade Fiscal, a PEC do gasto público e, agora, a reforma trabalhista. Ok, há em tudo isso uma lentidão exasperante e uma enorme agenda pela frente. Ainda somos o país que gera três milhões de processo trabalhistas, todos os anos, e andamos entre os dez piores países do planeta em complicações tributárias, no ranking do Banco Mundial.

Mas o recado está dado: quem sabe os políticos sejam capazes, ao contrário do que imaginava Simões Lopes, de tomar decisões difíceis e pensar, mesmo em um ano complicado como este, para além das próximas eleições.

 

 

 

 

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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