Governo dos homens?

“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz. Fomos silenciadas!”, diz o voto da Ministra Rosa Weber, a favor da legalização do aborto até três meses de gestação. O texto denuncia a “discriminação estrutural”, na sociedade brasileira”, a “política criminal do Estado”, com o aborto, e defende a “interseccionalidade” na abordagem do assunto. A Ministra bem traduz perfeitamente a visão de uma parte da sociedade. Algo em torno de 44% da população, segundo o último Datafolha. Seu argumento síntese diz que o Artigo 5º da Constituição, que não protege “o feto como uma pessoa constitucional, titular de direitos fundamentais”. É uma opinião válida, como costumava dizer um querido professor, na faculdade. Assim como opiniões contrárias, vinculando a “dignidade da vida, desde a concepção”, à proteção do feto. O texto diz que a Constituição permite muitas interpretações e que é preciso “uma instituição não eleita e imparcial” para decidir. Achei isto curioso. Como conciliar uma posição perfeitamente parcial e apaixonada, como o voto da Ministra, com a pretensão de expressar uma racionalidade “imparcial”, em uma sociedade dividida? O tema se tornou recorrente, em decisões de nossa Suprema Corte. É o caso da Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso, em 2016, definindo regras de compliance para nossas empresas públicas. Uma delas exigia uma quarentena de 36 meses, por parte de dirigentes políticos, com amplo reconhecimento de que isto foi benéfico para frear a corrupção e melhorar o desempenho das empresas. Seis anos depois, o Ministro discordou. Concordou com a visão do PCdoB, autor da ação, de que aquelas regras criavam “discriminações”, e que aquele prazo de 36 meses era “desarrazoado”. Por que não seria razoável? Porque sem fundamento na “realidade fática”. E por que? Por não ser “aceitável de um ponto de vista racional”. E por que não seria racional? Por não ser afeito a “pessoas equilibradas”. Isto é, “pessoas razoáveis”. Deu para entender? O argumento circular é próprio de quem não precisa, no fundo, convencer ninguém. Basta mencionar alguns princípios genéricos da Constituição, como “igualdade”, “liberdade”, “dignidade”, “cidadania”, “não discriminação”, e derivar daí alguma conclusão. Um tipo de viés de confirmação constitucional: busca-se na Carta os conceitos que melhor se encaixam na defesa das posições que se quer defender. Tudo perfeitamente cabível no debate democrático. No Congresso, na sociedade, onde há o contraditório, os cidadãos têm voz e a engenharia difícil e barulhenta da democracia faz valer sua força. Quando feito pelo judiciário, em matérias que avançam sobre prerrogativas dos demais poderes, temos o que o Professor Ran Hirschl, da Universidade de Toronto, chamou de “juristocracia”. Ele diz que contínua transferência de poder dos parlamentos para as cortes superiores funciona como um tipo “pacto entre elites hegemônicas” para a proteção de sua agenda política. A tese é sedutora, mas perigosa. É possível imaginar que exista uma elite, em algum sentido da palavra, favorável à legalização do aborto, em contradição com a maioria da população. Ou quem sabe uma elite sindical favorável a volta de uma “contribuição” aos sindicatos, na contramão do parlamento. O ponto é que a dicotomia “povo x elite” é muito pouco precisa. O que parece ocorrer é que o STF, de fato, soube se afirmar, ao longo do tempo, como um tipo de poder moderador. E o fez pela convicção e habilidade de seus membros, por funcionar como árbitro entre grupos de pressão, e pelo vácuo de poder deixado por um legislativo dividido e letárgico no cumprimento de muitas de suas funções. Em especial, o fez por contar com o apoio de setores hegemônicos na sociedade. No mundo jurídico, em boa parte dependente de decisões da própria Corte, na academia e na polarização política mais ampla da sociedade, na qual a maioria do Supremo adotou uma posição bastante evidente. Se tomarmos medidas de recentes como a censura, o marco temporal das terras indígenas e a legalização da maconha, há um claro alinhamento. O Supremo surge como porta-voz do “progressismo”, contra o “conservadorismo” do Congresso. A pergunta é se cabe ao judiciário, em uma república, assumir esta ou aquela posição política. Muita gente acha que sim, no embalo das simpatias e antipatias políticas. Mas talvez isso não devesse ser assim. Existe uma mecânica elementar nas democracias: quem faz as leis e define políticas publicas deve se submeter ao julgamento dos cidadãos. Se um parlamentar legisla ou governa mal, os eleitores devem ter a chance de puni-lo, nas eleições. O sistema é accountable, isto é: faz com que o poder responda aos cidadãos. E é dos cidadãos que ele é retirado quando políticas públicas são definidas não por um representante eleito, mas por um ministro vitalício. Alguns dirão que os cidadãos comuns são míopes, sujeitos à “desordem informacional”, como já se escutou do próprio Supremo. Isto é nítido em diversas de suas decisões, apelando à “racionalidade”, ao dever de “curadoria”, ao senso das “pessoas equilibradas”, à hipossuficiência do “eleitor ordinário”. Visão que por vezes me lembra da “epistocracia”, ou o “governo dos que sabem”, do cientista político americano Jason Brennan. Lamento dizer, mas há o vezo de uma elitista aí, que confronta a pedra angular de todo edifício democrático moderno, dada pelo princípio da soberania popular. Elitista e perigosa. As instituições da democracia liberal, com seu delicado equilíbrio entre os poderes, freios e contrapesos, não são um preciosismo intelectual. São o resultado de um difícil aprendizado. Elas expressam um tipo de racionalidade de longo prazo, capaz de produzir coesão em sociedades divergentes, marcadas por múltiplas fraturas que (felizmente), não irão desaparecer, pois fazem parte daquilo que somos. Sua preservação, ao longo do tempo, exige um contínuo exercício de renúncia. A cada vez cedemos a tentação do uso indevido do poder, que flexibilizamos a regra do jogo, transferindo uma prerrogativa legislativa para um poder não eleito, todo o edifício republicano é fragilizado. Talvez sem querer, nos esquecemos de uma velha lição de Norberto Bobbio, de que as democracias liberais se definem como o governo das leis, e não dos homens. É esta, no fundo, a grande lição iluminista, feita de
O Natal Cancelado

“Depende do contexto”, respondeu a reitora da Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magil, no Congresso Americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de judeus”, na universidade. Acabou renunciando. Teria sido uma resposta infeliz, ainda que “legalista”, na visão do chairman da universidade, Scott L. Bok. Numa alegação puramente formal, seria possível sustentar que a retórica de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação contra este ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isto que estava em jogo. Se a pergunta fosse: “você considera admissível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou pessoas negras, na universidade”, é difícil imaginar que a reitora (ou qualquer pessoa minimamente razoável) fizesse aquela relativização. A conclusão óbvia é a de que o antissemitismo seria menos “problemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado. O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a discriminação saiu do universo do Campus Universitário e foi para o Congresso. Para o grande debate, na sociedade. É algo comum no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero, raça e orientação sexual. Nesta lógica, pouco importa que o Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquininha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opressor”, aliado do ocidente (!). E a violência do outro lado um tipo de “reação”. Ou ainda: uma reação perfeitamente justificada, quiçá de “inteira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado, todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas doações, das universidades, e uma ampla reação se formou. Niall Ferguson resumiu a questão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insano que vivemos, nos últimos anos. É possível que Ferguson tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “racismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos grandes jornais, a partir dos anos 2010. Agora os ventos mudaram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pesquisas mostrando que aqueles temas perderam terreno, nos últimos anos. “A terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drasticamente a procura por executivos de “diversidade”, nas empresas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e entender o que as pessoas de fora estão dizendo”, ao invés de simplesmente impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões ideológicas, nas universidades, apresentaram um recuo, segundo os dados da Fundação para os Direitos Individuais em Educação. Explicar este fenômeno nos faz voltar ao tema dos limites. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingleses anunciando que o Imperador romano Heliogábalo, no século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias como esta, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, passaram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma agenda perfeitamente legítima de inclusão foi se convertendo em um radicalismo algo exótico e avesso ao bom-senso. A partir daí, a reação difusa, na sociedade. Muitos intelectuais tomaram à frente, mas a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e acontecimentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão pateticamente ideológica, no último ENEM, sobre o agronegócio. A cada semana observo este conflito silencioso nas escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas e comportamentais muito específicas. Por vezes é a imposição de uma educação “étnico-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gênero, devidamente enviesados; em outros casos é a mais pura mesquinharia, como vi ainda esta semana, em uma escola bacana de São Paulo, proibindo uma foto das crianças com aqueles gorrinhos de papai-noel, para celebrar o final de ano, no que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”, me disse, desanimada, a mãe de uma aluna. O que se observa nestes casos é uma marca de nossa época, talvez acentuada pela revolução digital: a dicotomia entre a cultura dos ativistas e os valores do “common sense”. Pesquisa do The Hidden Tribes mostrou que os “ativistas progressistas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são ativos, no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultraconservadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento, e não é por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou “exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que lê no Twitter, provavelmente terá uma visão distorcida, e muito mais radical, do que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoáveis, sem obsessões políticas e dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militante. Ele é amplamente minoritário, mas vai a todas as reuniões, é articulado e segue uma agenda da qual não abrirá mão. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês, sugerir atividades. E por nada desse mundo revisará seus bem-consolidados pontos de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “erro”. E como tal, precisam ser corrigidos. Vai ai um desafio. Em especial, na educação. Ele foi bem formulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política”, e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo: universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se virar por conta própria. O que é realmente inaceitável é que a doutrinação seja feita nas escolas, diante de crianças sem capacidade de se contrapor à “autoridade intelectual” de
Não estamos em guerra

Meu último artigo gerou uma boa discussão. Uma das observações que recebi lembrava de nossa Lei antirracismo e argumentava que era correta a ação da Confederação Israelita contra o jornalista que relativizou o terrorismo do Hamas, fazendo menção à frase do Deng Xiaoping sobre “não importar a cor dos gatos, desde que cacem os ratos”. Há um ponto interessante aqui. A Conib, como qualquer outra organização, tem todo direito de mover uma ação, nos termos da lei. Caberá à justiça decidir a questão. Vale o mesmo para os crimes contra a honra. Se alguém se sentir caluniado ou difamado, pode acionar a justiça. Ações desse tipo, respeitando o devido processo, não ferem, mas reforçam o princípio da liberdade de expressão. Não se deve confundir uma ação privada, à posteriori, fundada em lei, com atos de censura prévia e “de ofício”, amplamente praticados no Brasil, nos últimos anos. Agradeço às observações feitas ao meu texto, e digo aqui que é do debate de ideias franco e cordial que se faz uma grande democracia. Outra critica que recebi diz que vejo a liberdade de expressão como um “direito absoluto”. Não é o que penso. Até conheço algumas pessoas que defendem essa ideia, mas não é o meu caso. A liberdade sempre será regulada. A pergunta real é sobre como isto será feito. A partir de critérios restritos e bem estabelecidos, com base em lei aprovada no parlamento? ou a partir de critérios ad hoc, abertos a todo tipo interpretação e discricionariedade por parte de quem detém o poder? Ainda na outra semana vi um exemplo disso. Um Ministro declarou que seria crime “comemorar o 8 de janeiro”. Na sua opinião, o 8 de janeiro foi um “golpe”, e comemorar um golpe seria crime. O exemplo é banal, mas está lá. Não há lei alguma no País dizendo que não se possa comemorar a tal data (seria de péssimo gosto, isso sim). Aquilo é simplesmente a opinião de uma autoridade, feita de um conjunto muito vago de interpretações. Um pouco a crônica do Brasil recente. Uma postagem, um documentário, um papo no Whatsapp, qualquer coisa pode ser um crime, desde que na opinião da autoridade aquilo seja um crime. Razões? A “verdade”, o “ódio”, não importa muito. Trata-se de uma visão com apoio na sociedade, mas vejo um crescente cansaço. Cada vez mais gente se dando conta que a intervenção arbitrária nos direitos individuais e a falta de isonomia nas regras do jogo é menos uma solução e mais uma causa da tensão política, no País. Há uma outra tradição que tenta compatibilizar a preservação do mais amplo “mercado de ideias” e os demais valores que prezamos, como sociedade. Sua melhor expressão (mas não a única) é o longo aprendizado em torno da Primeira Emenda à Constituição Americana. Sua base é a clara distinção entre o universo da “opinião” e o da “conduta” das pessoas. Gustavo Maultasch trata disso em seu livro “Contra toda a Censura”, cuja leitura recomendo vivamente. A distinção vem de longe. Está lá no clássico de John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”, quando ele diferencia uma opinião na imprensa, culpando a propriedade privada e os comerciantes de milho pela fome, e esta mesma opinião em um discurso irado, diante da multidão furiosa, ameaçando um comerciante de milho à frente de sua casa. O ponto de Mill: a opinião só deve ser punida “se for provável que um ato violento resulte daquela manifestação”. No Brasil, poucos traduziram melhor esta distinção do que o Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto minoritário no caso Ellwanger, em 2003. A questão era conceder ou não um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, escritor que relativizava a história do holocausto, entre outras barbaridades. O Ministro Marco Aurélio fez uma dura defesa do direito à expressão, dizendo que ele se prestava precisamente para as “ideias controversas, radicais, minoritárias, desproporcionais”. E acrescentou: “a única restrição deve ser quanto à forma da expressão”. E fez a distinção: haveria crime se Ellwanger “em vez de publicar um livro […], distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre”, com dizeres do tipo “vamos expulsar estes judeus do País”. A simples defesa de uma tese, por estúpida que fosse, não configuraria crime. A tese do Ministro se aproxima do clássico critério formulado por Oliver Holmes, na Suprema Corte Americana, em 1919: não havendo “perigo real e imediato” em um discurso, ele deve ser protegido. O argumento seria depois detalhado pelo Juiz Louis Brandeis, em um caso envolvendo a ativista comunista Charlotte Whitney. “O medo de danos graves”, diz ele, “por si só, não pode justificar a supressão da liberdade de expressão”. E foi direto: “se houver tempo para expor a falsidade, para reverter o mal pela educação, o remédio a ser aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado”. A tese foi confirmada em um julgamento clássico, no final dos anos 60, quando um, dirigente da Ku Klux Khan, Clarence Brandenburg, fez um discurso atacando os direitos civis, nos Estados Unidos. Entre outras coisas, disse que os “negros deveriam ser devolvidos à África” e os “judeus devolvidos a Israel”. Seu discurso era odioso, mas seu direito foi defendido junto à Suprema Corte por um advogado judeu, Allen Brown, e uma jovem advogada negra e progressista, Eleanor Norton. Eles ganharam. Norton se tornou uma grande ativista. E sempre explicou que não lutava por este ou aquele discurso, mas pela preservação de um princípio: que não deve caber ao Estado decidir “quem e o que se pode falar”. Algo que “por vezes me obriga”, acrescentou, a “defender pessoas que jamais me defenderiam”. Na vida americana, a tese de Brandeis e Holmes se tornou majoritária; No Brasil, aquela posição similar do Ministro Marco Aurélio, minoritária. Quem teria razão? Não sei. É possível que a tradição de Madison, Mill, Brandeis e Oliver Holmes esteja errada, e certos estejamos nós. Com direito a uma pergunta sobre quem somos “nós”. Escrevemos uma Constituição protetiva de direitos, derrubamos a lei de Imprensa, a lei de segurança nacional, vedamos
Soma Variável

“Ninguém deveria ter um bilhão!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de um bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passar da quota de um bilhão? Se ela ficar com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de um bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então porque eu iria continuar trabalhando, tomando risco”? Por esporte? E se ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá… Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia”, que a riqueza dos 5 mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-mad-man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um. Não há nenhum jogo de soma zero, funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas. Me lembro quando li “O Capital no Século XXI”, do Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (de “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim, De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “vamos seguir o Stiglitz”. “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história. Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a R$ 3.208 (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas no fundo mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É um discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “à favor”. É chato, complicado, exige buscar eficiência em política públicas, demanda soluções de mercado, em regra contraintuitivas, com resultados de longo prazo. E dá muito menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana . Indermit Gill, do Banco Mundial, tem uma sugestão bastante simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem sucedidas na redução da pobreza. Países do sudeste asiático, como a Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnam. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação. Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”, e coisas do tipo. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2,6 mil. O País que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isto não acontece por que “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, estabilidade das regras, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que haviam por lá. Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development, avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a
A ponte do rio das Antas

A ponte ruiu em setembro do ano passado. Foi aquela enxurrada, no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro que ligava Nova Roma do Sul ao mundo se foi. Os governos estadual e federal colocaram a nova ponte no orçamento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mobilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto, a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6 milhões, ponte simples que resolve o problema da comunidade. “Ainda sobrou um milhão”, diz o presidente da Associação que comandou o processo. “A comunidade agora vai se reunir”, diz ele, “para ver o que fazer com o dinheiro”. Quando li sobre isto me lembrei de Tocqueville. De sua seus relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena escala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos de 1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-se para tudo, e aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Não apenas como uma forma resolver problemas, mas como um modo ativo de exercício da democracia. Ao invés de esperar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comunitário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de Nova Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Tocqueville provocou contando como milhares de americanos haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parecemos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas acontecendo no País. E vale à pena prestar atenção. A colônia italiana e alemã tem uma longa tradição de associativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”, como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu, neste episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra, ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas uma ponte? Nova Roma tem coisa de quatro mil habitantes. É evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali. “Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger Bregman escreveu um livro instigante, “Humanidade: uma história otimista do homem”, argumentando que foi exatamente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jonathan Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o auto interesse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que manda um pix com um pedacinho de sua poupança para pagar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que depois desfila em um velho Aero Willis, festa de inauguração. E disso tudo extrai uma secreta felicidade. Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo. O Governador Eduardo Leite explicou que o Estado tem um projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O problema não deste ou daquele governo, mas da estrutura da máquina pública, no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso Estado é eficiente para executar um programa de distribuição de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em larga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quando a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Economy, ocupamos o constrangedor 130º lugar, em eficácia governamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito aprendeu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a depender o mínimo possível dos serviços do governo. A notícia interessante é que o País foi desenvolvendo um contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade, ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engrenar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo deve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Paulo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as Organizações Sociais, na reforma do Estado conduzida por Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pesquisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma OSESP, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais públicos do País. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que permitiu reduzir 20 para perto de 11 meses o tempo de construção das escolas infantis, em Belo Horizonte, fazer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da administração pública atual: governo focado nas funções estratégicas; setor privado fazendo a execução e a gestão, na ponta. Seja uma empresa ultra especializada, seja uma associação comunitária, no interior do Rio Grande do Sul. É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocqueville descreveu a América do início do século XIX. Na última edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição, entre 142 Países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei de perto a doação de mais de R$ 170 milhões para a Fábrica de Vacinas, do Instituto Butantan. A questão é como transformar isto em
A traição dos intelectuais?

A imagem é chocante. Aquele vídeo da mulher fanática invadindo uma pequena loja, em Arraial D’Ajuda, e agredindo a lojista judia. O que surpreendeu foi o dia seguinte. “Não sou antissemita”, diz a agressora, dia seguinte. Seria o que, exatamente? Vai aí a imagem trágica de uma doença do nosso tempo. A doença que leva militantes a achar boa a ideia de boicotar empresas judias. O gosto amargo daquelas manifestações de dezenas de grupos acadêmicos de Harvard, acusando Israel como “inteiramente responsável” pelo barbarismo contra seu próprio território. Ou quem sabe a constatação irônica do jornalista David Herman, de vivemos um tempo em que “você pode pedir genocídio contra os judeus, mas está frito se discutir a questão dos direitos trans”. Não me surpreendo. São as hierarquias da cultura. Sempre convivemos com a ideia da “barbárie tolerável”, e não haveria de ser diferente, agora. Quando o grupo palestino “Setembro Negro” fez aquele atentado nas Olimpiadas de Munique, em 1972, sequestrando e matando 11 atletas israelenses, algo parecido aconteceu. Jean Paul Sartre escreveu um texto dizendo que havia uma “guerra” entre Israel e os palestinos, e que “a única arma dos palestinos é o terrorismo”. “Uma arma terrível”, reconheceu, mas “a única que os pobres oprimidos”, poderiam usar para “mostrar sua coragem e seu ódio”. Ninguém, que eu saiba, fez uma defesa assim tão explicita do terrorismo, por agora, como Sartre. Mas andamos muito perto disso. Foi este o tema de um artigo duro escrito pelo historiador Niall Ferguson. O artigo faz uma referência a um livro clássico de Julien Benda, no entre guerras, “A Traição dos Intelectuais”, sugerindo uma não tão sutil semelhança entre a atual inclinação política de boa parte da academia americana, e sua relativização do terrorismo, com a capitulação do mundo universitário alemão ao nazismo, nos anos 30. “Apenas se nossas grandes universidades conseguirem restabelecer a separação entre a ciência e a política”, diz ele, “terão a certeza de evitar o destino de Marburg e Königsberg”. Ferguson exagera. É falta de senso de proporção comparar o que se passa no mundo woke atual com a Alemanha nazista. Ferguson acerta quando faz uma referência a Weber. Mais especificamente, ao discurso sobre “A Ciência como Vocação”, dado em Munich, no final da Primeira Grande Guerra. Seu argumento era de que ciência e política são terrenos essencialmente distintos. A ciência deseja a verdade. É sua paixão. Diante de novas evidências, o cientista precisa estar disposto a “trair” sua hipótese, ou sua tese por inteiro, desde que isto o faça chegar mais perto da verdade. A política inverte a equação: seu problema é como fazer a realidade convergir em uma certa direção. Seu foco é a “missão”, não a verdade. Por isso estas coisas jamais deveriam se misturar. Ferguson sugere que tudo piorou na última década, com seus cancelamentos, sua paranoia em torno das “microagressões”, o reino dos ativistas nas universidades e as hordas de valentões de sofá, nas redes sociais. Seu erro é imaginar que os intelectuais tenham “traído” um pacote de valores associados à liberdade individual, ao qual nunca juraram fidelidade. Por vezes esquecemos que a grande tradição liberal que vem de Montaigne, Locke, Madison, Voltaire ou John Stuart Mill, expressa apenas um pedaço da formação moderna. É sua a base de valores que Ferguson sugere ter sido traída, nestes tempos difíceis, por boa parte do nosso progressismo intelectual. Seu exemplo talvez mais eloquente seria aquela frase da reitora de Harvard, Claudine Gay, no Congresso americano, dizendo que dependeria do “contexto” punir uma defesa do genocídio de judeus, na Universidade. A traição é o duplo padrão. O fato óbvio que ela não flexibilizaria em relação a outros grupos humanos, sejam mulheres, negros, indígenas, pessoas trans, um tipo de violência que ela friamente relativizou em relação aos judeus. Não acho que seja um bom caminho julgar uma frase, de modo isolado, em um debate difícil. O que de fato incomoda é uma mistura do duplo padrão, no julgamento, com uma difusa relativização do terrorismo, que tantas vezes assistimos. Thomas Sowell capturou bem o problema, em sua “Sociologia dos Intelectuais”, sugerindo que ao menos uma parte desse problema se deve ao tipo de relação que os intelectuais estabelecem com a verdade. A lógica é próxima a de Weber. Se um engenheiro erra no cálculo de uma viga de concreto, o edifício desmorona, e ele será processado. Vale o mesmo para um médico cirurgião. Nada disso se passa com os intelectuais, chamados a falar sobre infinitos assuntos, sobre os quais entendem muito pouco (a economia é o caso mais óbvio), ou sobre os quais costumam ter ideias preconcebidas. E tudo bem. Foi assim que Sartre pode atestar “a mais completa liberdade de pensamento”, na União Soviética, e o Hamas pode surgir como um legítimo grupo de resistência contra uma potência opressora. E igualmente, tudo bem. O erro de Sowell talvez seja o de confundir a atividade intelectual com um tipo “sabedoria” para julgar com base em critérios e bom-senso. E em especial reconhecer, à moda socrática, aquilo não se sabe. E que, portanto, não se deve julgar. O problema é de fundo ético. Quando Albert Camus lançou seu O Homem Revoltado, em 1951, irrigou Sartre e boa parte da intelligentsia francesa ao sugerir que a “revolta” deveria se dirigir contra toda forma de opressão, independente de onde viesse. Camus foi chamado de “idealista”. Adepto de uma “moral de cruz vermelha”. O próprio Sartre entrou em campo, dizendo que vivíamos em um “mundo dividido”, e que era preciso escolher entre a adesão ao sovietismo ou a “fuga”. A indiferença diante da “opressão”. Era precisamente a armadilha fácil na qual Camus se recusa a cair. Em seu caderno de notas, ele reconhece sua solidão. Em uma carta à esposa, Francine, ele diz estar “pagando caro por aquele livro”, sobre o qual reconhece suas dúvidas. “Tenho dúvidas sobre mim mesmo”, escreve. Tivesse apenas certezas, é provável que estivesse ao lado de Sartre, marchando em algum pelotão intelectual. Camus havia sido um dos poucos intelectuais
Sobre os que dizem não

A história é conhecida, e bastante constrangedora. Um fazendeiro é pego em um automóvel praticando sexo com duas meninas, de 14 e 13 anos. Condenado a 8 anos de prisão, recorre. Na segunda instância, é absolvido. O magistrado que relatou o caso diz que era “crível” que o sujeito confundisse a menina com alguém maior de 18 anos e que, afinal de contas, a menina era uma “bêbada” e “prostituta”. O Conselho da Criança e do adolescente lamentou o fato, dizendo que o estuprador merecia uma “pena exemplar”. E não existe “sexo consentido” com uma menina de treze anos. Está bêbada? Deve ser protegida, não abusada. Só um País inteiramente doente pode empurrar uma coisa dessas para baixo do tapete. Pois bem, um jornalista, Tiago Pavinatto, usou palavras fortes, em uma rádio, para se referir ao magistrado que relatou o caso. A emissora não gostou e mandou que ele se desculpasse. Pavinatto disse não. Terminou demitido. Seu gesto ganhou alguma notoriedade. Em um País em que o medo se torna o pão de cada dia, alguém disse não. Pode-se concordar ou não com o gesto de Pavinatto. Muita gente acha que ele poderia ter feito uma crítica mais suave, e deve haver quem concorde, discretamente, com o magistrado. De minha parte, o que fascina é o gesto. O fato de que alguém, em um certo momento, decida pagar o preço de andar na contramão. E o faça em nome de algumas convicções. Ainda agora ando acompanhando o caso bem mais complicado de Jordan Peterson e sua disputa com a Associação de Psicólogos de Ontário, no Canadá. Peterson é um tipo politicamente incorreto e foi “condenado” pela Associação a fazer um “curso de reeducação digital” em função de meia dúzia de tuites sobre assuntos variados. Em um deles, Jordan diz achar que uma modelo obesa “não era bonita”; em outro, chamava o Justin Trudeau, o primeiro-ministro pop do Canadá, de “puppet”. Uma “marionete”, ou coisa assim, em função de decisões que ele tomou na pandemia. A associação decidiu que ele não estaria apto a atuar como psicólogo e exigiu que fizesse o tal curso. Jordan disse não. Recorreu à justiça e perdeu. Se for mesmo obrigado a fazer o curso, diz que transformará tudo em um espetáculo sobre a intolerância canadense atual. Caso isso aconteça, diria que será um strip-tease do ridículo contemporâneo. Dizer não, por vezes, pode sair caro. Meu caso favorito é do Oscar Wilde. Ele namorava o Bosie, filho do Marquês de Queensberry, era casado e a homossexualidade era crime, na Inglaterra do final do século XIX. Wilde era uma estrela. Havia acabado de lançar “The Importance of Being Earnest”, era ovacionado nos teatros londrinos e tinha uma sedução parecida com Jordan Peterson pela ironia debochada de quem anda na contramão da cultura. O pai do rapaz um dia lhe mandou um bilhete agressivo, chamando Wilde de “sodomita”, em uma evidente ameaça. Wilde poderia ter recuado, mas disse não. Resolveu processar Queensberry ele mesmo, e a partir daí cavou sua desgraça. O processo virou, o Marques demonstrou facilmente que ele era, de fato, um homossexual, o que lhe rendeu dois anos de trabalhos forçados, boa parte do tempo empurrando um moinho, como um cavalo, na prisão de Reading. Jordan Peterson talvez ganhe alguns milhares de seguidores, com sua petulância. Wilde morreu à mingua, em um hotel barato, em Paris, poucos anos depois. É evidente que seu gesto se tornou icônico. Eu mesmo fui até o Cadogan Hotel, em uma noite quente de Londres, apenas para capturar um pouco da atmosfera em que Wilde passou sua última noite, antes da prisão. Consta que ele bebeu muito naquela noite, e por muito tempo mais um bandido do que herói, e tremendamente embaraçoso pronunciar seu nome, na Inglaterra. Heroína mesmo foi Rosa Parks. O ônibus em que ela se recusou a levantar e ceder o lugar aos passageiros brancos conheci no magnífico Museu de História Afro-Americana, inaugurado pelo Obama, em Washington, e que ninguém deveria deixar de visitar. Naquele primeiro de dezembro de 1955, porém, em Montgomery, no Alabama, estado segregacionista do sul dos Estados Unidos, as coisas eram bem mais complicadas. Ela era costureira e ativista, mas fundamentalmente estava cansada daquilo tudo. Da humilhação cotidiana e sem sentido. E resolveu dizer não. O motorista chamou a polícia, ela foi presa, e a história é conhecida. Desencadeou um gigantesco movimento que, meses depois, levaria ao banimento da discriminação no transporte urbano na cidade. A história sugere uma imensa energia social em movimento, as longas marchas de cidadãos negros boicotando o transporte coletivo, a imagem de Martin Luther King triunfante, finalmente entrando pela porta da frente, em um ônibus dessegregado. Mas em um momento perdido naquela noite fria de dezembro o mais prudente teria sido obedecer a ordem do motorista, ir lá para trás, evitar a delegacia, a incerteza toda, ao invés de dizer não. Poderia ir longe aqui, o tema é fascinante, mas não é o caso. Talvez poucas coisas definam melhor a nossa época do que o súbito gosto pela regulação da fala, da arte, das ideias, e logo pela censura, que tomou de assalto nossa cultura. A plataforma da FIRE, Foundation for Individual Rights and Expression, uma jovem organização defensora da liberdade de expressão no mundo acadêmico americano. Os casos de “cancelamentos” foram de 4, em 2000, para 145, ano passado, numa escala crescente. As razões, em regra, são triviais. Uma crítica ácida ao governador De Sanctis, da Flórida; um tuíte “antissemita” contra Israel; uma postagem sugerindo que a definição de mulher guarda alguma conexão biológica. Tudo me lembrou um pouco a querela teológica, sobre a natureza da trindade e coisas do tipo, que podiam levar alguém à fogueira, nos inicios da modernidade, e por um momento me vi perguntando se não estamos andando em marcha ré. No Brasil, já vamos nos acostumando com a volta do cangote. Ainda esta semana li sobre a quase inacreditável censura ao “Joaquim Teixeira”, um personagem humorístico que nem o meu sobrinho
Carnegie e Eufrásia

Eufrásia era sinhazinha da fazenda de Hera, neta do Barão de Itambé, herdeira dos Teixeira Leite, nobreza do café e do embrionário capitalismo brasileiro, no triste século XIX. Quando o pai morreu, no início dos anos 1870, decidiu ser uma mulher independente e uma mulher do mundo. Foi para Paris, com a irmã, se fez investidora, multiplicou a fortuna que havia herdado. No meio do caminho teve um romance desses tórridos e enrolados, com Joaquim Nabuco, mas isso é outra história. No fim da vida, tinha ações de 297 empresas. Morava em um palacete, perto do Arco do Triunfo, e sua fortuna valia a coisa de duas toneladas de ouro. Pouco antes de morrer, em um apartamento de Copacabana, em 1930, Eufrásia fez seu testamento, legando quase tudo que tinha para Vassouras. Dona Ana Esméria, sua mãe, queria que ela deixasse um bom bocado para os primos. Não era o que ela tinha na cabeça. Entre muitas coisas, mandou que cuidassem da Chácara de Hera, do hospital da cidade, que abrissem dois educandários, um para ensinar as meninas a “lavar, engomar, coser, cortar e bordar”, e outro masculino, para iniciar os meninos nas “artes mecânicas”. Tudo com o cuidado de dar 20 contos para os mendigos de Vassouras e 20 mil Francos para os de seu quarteirão, em Paris. O futuro foi ingrato com as doações de Eufrásia. Os educandários tiveram fim melancólico. A unidade masculina acabou virando uma unidade do Senai. O instituto feminino fechou as portas quando as freiras se foram, no início dos anos 90. O hospital está lá, até hoje, decadente e endividado. A casa de Hera, ao menos, prossegue intacta. Virou museu, em 1968, e vale a visita a Vassouras. Para bancar a caridade, Eufrásia mandou liquidar seus bens, de modo a garantir “a importância em dinheiro necessária”. Comprou apólices da dívida pública, com juros de 5% ao ano. Não previu um detalhe: a hiperinflação brasileira, que ajudou a derreter seu legado. Alguns anos antes, no lado norte da América, uma outra história se desenhava. Andrew Carnegie, o “príncipe do aço”, também vinha fazendo suas doações. Só que de um jeito diferente. Imigrante pobre, self-made man, Carnegie fez fortuna na siderurgia, na segunda metade do século XIX. Com 66 anos vendeu suas indústrias ao J.P Morgan e se tornou o maior filantropo americano. Fez diferente de Eufrásia. Ao invés de dispersar seu dinheiro em doações assistenciais, optou por criar instituições. No coração de Manhattan, criou o Carnegie Hall. Tchaikovsky regeu sua Marche Solenelle, no concerto inaugural. Em Pittsburgh, na Pensilvania, criou o Instituto tecnológico que daria origem, muito tempo depois, à Carnegie Mellon University; criou o Carnegie Endowment for International Peace, muitas vezes escolhido como o melhor think tank do planeta. A síntese de sua estratégia foi a criação da Carnegie Corporation of New York, um trust instituído por Carnegie aos 76 anos para cuidar do que restava de sua fortuna (que não era pouco), e lidar com sua política de doações. A história de ambos conta um pouco sobre o nosso atraso. É evidente que a Fortuna de Carnegie era imensamente maior do que a de Eufrásia. Não é este o ponto. E é também verdade que Eufrásia foi um ponto fora da curva, na história de nossa riqueza, e em especial na de nossas mulheres, até os inícios do século XX. Era uma financista, independente, com um traço cosmopolita, e ao final da vida agiu com generosidade. Doou tudo para a “caridade”, e é aí que se revela não apenas a suas limitações, mas o atraso evidente da formação brasileira. Eufrásia poderia ter agido, como doadora, com a mesma sabedoria que o fez para acumular sua fortuna. Poderia ter criado uma corporação similar à estabelecida por Carnegie, em Nova Iorque. Bem administrado, talvez fosse hoje o maior fundo de filantropia do País. Não o fez. Investigar as razões disso eventualmente pode nos ajudar a entender quem nós somos. E a melhorar como País. A primeira razão, penso, está na cabeça das pessoas. Talvez vá aí, para além das instituições e das quase três mil bibliotecas que construiu, a maior contribuição de Carnegie. Em 1887, ele escreveu um texto que se tornaria uma espécie de bíblia da filantropia americana, The Gospel of Wealth. Ele começa com uma defesa do livre mercado e da acumulação da riqueza, base do progresso moderno e único sistema possível (o contrário implicaria em “mudar a natureza humana”), mas seu ponto é outro. A questão crucial era o que fazer com a riqueza. Há três opções. A primeira delas, tripudiada por Carnegie, é deixar para os filhos. É preciso deixar educação, não riqueza. Heranças gordas, para a prole, frequentemente são uma “maldição”. Algo feito mais por orgulho familiar do que preocupação genuína com o bem-estar dos filhos. Legar a riqueza ao morrer também seria um erro. Além do risco da má gestão, há o problema ético. “Morrer rico é morrer desonrado”, provocou. É preciso viver, e não apenas morrer, com um propósito. Carnegie achava inclusive que o Estado deveria dar um empurrão nisso, taxando as heranças. “Ao taxar pesadamente as propriedades no momento da morte”, dizia, “o estado marca sua condenação da vida indigna do milionário egoísta”. A grande sacada, para Carnegie, era que os ricos convertessem sua riqueza ainda em vida, na plenitude de suas forças, para fins públicos. O segredo era aplicar o dinheiro de um jeito inteligente e evitar a qualquer custo sua dispersão. Vai aí uma visão ética da vida. Ganhar dinheiro no mercado, acumular riqueza e depois investir em coisas que melhorem o mundo e façam subir os botes que não conseguiram subir, com a maré. Criar bibliotecas públicas, por exemplo. Ele estudou em uma muito precária, quando criança. Mandou construir perto de três mil, ao longo da vida. A ciência, a paz global e a democracia eram coisas cruciais, na sua visão. Coisa de 100 anos depois de sua última grande doação, Bill Gates e Warren Buffet criaram o Giving Pledge e transformaram
Os sonhos da Fadinha

“Trabalho desde os 14, durmo coisa de 5 horas, minha avó era doméstica e aprendi inglês sozinho”, diz Tallis Gomes, criador do Easy Taxi. “Sou fruto da meritocracia”, e arremata: “temos que parar de incentivar o coitadismo”. Lembrei da fala do Tallis escutando as histórias de nossos atletas, lá em Tóquio, por estes dias olímpicos. Rebecca Andrade, nossa campeã na ginástica, não deixou por menos: “dei duro e tive inteligência para aproveitar as oportunidades”. A outra Rebecca, do vôlei de praia, sempre lembrada por não ter o biótipo “perfeito” para o esporte, lascou: “vendi o carro e fiz empréstimo para competir. Não foi do nada que a gente apareceu”. São relatos apaixonantes. Eles dizem, de um jeito simples, que o mérito importa. Mérito entendido como um tipo de atitude diante da vida. A capacidade de tomar iniciativa, assumir riscos, evitar a saída fácil de terceirizar responsabilidades e dar a volta por cima, quando as coisas não vão bem. A pergunta é: há algum problema com a meritocracia? O tema se tornou algo explosivo, nos últimos anos, e basta ir a uma livraria para ver livros aos montes sobre o “mito”, a “armadilha”, a “perversidade” da meritocracia. Esta ideia “falsa, que encoraja o egoísmo e a indiferença em relação aos desafortunados”, e que “deveria ser abandonada”, como li em um texto, dias atrás. E aí, quem tem razão? Nossos empreendedores e atletas, quando atribuem ao trabalho duro e ao suor uma parte relevante de seu sucesso, ou nossos teóricos e sociólogos, com sua ira santa contra a meritocracia? Arrisco dizer que há uma confusão aí. Nossas sociedades podem não ser meritocráticas, e este será meu argumento, o que não implica em dizer que, na vida de cada pessoa, as virtudes associadas ao mérito não façam a diferença. Michael Sandel trata desse tema em seu livro “A tirania do mérito”. Em geral concordo com Sandel, mas não dessa vez. Ele diz que a ideia de que nosso sucesso depende de nós é uma “visão emocionante da agência humana”, mas que anda lado a lado com uma conclusão tanto confortável quanto equivocada: a ideia de que “recebemos o que merecemos”. Sandel reclama de Barack Obama e quase todos os líderes americanos recentes, que compraram esta ideia furada. Obama teria usado mais de 140 vezes o mantra “se você tentar, você consegue”, em seus discursos, enaltecendo a ideia da justiça como oportunidades para as pessoas, tão cara ao American Dream. A nossa fadinha do Skate, Rayssa Leal, vai em linha com Obama. “Nunca desista dos seus sonhos”, disse ela em uma entrevista, depois daquela incrível medalha. Ela conta que ganhou um Skate aos seis anos e nunca mais largou. Que teve uma chance, que deu sorte. Os pais deram força, havia uma pista de skate na cidade. Mas a verdade é que nada disso explica o seu sucesso. Há milhares de decisões que ela mesma tomou, sem ninguém mandar, todos os dias, para chegar até aquele pódio, em Tóquio. E há algo um tanto óbvio aí: não desistir dos sonhos é o conselho que os pais darão aos filhos e treinadores aos atletas. Até mesmo nossos sociólogos, imagino, dirão isso a quem eles de fato prezam, quem sabe ao pé do ouvido, pra ninguém escutar. O que me parece um equívoco de Sandel é a transposição desta ideia “emocionante” da agência humana (na linha do “acredite, você pode”), que funciona essencialmente no plano individual, para a tese mais geral de que as pessoas, na grande sociedade, “recebem o que merecem”. É um salto que não pode ser dado. Pela razão simples de que o destino humano é opaco. Contam a sorte, as dotações naturais, as circunstâncias, os talentos, as escolhas. Somos, no fundo, a mistura de todas essas coisas. Alguns irão sugerir que tudo, no fundo, remete ao acaso, e que isto nos deveria levar à empatia para com os outros e a uma preocupação com a justiça. John Rawls trilha este caminho. Outros dirão que não é bom pensar assim. Que fará bem para a sociedade que as pessoas ajam como se tudo dependesse de suas decisões. Um pouco como sugeriu o Tallis Gomes. Penso que ambos têm razão, e que será preciso encontrar um ponto de equilíbrio aí. A grande ilusão é a de que vivemos em sociedades meritocráticas. Sociedades de mercado, baseadas na igualdade de direitos remuneram o valor, não o mérito. Ninguém sai de casa pra comprar pão e pensa “qual foi o padeiro do bairro que mais ralou pra abrir sua padaria”? O raciocínio é inverso: quem faz o melhor pão? Avaliação que depende do gosto de cada um. Se o sujeito ralou anos para abrir a padaria, ou se herdou da família, pouco importa. As empresas, os clubes, as escolas, os bombeiros, cada qual pode ter lá seu critério de mérito e premiar quem desejarem. Na grande sociedade é simplesmente impossível regular isto. Os critérios são abertos, difusos, dependem de infinitas decisões tomadas a todo momento, por uma infinidade de pessoas. E por razões que ninguém controla. Ainda bem. O que podemos fazer é discutir objetivamente qual o modelo de justiça é mais adequado, em uma sociedade aberta. Arriscaria dizer que ele deve atender a dois critérios. Um vem da grande tradição liberal; outro da grande tradição socialdemocrata. O primeiro diz que devemos assegurar a todos uma base de direitos iguais. Isto é, uma sociedade sem privilégios. Sem castas, regalias e favores do Estado. A partir dessa base de direitos iguais, respeite-se as escolhas das pessoas. Aqui vem o segundo critério: a oferta a cada um de uma base de oportunidades iguais. Observem: não se trata da quimera da igualdade de oportunidades. As pessoas continuarão a nascer em regiões diferentes, de famílias diferente, com talentos distintos, e tudo isto definirá suas chances. O que se pode assegurar é um base, ou seja, um patamar razoável de oportunidades iguais, a partir do qual o caráter, preferências e decisões de cada um definirão o jogo. Assegurados os dois princípios,
O iliberalismo e as regras não escritas da democracia

Haveria mesmo um “iliberalismo” de esquerda? Ou “progressista”? É a pergunta que a revista The Economist fez dias atrás, com direito a chamada de capa. Por óbvio, a discussão não dizia respeito à esquerda hard core, que gosta do modelo cubano ou acha a Venezuela uma grande democracia. A questão é mais sofisticada. Ela diz respeito à corrosão de certos valores liberais que nos acostumamos a ver andando junto com as democracias e que historicamente foram defendidos pelo progressismo democrático. A liberdade de expressão era um deles. Outro era a recusa dos rituais de “purificação” da cultura. Coisas como a imensa fogueira com livros do Asterix e da Pocahontas, no Canadá, de que tivemos notícia por estes dias. O tema é interessante por muitas razões. Nos acostumamos, nos últimos anos, a associar o iliberalismo à “nova direita”, ligada a tipos como Trump e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban. Eram eles que andavam “corroendo a democracia por dentro”. Impondo “valores cristãos”, combatendo a “sexualização das crianças”, exalando um nacionalismo cafona, desafiando ritos institucionais e regras eleitorais. O conceito do iliberalismo apareceu em grande estilo nos anos 90. Fareed Zakaria sintetizou o tema em um artigo na Revista Foreig Affairs, em 1997, dizendo que “a democracia está florescendo, o liberalismo constitucional não”. Estaríamos diante de um divórcio: faz-se eleições, há partidos funcionando, mas um pouco abaixo da superfície vai se relativizando pilares essenciais das democracias liberais modernas: os freios e contrapesos, as garantias constitucionais, liberdade de pensamento, de reunião e de propriedade. Vale aqui uma distinção. A democracia diz respeito basicamente ao “quem governa” e às relações de poder na sociedade. A estrutura política, partidos e a alternância dos governos. O liberalismo supõe um programa muito mais amplo. Tem a ver com a limitação do poder, indo mesmo muito além das garantias constitucionais. Ele supõe uma agenda não escrita de valores envolvendo o respeito à pluralidade de visões de mundo, a tolerância cultural e uma interferência apenas muito moderada do Estado na liberdade das pessoas, inclusive no terreno econômico. É precisamente nestas regras não escritas, da “civilidade liberal”, na boa definição que li, que estaria o calcanhar de Aquiles do iliberalismo progressista. Seus pecados são conhecidos. Aceita-se prender um jornalista “do outro lado”, sem perguntar muito o porquê; topa-se queimar livros e vetar trabalhos acadêmicos “incorretos”, banir divergentes da internet, desmonetizar canais que não dizem a “verdade”, trocar o nome de escolas e derrubar monumentos de quem não atende aos (atuais) padrões morais. A lista é longa; promover “cancelamentos”, humilhando pessoas e destruindo carreiras de quem se discorda, impor padrões de fala, coibindo o uso de palavras, segundo uma lista sempre em expansão, exigir reservas de mercado para certos grupos, alegar um direito vago a não sofrer “micro agressões” em universidade e ambientes de trabalho. Há quem diga que tudo isto é positivo e anuncia uma nova sociedade livre de preconceitos que o excesso de liberdade só tende a favorecer. Cada um pode julgar. Há muito adquiri o gosto por explicitar um problema e deixar que as pessoas cheguem a suas próprias conclusões. Vinte e tantos anos depois de seu texto original, Fareed Zakaria reconheceria os males desta nova cultura iliberal, em uma carta pública assinada com intelectuais do porte de Cornell West e Anne Applebaum, dizendo que “o preço que estamos pagando é a aversão à tomada de risco de artistas, escritores e jornalistas, que temem destoar do consenso. E que o melhor jeito de derrotar as más ideias “é argumentar e persuadir, ao invés de silenciar os outros”. Há quem argumente que o recuo iliberal do progressismo atual surgiu exatamente como reação à onda conservadora que tem marcado as democracias. Michael Powell escreveu um longo artigo no The New York Times mostrando como mesmo a icônica American Civil Liberties Union, que defendeu desde o direito à expressão dos comunistas, na era do Macarthismo, até a Ku Klux Klan, nos últimos tempos recuou. O divisor de águas foi a eleição de Donald Trump e a ascensão da “nova direita”. Seus relatórios “falam na resistência ao Trumpismo”, diz Powell, e não da Primeira Emenda e dos valores liberais que sempre defendeu. Há muitos problemas aí. O primeiro deles é combater a “ameaça reacionária” com métodos que igualmente remetem ao reacionarismo. Acusa-se o “outro lado” de usar o Estado para impor determinado padrão ideológico, não raro referido à religião, mas topa-se usar este mesmo Estado para calar inimigos e impor sua própria visão de mundo. O traço mais característico do novo iliberalismo é sua aversão ao pluralismo de ideias, na política e na cultura. A própria dificuldade de aceitar a legitimidade dos novos conservadores tem muito disso. Ou a tendência a reduzir a complexidade social a algumas categorias simples associadas a grupos de identidade, seja de gênero, raça ou orientação sexual. Tempos atrás participei de um debate sobre “diversidade”. Achei bacana o sentido de inclusão que todos queriam fazer avançar. Lá pelas tantas perguntei se a diversidade de ideias também estava incluída, e na hora senti o mal-estar. O que significaria “gente que pensa diferente”? “O que estaria incluído aí?”. A conversa terminou por ali mesmo. O iliberalismo é ecumênico. Ele pode vir da direita ou da esquerda. “De maneiras distintas”, lê-se em The Economist, “ambos os extremos colocam o poder à frente do processo, os fins à frente dos meios e os interesses do grupo antes da liberdade dos indivíduos”. A tônica é a instrumentalização de valores fundamentais em nome da afirmação de um mundo perfeito, que por algum acaso “nós” representamos. Uma questão de poder, de um lado, e de medo e exclusão, do outro. À direita ou à esquerda, uma boa síntese dos novos iliberalismos poderia dizer: nós somos o lado certo da história, logo não precisamos de vocês. Talvez a culpa disso tudo seja da própria cultura liberal e sua complexidade, que no fundo exige um pouco mais das pessoas. Um saudável ceticismo em relação às próprias ideias; a aceitação de que as pessoas são falíveis, e quem