Governo dos homens?

“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz. Fomos silenciadas!”, diz o voto da Ministra Rosa Weber, a favor da legalização do aborto até três meses de gestação. O texto denuncia a “discriminação estrutural”, na sociedade brasileira”, a “política criminal do Estado”, com o aborto, e defende a “interseccionalidade” na abordagem do assunto. A Ministra bem traduz perfeitamente a visão de uma parte da sociedade. Algo em torno de 44% da população, segundo o último Datafolha. Seu argumento síntese diz que o Artigo 5º da Constituição, que não protege “o feto como uma pessoa constitucional, titular de direitos fundamentais”. É uma opinião válida, como costumava dizer um querido professor, na faculdade. Assim como opiniões contrárias, vinculando a “dignidade da vida, desde a concepção”, à proteção do feto. O texto diz que a Constituição permite muitas interpretações e que é preciso “uma instituição não eleita e imparcial” para decidir. Achei isto curioso. Como conciliar uma posição perfeitamente parcial e apaixonada, como o voto da Ministra, com a pretensão de expressar uma racionalidade “imparcial”, em uma sociedade dividida? O tema se tornou recorrente, em decisões de nossa Suprema Corte. É o caso da Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso, em 2016, definindo regras de compliance para nossas empresas públicas. Uma delas exigia uma quarentena de 36 meses, por parte de dirigentes políticos, com amplo reconhecimento de que isto foi benéfico para frear a corrupção e melhorar o desempenho das empresas. Seis anos depois, o Ministro discordou. Concordou com a visão do PCdoB, autor da ação, de que aquelas regras criavam “discriminações”, e que aquele prazo de 36 meses era “desarrazoado”. Por que não seria razoável? Porque sem fundamento na “realidade fática”. E por que? Por não ser “aceitável de um ponto de vista racional”. E por que não seria racional? Por não ser afeito a “pessoas equilibradas”. Isto é, “pessoas razoáveis”. Deu para entender? O argumento circular é próprio de quem não precisa, no fundo, convencer ninguém. Basta mencionar alguns princípios genéricos da Constituição, como “igualdade”, “liberdade”, “dignidade”, “cidadania”, “não discriminação”, e derivar daí alguma conclusão. Um tipo de viés de confirmação constitucional: busca-se na Carta os conceitos que melhor se encaixam na defesa das posições que se quer defender. Tudo perfeitamente cabível no debate democrático. No Congresso, na sociedade, onde há o contraditório, os cidadãos têm voz e a engenharia difícil e barulhenta da democracia faz valer sua força. Quando feito pelo judiciário, em matérias que avançam sobre prerrogativas dos demais poderes, temos o que o Professor Ran Hirschl, da Universidade de Toronto, chamou de “juristocracia”. Ele diz que contínua transferência de poder dos parlamentos para as cortes superiores funciona como um tipo “pacto entre elites hegemônicas” para a proteção de sua agenda política. A tese é sedutora, mas perigosa. É possível imaginar que exista uma elite, em algum sentido da palavra, favorável à legalização do aborto, em contradição com a maioria da população. Ou quem sabe uma elite sindical favorável a volta de uma “contribuição” aos sindicatos, na contramão do parlamento. O ponto é que a dicotomia “povo x elite” é muito pouco precisa. O que parece ocorrer é que o STF, de fato, soube se afirmar, ao longo do tempo, como um tipo de poder moderador. E o fez pela convicção e habilidade de seus membros, por funcionar como árbitro entre grupos de pressão, e pelo vácuo de poder deixado por um legislativo dividido e letárgico no cumprimento de muitas de suas funções. Em especial, o fez por contar com o apoio de setores hegemônicos na sociedade. No mundo jurídico, em boa parte dependente de decisões da própria Corte, na academia e na polarização política mais ampla da sociedade, na qual a maioria do Supremo adotou uma posição bastante evidente. Se tomarmos medidas de recentes como a censura, o marco temporal das terras indígenas e a legalização da maconha, há um claro alinhamento. O Supremo surge como porta-voz do “progressismo”, contra o “conservadorismo” do Congresso. A pergunta é se cabe ao judiciário, em uma república, assumir esta ou aquela posição política. Muita gente acha que sim, no embalo das simpatias e antipatias políticas. Mas talvez isso não devesse ser assim. Existe uma mecânica elementar nas democracias: quem faz as leis e define políticas publicas deve se submeter ao julgamento dos cidadãos. Se um parlamentar legisla ou governa mal, os eleitores devem ter a chance de puni-lo, nas eleições. O sistema é accountable, isto é: faz com que o poder responda aos cidadãos. E é dos cidadãos que ele é retirado quando políticas públicas são definidas não por um representante eleito, mas por um ministro vitalício. Alguns dirão que os cidadãos comuns são míopes, sujeitos à “desordem informacional”, como já se escutou do próprio Supremo. Isto é nítido em diversas de suas decisões, apelando à “racionalidade”, ao dever de “curadoria”, ao senso das “pessoas equilibradas”, à hipossuficiência do “eleitor ordinário”. Visão que por vezes me lembra da “epistocracia”, ou o “governo dos que sabem”, do cientista político americano Jason Brennan. Lamento dizer, mas há o vezo de uma elitista aí, que confronta a pedra angular de todo edifício democrático moderno, dada pelo princípio da soberania popular. Elitista e perigosa. As instituições da democracia liberal, com seu delicado equilíbrio entre os poderes, freios e contrapesos, não são um preciosismo intelectual. São o resultado de um difícil aprendizado. Elas expressam um tipo de racionalidade de longo prazo, capaz de produzir coesão em sociedades divergentes, marcadas por múltiplas fraturas que (felizmente), não irão desaparecer, pois fazem parte daquilo que somos. Sua preservação, ao longo do tempo, exige um contínuo exercício de renúncia. A cada vez cedemos a tentação do uso indevido do poder, que flexibilizamos a regra do jogo, transferindo uma prerrogativa legislativa para um poder não eleito, todo o edifício republicano é fragilizado. Talvez sem querer, nos esquecemos de uma velha lição de Norberto Bobbio, de que as democracias liberais se definem como o governo das leis, e não dos homens. É esta, no fundo, a grande lição iluminista, feita de
O Natal Cancelado

“Depende do contexto”, respondeu a reitora da Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magil, no Congresso Americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de judeus”, na universidade. Acabou renunciando. Teria sido uma resposta infeliz, ainda que “legalista”, na visão do chairman da universidade, Scott L. Bok. Numa alegação puramente formal, seria possível sustentar que a retórica de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação contra este ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isto que estava em jogo. Se a pergunta fosse: “você considera admissível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou pessoas negras, na universidade”, é difícil imaginar que a reitora (ou qualquer pessoa minimamente razoável) fizesse aquela relativização. A conclusão óbvia é a de que o antissemitismo seria menos “problemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado. O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a discriminação saiu do universo do Campus Universitário e foi para o Congresso. Para o grande debate, na sociedade. É algo comum no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero, raça e orientação sexual. Nesta lógica, pouco importa que o Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquininha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opressor”, aliado do ocidente (!). E a violência do outro lado um tipo de “reação”. Ou ainda: uma reação perfeitamente justificada, quiçá de “inteira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado, todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas doações, das universidades, e uma ampla reação se formou. Niall Ferguson resumiu a questão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insano que vivemos, nos últimos anos. É possível que Ferguson tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “racismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos grandes jornais, a partir dos anos 2010. Agora os ventos mudaram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pesquisas mostrando que aqueles temas perderam terreno, nos últimos anos. “A terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drasticamente a procura por executivos de “diversidade”, nas empresas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e entender o que as pessoas de fora estão dizendo”, ao invés de simplesmente impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões ideológicas, nas universidades, apresentaram um recuo, segundo os dados da Fundação para os Direitos Individuais em Educação. Explicar este fenômeno nos faz voltar ao tema dos limites. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingleses anunciando que o Imperador romano Heliogábalo, no século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias como esta, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, passaram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma agenda perfeitamente legítima de inclusão foi se convertendo em um radicalismo algo exótico e avesso ao bom-senso. A partir daí, a reação difusa, na sociedade. Muitos intelectuais tomaram à frente, mas a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e acontecimentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão pateticamente ideológica, no último ENEM, sobre o agronegócio. A cada semana observo este conflito silencioso nas escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas e comportamentais muito específicas. Por vezes é a imposição de uma educação “étnico-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gênero, devidamente enviesados; em outros casos é a mais pura mesquinharia, como vi ainda esta semana, em uma escola bacana de São Paulo, proibindo uma foto das crianças com aqueles gorrinhos de papai-noel, para celebrar o final de ano, no que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”, me disse, desanimada, a mãe de uma aluna. O que se observa nestes casos é uma marca de nossa época, talvez acentuada pela revolução digital: a dicotomia entre a cultura dos ativistas e os valores do “common sense”. Pesquisa do The Hidden Tribes mostrou que os “ativistas progressistas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são ativos, no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultraconservadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento, e não é por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou “exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que lê no Twitter, provavelmente terá uma visão distorcida, e muito mais radical, do que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoáveis, sem obsessões políticas e dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militante. Ele é amplamente minoritário, mas vai a todas as reuniões, é articulado e segue uma agenda da qual não abrirá mão. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês, sugerir atividades. E por nada desse mundo revisará seus bem-consolidados pontos de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “erro”. E como tal, precisam ser corrigidos. Vai ai um desafio. Em especial, na educação. Ele foi bem formulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política”, e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo: universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se virar por conta própria. O que é realmente inaceitável é que a doutrinação seja feita nas escolas, diante de crianças sem capacidade de se contrapor à “autoridade intelectual” de
Não estamos em guerra

Meu último artigo gerou uma boa discussão. Uma das observações que recebi lembrava de nossa Lei antirracismo e argumentava que era correta a ação da Confederação Israelita contra o jornalista que relativizou o terrorismo do Hamas, fazendo menção à frase do Deng Xiaoping sobre “não importar a cor dos gatos, desde que cacem os ratos”. Há um ponto interessante aqui. A Conib, como qualquer outra organização, tem todo direito de mover uma ação, nos termos da lei. Caberá à justiça decidir a questão. Vale o mesmo para os crimes contra a honra. Se alguém se sentir caluniado ou difamado, pode acionar a justiça. Ações desse tipo, respeitando o devido processo, não ferem, mas reforçam o princípio da liberdade de expressão. Não se deve confundir uma ação privada, à posteriori, fundada em lei, com atos de censura prévia e “de ofício”, amplamente praticados no Brasil, nos últimos anos. Agradeço às observações feitas ao meu texto, e digo aqui que é do debate de ideias franco e cordial que se faz uma grande democracia. Outra critica que recebi diz que vejo a liberdade de expressão como um “direito absoluto”. Não é o que penso. Até conheço algumas pessoas que defendem essa ideia, mas não é o meu caso. A liberdade sempre será regulada. A pergunta real é sobre como isto será feito. A partir de critérios restritos e bem estabelecidos, com base em lei aprovada no parlamento? ou a partir de critérios ad hoc, abertos a todo tipo interpretação e discricionariedade por parte de quem detém o poder? Ainda na outra semana vi um exemplo disso. Um Ministro declarou que seria crime “comemorar o 8 de janeiro”. Na sua opinião, o 8 de janeiro foi um “golpe”, e comemorar um golpe seria crime. O exemplo é banal, mas está lá. Não há lei alguma no País dizendo que não se possa comemorar a tal data (seria de péssimo gosto, isso sim). Aquilo é simplesmente a opinião de uma autoridade, feita de um conjunto muito vago de interpretações. Um pouco a crônica do Brasil recente. Uma postagem, um documentário, um papo no Whatsapp, qualquer coisa pode ser um crime, desde que na opinião da autoridade aquilo seja um crime. Razões? A “verdade”, o “ódio”, não importa muito. Trata-se de uma visão com apoio na sociedade, mas vejo um crescente cansaço. Cada vez mais gente se dando conta que a intervenção arbitrária nos direitos individuais e a falta de isonomia nas regras do jogo é menos uma solução e mais uma causa da tensão política, no País. Há uma outra tradição que tenta compatibilizar a preservação do mais amplo “mercado de ideias” e os demais valores que prezamos, como sociedade. Sua melhor expressão (mas não a única) é o longo aprendizado em torno da Primeira Emenda à Constituição Americana. Sua base é a clara distinção entre o universo da “opinião” e o da “conduta” das pessoas. Gustavo Maultasch trata disso em seu livro “Contra toda a Censura”, cuja leitura recomendo vivamente. A distinção vem de longe. Está lá no clássico de John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”, quando ele diferencia uma opinião na imprensa, culpando a propriedade privada e os comerciantes de milho pela fome, e esta mesma opinião em um discurso irado, diante da multidão furiosa, ameaçando um comerciante de milho à frente de sua casa. O ponto de Mill: a opinião só deve ser punida “se for provável que um ato violento resulte daquela manifestação”. No Brasil, poucos traduziram melhor esta distinção do que o Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto minoritário no caso Ellwanger, em 2003. A questão era conceder ou não um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, escritor que relativizava a história do holocausto, entre outras barbaridades. O Ministro Marco Aurélio fez uma dura defesa do direito à expressão, dizendo que ele se prestava precisamente para as “ideias controversas, radicais, minoritárias, desproporcionais”. E acrescentou: “a única restrição deve ser quanto à forma da expressão”. E fez a distinção: haveria crime se Ellwanger “em vez de publicar um livro […], distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre”, com dizeres do tipo “vamos expulsar estes judeus do País”. A simples defesa de uma tese, por estúpida que fosse, não configuraria crime. A tese do Ministro se aproxima do clássico critério formulado por Oliver Holmes, na Suprema Corte Americana, em 1919: não havendo “perigo real e imediato” em um discurso, ele deve ser protegido. O argumento seria depois detalhado pelo Juiz Louis Brandeis, em um caso envolvendo a ativista comunista Charlotte Whitney. “O medo de danos graves”, diz ele, “por si só, não pode justificar a supressão da liberdade de expressão”. E foi direto: “se houver tempo para expor a falsidade, para reverter o mal pela educação, o remédio a ser aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado”. A tese foi confirmada em um julgamento clássico, no final dos anos 60, quando um, dirigente da Ku Klux Khan, Clarence Brandenburg, fez um discurso atacando os direitos civis, nos Estados Unidos. Entre outras coisas, disse que os “negros deveriam ser devolvidos à África” e os “judeus devolvidos a Israel”. Seu discurso era odioso, mas seu direito foi defendido junto à Suprema Corte por um advogado judeu, Allen Brown, e uma jovem advogada negra e progressista, Eleanor Norton. Eles ganharam. Norton se tornou uma grande ativista. E sempre explicou que não lutava por este ou aquele discurso, mas pela preservação de um princípio: que não deve caber ao Estado decidir “quem e o que se pode falar”. Algo que “por vezes me obriga”, acrescentou, a “defender pessoas que jamais me defenderiam”. Na vida americana, a tese de Brandeis e Holmes se tornou majoritária; No Brasil, aquela posição similar do Ministro Marco Aurélio, minoritária. Quem teria razão? Não sei. É possível que a tradição de Madison, Mill, Brandeis e Oliver Holmes esteja errada, e certos estejamos nós. Com direito a uma pergunta sobre quem somos “nós”. Escrevemos uma Constituição protetiva de direitos, derrubamos a lei de Imprensa, a lei de segurança nacional, vedamos
Soma Variável

“Ninguém deveria ter um bilhão!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de um bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passar da quota de um bilhão? Se ela ficar com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de um bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então porque eu iria continuar trabalhando, tomando risco”? Por esporte? E se ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá… Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia”, que a riqueza dos 5 mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-mad-man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um. Não há nenhum jogo de soma zero, funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas. Me lembro quando li “O Capital no Século XXI”, do Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (de “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim, De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “vamos seguir o Stiglitz”. “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história. Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a R$ 3.208 (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas no fundo mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É um discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “à favor”. É chato, complicado, exige buscar eficiência em política públicas, demanda soluções de mercado, em regra contraintuitivas, com resultados de longo prazo. E dá muito menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana . Indermit Gill, do Banco Mundial, tem uma sugestão bastante simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem sucedidas na redução da pobreza. Países do sudeste asiático, como a Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnam. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação. Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”, e coisas do tipo. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2,6 mil. O País que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isto não acontece por que “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, estabilidade das regras, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que haviam por lá. Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development, avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a
A ponte do rio das Antas

A ponte ruiu em setembro do ano passado. Foi aquela enxurrada, no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro que ligava Nova Roma do Sul ao mundo se foi. Os governos estadual e federal colocaram a nova ponte no orçamento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mobilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto, a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6 milhões, ponte simples que resolve o problema da comunidade. “Ainda sobrou um milhão”, diz o presidente da Associação que comandou o processo. “A comunidade agora vai se reunir”, diz ele, “para ver o que fazer com o dinheiro”. Quando li sobre isto me lembrei de Tocqueville. De sua seus relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena escala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos de 1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-se para tudo, e aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Não apenas como uma forma resolver problemas, mas como um modo ativo de exercício da democracia. Ao invés de esperar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comunitário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de Nova Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Tocqueville provocou contando como milhares de americanos haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parecemos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas acontecendo no País. E vale à pena prestar atenção. A colônia italiana e alemã tem uma longa tradição de associativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”, como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu, neste episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra, ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas uma ponte? Nova Roma tem coisa de quatro mil habitantes. É evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali. “Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger Bregman escreveu um livro instigante, “Humanidade: uma história otimista do homem”, argumentando que foi exatamente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jonathan Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o auto interesse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que manda um pix com um pedacinho de sua poupança para pagar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que depois desfila em um velho Aero Willis, festa de inauguração. E disso tudo extrai uma secreta felicidade. Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo. O Governador Eduardo Leite explicou que o Estado tem um projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O problema não deste ou daquele governo, mas da estrutura da máquina pública, no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso Estado é eficiente para executar um programa de distribuição de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em larga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quando a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Economy, ocupamos o constrangedor 130º lugar, em eficácia governamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito aprendeu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a depender o mínimo possível dos serviços do governo. A notícia interessante é que o País foi desenvolvendo um contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade, ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engrenar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo deve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Paulo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as Organizações Sociais, na reforma do Estado conduzida por Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pesquisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma OSESP, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais públicos do País. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que permitiu reduzir 20 para perto de 11 meses o tempo de construção das escolas infantis, em Belo Horizonte, fazer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da administração pública atual: governo focado nas funções estratégicas; setor privado fazendo a execução e a gestão, na ponta. Seja uma empresa ultra especializada, seja uma associação comunitária, no interior do Rio Grande do Sul. É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocqueville descreveu a América do início do século XIX. Na última edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição, entre 142 Países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei de perto a doação de mais de R$ 170 milhões para a Fábrica de Vacinas, do Instituto Butantan. A questão é como transformar isto em
A traição dos intelectuais?

A imagem é chocante. Aquele vídeo da mulher fanática invadindo uma pequena loja, em Arraial D’Ajuda, e agredindo a lojista judia. O que surpreendeu foi o dia seguinte. “Não sou antissemita”, diz a agressora, dia seguinte. Seria o que, exatamente? Vai aí a imagem trágica de uma doença do nosso tempo. A doença que leva militantes a achar boa a ideia de boicotar empresas judias. O gosto amargo daquelas manifestações de dezenas de grupos acadêmicos de Harvard, acusando Israel como “inteiramente responsável” pelo barbarismo contra seu próprio território. Ou quem sabe a constatação irônica do jornalista David Herman, de vivemos um tempo em que “você pode pedir genocídio contra os judeus, mas está frito se discutir a questão dos direitos trans”. Não me surpreendo. São as hierarquias da cultura. Sempre convivemos com a ideia da “barbárie tolerável”, e não haveria de ser diferente, agora. Quando o grupo palestino “Setembro Negro” fez aquele atentado nas Olimpiadas de Munique, em 1972, sequestrando e matando 11 atletas israelenses, algo parecido aconteceu. Jean Paul Sartre escreveu um texto dizendo que havia uma “guerra” entre Israel e os palestinos, e que “a única arma dos palestinos é o terrorismo”. “Uma arma terrível”, reconheceu, mas “a única que os pobres oprimidos”, poderiam usar para “mostrar sua coragem e seu ódio”. Ninguém, que eu saiba, fez uma defesa assim tão explicita do terrorismo, por agora, como Sartre. Mas andamos muito perto disso. Foi este o tema de um artigo duro escrito pelo historiador Niall Ferguson. O artigo faz uma referência a um livro clássico de Julien Benda, no entre guerras, “A Traição dos Intelectuais”, sugerindo uma não tão sutil semelhança entre a atual inclinação política de boa parte da academia americana, e sua relativização do terrorismo, com a capitulação do mundo universitário alemão ao nazismo, nos anos 30. “Apenas se nossas grandes universidades conseguirem restabelecer a separação entre a ciência e a política”, diz ele, “terão a certeza de evitar o destino de Marburg e Königsberg”. Ferguson exagera. É falta de senso de proporção comparar o que se passa no mundo woke atual com a Alemanha nazista. Ferguson acerta quando faz uma referência a Weber. Mais especificamente, ao discurso sobre “A Ciência como Vocação”, dado em Munich, no final da Primeira Grande Guerra. Seu argumento era de que ciência e política são terrenos essencialmente distintos. A ciência deseja a verdade. É sua paixão. Diante de novas evidências, o cientista precisa estar disposto a “trair” sua hipótese, ou sua tese por inteiro, desde que isto o faça chegar mais perto da verdade. A política inverte a equação: seu problema é como fazer a realidade convergir em uma certa direção. Seu foco é a “missão”, não a verdade. Por isso estas coisas jamais deveriam se misturar. Ferguson sugere que tudo piorou na última década, com seus cancelamentos, sua paranoia em torno das “microagressões”, o reino dos ativistas nas universidades e as hordas de valentões de sofá, nas redes sociais. Seu erro é imaginar que os intelectuais tenham “traído” um pacote de valores associados à liberdade individual, ao qual nunca juraram fidelidade. Por vezes esquecemos que a grande tradição liberal que vem de Montaigne, Locke, Madison, Voltaire ou John Stuart Mill, expressa apenas um pedaço da formação moderna. É sua a base de valores que Ferguson sugere ter sido traída, nestes tempos difíceis, por boa parte do nosso progressismo intelectual. Seu exemplo talvez mais eloquente seria aquela frase da reitora de Harvard, Claudine Gay, no Congresso americano, dizendo que dependeria do “contexto” punir uma defesa do genocídio de judeus, na Universidade. A traição é o duplo padrão. O fato óbvio que ela não flexibilizaria em relação a outros grupos humanos, sejam mulheres, negros, indígenas, pessoas trans, um tipo de violência que ela friamente relativizou em relação aos judeus. Não acho que seja um bom caminho julgar uma frase, de modo isolado, em um debate difícil. O que de fato incomoda é uma mistura do duplo padrão, no julgamento, com uma difusa relativização do terrorismo, que tantas vezes assistimos. Thomas Sowell capturou bem o problema, em sua “Sociologia dos Intelectuais”, sugerindo que ao menos uma parte desse problema se deve ao tipo de relação que os intelectuais estabelecem com a verdade. A lógica é próxima a de Weber. Se um engenheiro erra no cálculo de uma viga de concreto, o edifício desmorona, e ele será processado. Vale o mesmo para um médico cirurgião. Nada disso se passa com os intelectuais, chamados a falar sobre infinitos assuntos, sobre os quais entendem muito pouco (a economia é o caso mais óbvio), ou sobre os quais costumam ter ideias preconcebidas. E tudo bem. Foi assim que Sartre pode atestar “a mais completa liberdade de pensamento”, na União Soviética, e o Hamas pode surgir como um legítimo grupo de resistência contra uma potência opressora. E igualmente, tudo bem. O erro de Sowell talvez seja o de confundir a atividade intelectual com um tipo “sabedoria” para julgar com base em critérios e bom-senso. E em especial reconhecer, à moda socrática, aquilo não se sabe. E que, portanto, não se deve julgar. O problema é de fundo ético. Quando Albert Camus lançou seu O Homem Revoltado, em 1951, irrigou Sartre e boa parte da intelligentsia francesa ao sugerir que a “revolta” deveria se dirigir contra toda forma de opressão, independente de onde viesse. Camus foi chamado de “idealista”. Adepto de uma “moral de cruz vermelha”. O próprio Sartre entrou em campo, dizendo que vivíamos em um “mundo dividido”, e que era preciso escolher entre a adesão ao sovietismo ou a “fuga”. A indiferença diante da “opressão”. Era precisamente a armadilha fácil na qual Camus se recusa a cair. Em seu caderno de notas, ele reconhece sua solidão. Em uma carta à esposa, Francine, ele diz estar “pagando caro por aquele livro”, sobre o qual reconhece suas dúvidas. “Tenho dúvidas sobre mim mesmo”, escreve. Tivesse apenas certezas, é provável que estivesse ao lado de Sartre, marchando em algum pelotão intelectual. Camus havia sido um dos poucos intelectuais