O papo estava descontraído, antes de um debate, e o professor me comentou que não fazia chamada, em suas turmas. “Na minha aula vem quem quer”, disse ele. “Fica menos gente na sala, me incomodo menos, é muito melhor”. O que me chamou a atenção foi o desdém, o tom blasé. Dar a “sua aula” era mais importante do que saber se os alunos estavam ou não aprendendo. Achei compreensível. Ele leciona em uma universidade estatal dessas bacanas, que a gente costuma chamar de “públicas”, tem estabilidade e não é avaliado pelo desempenho em sala de aula.
A atitude do meu colega de debate é uma migalha do que acontece na educação estatal brasileira. Estudo feito pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mostrou que, em média, os professores faltam 36 dias por ano na rede pública do município de São Paulo. Na rede estadual a média é de 30 dias. Não se trata aqui de julgar os professores, dizer que são piores ou melhores do que os do setor privado. É a regra do jogo que está mal desenhada. É o “modelo” de educação estatal que leva a este resultado.
Os efeitos disso tudo são conhecidos. Nossos alunos das redes públicas ocupam as últimas posições no PISA (teste feito pela OCDE com estudantes aos 15 anos, em 65 países) e o IDEB alcançado pelas escolas privadas, no ensino médio, é 51% maior do que o das redes públicas. A falência da educação estatal levou a uma migração maciça da classe média para as escolas particulares. Criamos um sistema brutal de exclusão: os mais ricos escolhem a escola de seus filhos e obtém os melhores resultados; os mais pobres ficam por conta do Estado. Espécie de versão aguda da metáfora da Belíndia, criada nos anos 70 pelo economista Edmar Bacha.
Nossa modelo de apartheid educacional produziu algo próximo ao que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”. A inspiração vem da passagem bíblica que diz “ao que tem, mais será dado…mas ao que nada tem, até mesmo isso lhes será tomado”. O mecanismo de exclusão leva a um ciclo de “desvantagens cumulativas”: menor renda, colégios de baixo desempenho, redes restritas de interação social, estigma, estreitamento do leque de oportunidades. É evidente que o ciclo não determina o destino de ninguém. É sempre possível dar a volta por cima. De vez em quando acontece, mas não é a regra. Quebrar o apartheid educacional brasileiro significa exatamente isto: buscar que se torne regra o que hoje é exceção.
É possível que tudo isso seja apenas uma “consequência não intencionada” do sistema de ensino estatal, no Brasil. Prefiro pensar que se trata de um resultado bastante previsível. Escolas estatais, no Brasil, funcionam como repartições públicas. Não tem autonomia orçamentária ou liberdade para contratar ou descontratar professores; subordinam-se à burocracia da lei das licitações; diretores são eleitos, gerando um pacto corporativo com os professores; governos se alternam, a cada quatro anos, e no fundo podem fazer muito pouco para melhorar o sistema, a longo prazo. Exceções, como o sempre mencionado bom desempenho das escolas de Sobral, no Ceará, apenas servem para confirmar a regra.
Diante desse cenário, nossos gestores públicos se recusam a buscar alternativas. No fundo é uma situação confortável, feita do pacto silencioso entre a corporação sindical e a elite (empresarial e acadêmica) disposta a “mudar a educação”. Disposta a patrocinar estudos e pinçar exemplos de sucesso aqui e ali, imaginando que tudo será diferente em dez ou vinte anos. No curto prazo, as coisas prosseguem como sempre foram. A corporação com seus “direitos” e os mais ricos à salvo em boas escolas particulares. Os mais pobres, como reza a tradição, em silêncio.
Penso que é preciso mudar. O País precisa experimentar novas formas de gestão da educação pública, do ensino básico ao ensino superior, sem preconceitos. No plano global, há duas grandes linhas de inovação: os sistemas de voucher, em que o governo oferece uma bolsa e dá direito de escolha às famílias, ao invés de gerenciar escolas; e o modelo das charter schools, em que o governo assina contratos de gestão com instituições especializadas, de direito privado e sem fins lucrativos. Em ambos casos, o governo passa da condição de gestor direto para regulador do sistema.
O Brasil já conhece estes modelos. O ProUni funciona como um sistema de voucher, e é um sucesso. Pesquisa encomendada pela ABRAES, com base nos resultados do ENADE entre 2010 e 2012, mostrou que os alunos com bolsa integral no sistema obtém notas superiores a dos alunos de Universidades Públicas, com renda média muito superior. Este e outros indicadores tem ajudado a derrubar uma das mais cruéis narrativas do debate educacional brasileiro, segundo a qual os alunos não conseguem aprender devido à pobreza.
No plano das charter schools, o Brasil desenvolveu, nas últimas duas décadas, o bem sucedido modelo das Organizações Sociais. São amplamente conhecidos os resultados obtidos pelas OS da saúde, no Estado de São Paulo, bem como o sucesso obtido por organizações como a OSESP, Pinacoteca do Estado, o Museu do Amanhã e outras organizações culturais. Na educação, temos a experiência do IMPA e exemplos de menor alcance em diversos municípios brasileiros. Recentemente, o País aprovou o novo marco legal das organizações da sociedade civil, a LEI 13.019/14, que funciona como uma perfeita legislação para a implementação do modelo de charter schools. A lei explicitamente prevê a celebração de termos de colaboração dos governos com organizações privadas sem fins lucrativos, na área da educação. Nosso marco jurídico está completo e temos a nossa disposição uma série de bons exemplos. O que nos impede de avançar?
Os estudos realizados com programas de voucher tem oferecido resultados mistos. Na Índia, um programa experimental realizado no Estado de Andhra Pradesh, com crianças escolhidas aleatoriamente, mostrou resultados promissores. Em que pese os resultados em disciplinas tradicionais, como a matemática, não apresentassem variações consideráveis, os alunos que migraram para as escolas privadas passaram a aprender mais rapidamente (ganho médio de 30%) e a um terço do custo per capita dispendido para sustentar o ensino estatal. Karthik Muralidharan e Venkatesh Sundararaman, autores da pesquisa, observaram que “as escolas privadas tinham uma jornada diária de ensino mais longa, menor abstenção de professores, mais atividades pedagógicas e maior higiene”. Os alunos também aprendiam a língua hindi, o que não ocorria no ensino estatal.
Nos Estados Unidos, o mais antigo programa em funcionamento funciona no Estado de Wisconsin. Ele foi criado em 1990, a partir do trabalho e da organização de líderes da comunidade negra. O programa é focalizado: atende a crianças com menor renda. Sua escala ainda é pequena: em 2015, eram pouco mais de 32 mil estudantes. O custo do voucher é de U$ 7.969 para a high school (contra U$ 14.599 no sistema estatal) e o desempenho médio dos estudantes é superior aos alunos da rede pública. No ACT test (exame de admissão amplamente utilizado nos Estados Unidos para admissão no ensino superior), os alunos do programa de voucher obtiveram média 17,5, comparada com uma média de 16,5 dos alunos das escolas púbicas e apenas 15,4 obtida pelos alunos mais pobres da rede estatal.
Na América Latina, a experiência mais relevante vem do Chile. Concebido nos anos 70, o programa de voucher chileno levou, em duas décadas e meia, a resultados contraditórios. Se por um lado ampliou a liberdade de escolha educacional, por outro lado terminou por reproduzir um sistema de desigualdade que, em tese, imaginou-se combater.
Em 2008, o sistema foi reformado. Aumentou-se o valor da bolsa oferecida aos estudantes de famílias com menor renda e cresceu o monitoramento do governo sobre a qualidade do ensino. A escolas foram classificadas em três graus crescentes de autonomia, com base nos resultados alcançados: escolas em recuperação, emergentes e autônomas. Nos cinco anos que se seguiram à reforma, caiu em um terço a diferença de resultados obtidos pelos estudantes de maior renda e aqueles com maior vulnerabilidade.
A experiência chilena mostra que a melhora da educação não depende apenas do “modelo”. É preciso prestar atenção a seu design institucional. Às regas e incentivos adotados. Exemplos: a oferta do voucher será “universal” ou “focalizada? Será feita a todos os estudantes ou apenas aos estudantes de menor renda? A experiência tem mostrado que programas focalizados tendem a obter melhores resultados. Vai por aí o papel do Estado: definir as regras do jogo e fazer com que elas sejam cumpridas. Estipular critérios de admissão e exclusão de escolas; proibir pagamentos adicionais ao voucher; avaliar as escolas e oferecer informação para que os pais possam fazer a melhor escolha.
O modelo das charter schools nasceu no início dos anos 90, no Estado de Minnesota, e hoje já responde por 7% das escolas americanas. Sua lógica é simples: por que os alunos de menor renda não podem estudar nas melhores escolas? Por que não contratar “quem sabe fazer” para atender não apenas aos que podem pagar a educação do próprio bolso? Barack Obama gosta de chamar as escolas charter de “laboratórios de inovação”: elas mudam a educação e, de quebra, pressionam o setor público a melhorar seu desempenho.
O modelo tem sido, de um modo geral, bem sucedido. O Center for Research on Education Outcomes, da Universidade de Stanford, apresentou um detalhado estudo abrangendo 24 estados americanos. A conclusão é clara: “Charter schools tem seus melhores resultados em grupos tradicionalmente desatendidos da população, em particular estudantes negros e hispânicos”. É este o foco das escolas charter: alta performance para populações menos favorecidas. Sua implementação, no Brasil, pode trazer resultados rápidos. Pode tirar os mais pobres da armadilha da crise do Estado, e de quebra abrir caminho para que os governos retomem a capacidade de efetivamente controlar a qualidade da educação.
O desafio está lançado. O historiador inglês Niall Ferguson observa, em A Grande Degeneração, que os grandes sistemas de ensino estatal foram cruciais para a universalização do acesso à educação. Mas se tornaram vítimas, com o tempo, do fenômeno da “captura pelos produtores”. Tornaram-se presas fáceis do corporativismo e da burocracia pública. O desafio agora é mais complexo. O mundo atual exige diversificação, rapidez, escolas capazes de incorporar novas tecnologias, inovar e oferecer ensino de padrão global.
É assustador o espectro de um país feito de “escolas para os mais pobres” x “escolas para os mais ricos”. É exatamente o que estamos construindo, no Brasil. A mudança deste cenário não é nada simples. Ela esbarra na resistência corporativa e no interesse meramente retórico que boa parte de nosso progressismo acadêmico tem pela vida real dos menos favorecidos. E por fim tropeça na inércia do sistema político. É sempre mais fácil abrir concurso público e atender à gritaria de alguma corporação do que inovar e buscar alternativas mais complicadas.
Fugir das escolhas difíceis tem sido nosso modo de ser, em educação. Nada que não se possa mudar. Sempre acreditei, com Weber, que a política é o lento perfurar de tábuas duras. Não haveria de ser diferente no Brasil.