“Instituições não são a democracia”, diz o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em um tuíte, semanas atrás. O deputado segue fazendo considerações sobre o sentido da democracia (“é a vontade popular”) e termina com uma afirmação: “Quem tem atacado tanto o Estado de Direito quanto a vontade popular é o STF”.
A frase acima consta no despacho do ministro Alexandre de Moraes como exemplo de mensagens ilícitas ou fraudulentas (as expressões poderiam variar aqui: falsas, odiosas, agressivas) que justificam a operação policial realizada na quarta, no inquérito das fake news.
Outra mensagem diz simplesmente: “Doria e STF trabalhando em conjunto para matar o povo de fome”. Essa não sei de quem é, o que é irrelevante. Há milhares de frases como essa, todos os dias, na internet. Aliás, há pouco mais de 30 anos, quando comecei a prestar atenção à política, escuto gente atribuindo a fome ou a miséria a esta ou àquela autoridade.
Outra mensagem parece mais globalizada: “Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!”. Sabe-se lá o que a frasista queria dizer com isso. Imagino que tenha a ver com a defesa de algum tipo de iliberalismo. Mas é só um palpite.
Há frases bem sem gracinha, do tipo “a maioria dos juízes nunca foi juiz”, e, pasmem, “não querem se reformar”. Há frases mais pesadas. Palavrões, que me permito não citar aqui, e bobagens, em regra mal escritas e de gosto duvidoso.
Discordo dessas frases e , diferente de seus autores, sempre tive nossa Suprema Corte em alta conta. Dias atrás elogiei o ministro Celso de Mello pela sua recusa em proibir uma passeata com críticas ao STF e promovendo precisamente o tipo de ideias que as tais mensagens expressam.
Pois é o que nossa Suprema Corte faz agora. Já havia feito quando interditou uma publicação da revista Crusoé, por ser caluniosa ou falsa. À época, muita gente protestou, com razão. Houve editoriais de jornais respeitáveis. Agora os ventos mudaram. A coisa diz respeito a pessoas “do outro lado” da política.
O despacho do ministro diz suspeitar que as mensagens compõem uma complexa rede de pessoas que expõe “a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes e o Estado de Direito”.
Trata-se, sem tirar nem por, de punir o delito de opinião. Opinião individual ou organizada, não importa. Opiniões “perigosas” para a República. Opiniões, repito, que inundam as redes sociais, no Brasil e mundo afora, todos os dias.
O Estado brasileiro, pela mão de nossa Suprema Corte, se prepara para assumir a função de reguladora do grau de risco que uma frase ou grupo de frases podem trazer à República, às instituições ou à ideia mais geral da democracia.
Conhecendo o histórico do STF em defesa da liberdade de expressão, intuo que muitos de seus membros se sentirão incomodados ao passar os olhos por aquelas mensagens toscas e imaginar que alguém possa considerar que sua expressão não esteja garantida pela Constituição brasileira.
Ela está. Isso foi perfeitamente consagrado na histórica decisão tomada pelo próprio Supremo, quando da revogação da Lei de Imprensa.
O ministro Ayres Britto foi direto: “Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”.
Isso não exclui, por óbvio, o direito de resposta ou à reparação, sempre a posteriori. O que é estranho ao nosso ordenamento institucional, ao menos até agora, é a ideia de um Estado praticando um controle prévio e genérico de opinião, arbitrando o falso e o verdadeiro.
É precisamente isto que parece estar mudando. Parecemos estar migrando para um modelo de tutela do Estado sobre a opinião pública. Como sempre ocorre nesses casos, ninguém sabe bem quais são as ideias erradas e qual é o limite do que pode ou não ser dito. No lugar de definições que deveriam ser claras e transparentes, há um imenso vazio.
Esta vacuidade é o avesso do direito.
O problema do Estado tutor é sempre o mesmo: ideias erradas costumam habitar o outro lado do mundo político, e um acordo sobre essas coisas não é tarefa simples em sociedades abertas.
Não acho que deveríamos enveredar por este caminho. A maioria pode estar gostando, ou ao menos a maioria dos que ainda podem se expressar sem medo. Mas não é um bom caminho.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.