Imagine o seguinte: você é convidado a decidir sobre os princípios que irão organizar a sociedade. Direitos, liberdades, igualdade, o que for. Você tem ampla informação sobre economia e as motivações humanas. Só não sabe quem você é. Não sabe se é homem ou mulher, rico ou pobre, religioso ou ateu. Se é um jogador audacioso, como Elon Musk, ou alguém avesso ao risco. Nestas condições, que tipo de princípios de justiça você escolheria?
Este desafio atiçou a imaginação de gerações de estudantes de filosofia e politica, no último meio século. John Rawls o chamou de escolha sob o véu da ignorância. Foi um dos pontos de partida de sua obra monumental, “Uma Teoria da Justiça”, lançada nos inícios de 1971, e que por estes dias completa seu cinquentenário.
A resposta dada por Rawls tornou-se ponto de referência para o debate liberal. Ele diz que, naquelas condições de incerteza, trataríamos primeiro de assegurar liberdades básicas para todos. Em segundo lugar, uma base de oportunidades iguais para cada um. E por fim, admitiríamos desigualdades econômicas, desde que elas produzissem maiores vantagens aos grupos sociais menos favorecidos, ao longo do tempo.
Rawls formulou sua tese em um mundo muito diferente do nosso. Eram os anos 60, época dos direitos civis e da “grande sociedade”, de Lyndon Johnson. Os anos pós-Rawls foram marcados pela explosão da riqueza em um mundo globalizado, pela integração planetária produzida pela internet, pelo redução da pobreza global, ainda que às custas da explosão da desigualdade em muitas regiões do mundo.
A pergunta óbvia: sua teoria prossegue válida, nos tempos atuais? Muita gente acha que não. “Vivemos em um mundo de barricadas”, dizia um interlocutor cético, para que a ideia de um consenso liberal em torno de normas de justiça não é mais que uma quimera.
Para muitos, como Charles Mills, professor da Universidade de Nova Iorque e autor de “O contrato racial”, é simplesmente “bizarra” a idealização gentil da “sociedade como empreendimento cooperativo para benefício mútuo”. Espécie de “ignorância branca” sobre um mundo feito de exclusões e exige soluções bastante mais radicais.
Há quem sustente o contrário. Que o argumento de Rawls permanece mais vivo do que nunca. Por muitas razões. Uma delas define sua teoria como um convite à humildade. Em um mundo marcado pelas cisões de identidades e pela guerra cultural, é ainda mais atual uma visão que nos lembra sobre os limites do contrato político.
Vai aí a primeira grande lição de Rawls: somos uma sociedade irremediavelmente cindida por um conflito ético, em sentido amplo, e neste terreno simplesmente não há acordo possível. Temas envolvendo religião e crenças morais arraigadas sobre sexualidade ou o sentido da família. Muitos deles nos dividem hoje mais do que há trinta anos, e surgem no espaço público com velocidade e intensidade inéditas. Eles não serão objeto de consenso algum visto que somos uma grande sociedade aberta, não uma comunidade.
O acordo possível se dá no terreno da política. E neste sentido o experimento de “desenraizamento” que ele nos propõe, ainda que difícil e por vezes irritante, permanece perfeitamente válido.
Uma segunda lição de Rawls diz respeito à justiça econômica. Seu ponto é defender o que chama de “principio da diferença”. Um trade-off: aceita-se a desigualdade econômica, dentro de certos parâmetros, desde que todos os botes subam com a maré. Isto é: o arranjo escolhido deve ser o melhor, dentre as alternativas viáveis, para os menos favorecidos.
Aqui é preciso evitar alguns equívocos de interpretação. Li em um artigo recente que Rawls aceitaria alguma “recompensa extra aos superprodutivos”, mas vetaria coisas como um contrato milionário de Lionel Messi (fiquei imaginando o que dizer da fortuna de Jeff Bezos e outros tantos).
Completo equívoco. Sua teoria não diz respeito a esta ou aquela transação econômica. Não importa o salário deste ou daquele jogador, ou a rentabilidade de uma empresa, desde que o arranjo econômico, isto é, as instituições atendam ao critério ético. Rawls chegou a dizer que gostaria de ver seu princípio da diferença como um preâmbulo da Constituição. Um fim civilizatório, que diz respeito à continua abertura de oportunidades aos desfavorecidos pelas circunstâncias sociais, e não uma teoria mesquinha sobre o quanto cada um pode ganhar.
A justiça, dizia ele, não exige conformidade à qualquer “padrão observável” de igualdade. Ou grau de desigualdade que possa ser medido “a partir de um certo intervalo do coeficiente de Gini”.
Não acho que uma teoria pedindo que nos abstenhamos, por um momento, de julgar o mundo com base no “principio da inveja”, e que solicite respeito a um amplo leque de visões de mundo, opostas e não raro excludentes entre si, possa ser particularmente popular em um mundo conflagrado como o nosso. Somos de um tempo muito pouco rawlsiano, neste sentido.
O que me parece certo é que sua teoria prosseguira sendo lida e discutida mesmo quando nossos rancores e desavenças já fizerem, há muito, parte do passado.
Fernando L. Schüler é Cientista Político e Professor do Insper
(publicado, resumidamente, na Folha de SP, em fevereiro de 2021)