“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz. Fomos silenciadas!”, diz o voto da Ministra Rosa Weber, a favor da legalização do aborto até três meses de gestação. O texto denuncia a “discriminação estrutural”, na sociedade brasileira”, a “política criminal do Estado”, com o aborto, e defende a “interseccionalidade” na abordagem do assunto. A Ministra bem traduz perfeitamente a visão de uma parte da sociedade. Algo em torno de 44% da população, segundo o último Datafolha. Seu argumento síntese diz que o Artigo 5º da Constituição, que não protege “o feto como uma pessoa constitucional, titular de direitos fundamentais”.
É uma opinião válida, como costumava dizer um querido professor, na faculdade. Assim como opiniões contrárias, vinculando a “dignidade da vida, desde a concepção”, à proteção do feto. O texto diz que a Constituição permite muitas interpretações e que é preciso “uma instituição não eleita e imparcial” para decidir. Achei isto curioso. Como conciliar uma posição perfeitamente parcial e apaixonada, como o voto da Ministra, com a pretensão de expressar uma racionalidade “imparcial”, em uma sociedade dividida?
O tema se tornou recorrente, em decisões de nossa Suprema Corte. É o caso da Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso, em 2016, definindo regras de compliance para nossas empresas públicas. Uma delas exigia uma quarentena de 36 meses, por parte de dirigentes políticos, com amplo reconhecimento de que isto foi benéfico para frear a corrupção e melhorar o desempenho das empresas. Seis anos depois, o Ministro discordou. Concordou com a visão do PCdoB, autor da ação, de que aquelas regras criavam “discriminações”, e que aquele prazo de 36 meses era “desarrazoado”. Por que não seria razoável? Porque sem fundamento na “realidade fática”. E por que? Por não ser “aceitável de um ponto de vista racional”. E por que não seria racional? Por não ser afeito a “pessoas equilibradas”. Isto é, “pessoas razoáveis”. Deu para entender?
O argumento circular é próprio de quem não precisa, no fundo, convencer ninguém. Basta mencionar alguns princípios genéricos da Constituição, como “igualdade”, “liberdade”, “dignidade”, “cidadania”, “não discriminação”, e derivar daí alguma conclusão. Um tipo de viés de confirmação constitucional: busca-se na Carta os conceitos que melhor se encaixam na defesa das posições que se quer defender. Tudo perfeitamente cabível no debate democrático. No Congresso, na sociedade, onde há o contraditório, os cidadãos têm voz e a engenharia difícil e barulhenta da democracia faz valer sua força.
Quando feito pelo judiciário, em matérias que avançam sobre prerrogativas dos demais poderes, temos o que o Professor Ran Hirschl, da Universidade de Toronto, chamou de “juristocracia”. Ele diz que contínua transferência de poder dos parlamentos para as cortes superiores funciona como um tipo “pacto entre elites hegemônicas” para a proteção de sua agenda política. A tese é sedutora, mas perigosa. É possível imaginar que exista uma elite, em algum sentido da palavra, favorável à legalização do aborto, em contradição com a maioria da população. Ou quem sabe uma elite sindical favorável a volta de uma “contribuição” aos sindicatos, na contramão do parlamento. O ponto é que a dicotomia “povo x elite” é muito pouco precisa. O que parece ocorrer é que o STF, de fato, soube se afirmar, ao longo do tempo, como um tipo de poder moderador. E o fez pela convicção e habilidade de seus membros, por funcionar como árbitro entre grupos de pressão, e pelo vácuo de poder deixado por um legislativo dividido e letárgico no cumprimento de muitas de suas funções. Em especial, o fez por contar com o apoio de setores hegemônicos na sociedade. No mundo jurídico, em boa parte dependente de decisões da própria Corte, na academia e na polarização política mais ampla da sociedade, na qual a maioria do Supremo adotou uma posição bastante evidente. Se tomarmos medidas de recentes como a censura, o marco temporal das terras indígenas e a legalização da maconha, há um claro alinhamento. O Supremo surge como porta-voz do “progressismo”, contra o “conservadorismo” do Congresso. A pergunta é se cabe ao judiciário, em uma república, assumir esta ou aquela posição política. Muita gente acha que sim, no embalo das simpatias e antipatias políticas. Mas talvez isso não devesse ser assim.
Existe uma mecânica elementar nas democracias: quem faz as leis e define políticas publicas deve se submeter ao julgamento dos cidadãos. Se um parlamentar legisla ou governa mal, os eleitores devem ter a chance de puni-lo, nas eleições. O sistema é accountable, isto é: faz com que o poder responda aos cidadãos. E é dos cidadãos que ele é retirado quando políticas públicas são definidas não por um representante eleito, mas por um ministro vitalício. Alguns dirão que os cidadãos comuns são míopes, sujeitos à “desordem informacional”, como já se escutou do próprio Supremo. Isto é nítido em diversas de suas decisões, apelando à “racionalidade”, ao dever de “curadoria”, ao senso das “pessoas equilibradas”, à hipossuficiência do “eleitor ordinário”. Visão que por vezes me lembra da “epistocracia”, ou o “governo dos que sabem”, do cientista político americano Jason Brennan.
Lamento dizer, mas há o vezo de uma elitista aí, que confronta a pedra angular de todo edifício democrático moderno, dada pelo princípio da soberania popular. Elitista e perigosa. As instituições da democracia liberal, com seu delicado equilíbrio entre os poderes, freios e contrapesos, não são um preciosismo intelectual. São o resultado de um difícil aprendizado. Elas expressam um tipo de racionalidade de longo prazo, capaz de produzir coesão em sociedades divergentes, marcadas por múltiplas fraturas que (felizmente), não irão desaparecer, pois fazem parte daquilo que somos. Sua preservação, ao longo do tempo, exige um contínuo exercício de renúncia. A cada vez cedemos a tentação do uso indevido do poder, que flexibilizamos a regra do jogo, transferindo uma prerrogativa legislativa para um poder não eleito, todo o edifício republicano é fragilizado. Talvez sem querer, nos esquecemos de uma velha lição de Norberto Bobbio, de que as democracias liberais se definem como o governo das leis, e não dos homens. É esta, no fundo, a grande lição iluminista, feita de uma “sabedoria longa”, que entre outras coisas exige levar à sério a ideia de autocontenção. Não é uma tarefa simples. O poder é tentador, há muito sabemos disso. Mas é o que devemos fazer.
Fernando L. Schuler
Originalmente publicado na Revista Veja, em outubro de 2023