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Governo dos homens?

“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz. Fomos silenciadas!”, diz o voto da Ministra Rosa Weber, a favor da legalização do aborto até três meses de gestação. O texto denuncia a “discriminação estrutural”, na sociedade brasileira”, a “política criminal do Estado”, com o aborto, e defende a “interseccionalidade” na abordagem do assunto. A Ministra bem traduz perfeitamente a visão de uma parte da sociedade. Algo em torno de 44% da população, segundo o último Datafolha. Seu argumento síntese diz que o Artigo 5º da Constituição, que não protege “o feto como uma pessoa constitucional, titular de direitos fundamentais”. É uma opinião válida, como costumava dizer um querido professor, na faculdade. Assim como opiniões contrárias, vinculando a “dignidade da vida, desde a concepção”, à proteção do feto. O texto diz que a Constituição permite muitas interpretações e que é preciso “uma instituição não eleita e imparcial” para decidir. Achei isto curioso. Como conciliar uma posição perfeitamente parcial e apaixonada, como o voto da Ministra, com a pretensão de expressar uma racionalidade “imparcial”, em uma sociedade dividida? O tema se tornou recorrente, em decisões de nossa Suprema Corte. É o caso da Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso, em 2016, definindo regras de compliance para nossas empresas públicas. Uma delas exigia uma quarentena de 36 meses, por parte de dirigentes políticos, com amplo reconhecimento de que isto foi benéfico para frear a corrupção e melhorar o desempenho das empresas. Seis anos depois, o Ministro discordou. Concordou com a visão do PCdoB, autor da ação, de que aquelas regras criavam “discriminações”, e que aquele prazo de 36 meses era “desarrazoado”. Por que não seria razoável? Porque sem fundamento na “realidade fática”. E por que? Por não ser “aceitável de um ponto de vista racional”. E por que não seria racional? Por não ser afeito a “pessoas equilibradas”. Isto é, “pessoas razoáveis”. Deu para entender? O argumento circular é próprio de quem não precisa, no fundo, convencer ninguém. Basta mencionar alguns princípios genéricos da Constituição, como “igualdade”,  “liberdade”, “dignidade”, “cidadania”, “não discriminação”, e derivar daí alguma conclusão. Um tipo de viés de confirmação constitucional: busca-se na Carta os conceitos que melhor se encaixam na defesa das posições que se quer defender. Tudo perfeitamente cabível no debate democrático. No Congresso, na sociedade, onde há o contraditório, os cidadãos têm voz e a engenharia difícil e barulhenta da democracia faz valer sua força. Quando feito pelo judiciário, em matérias que avançam sobre prerrogativas dos demais poderes, temos o que o Professor Ran Hirschl, da Universidade de Toronto, chamou de “juristocracia”. Ele diz que contínua transferência de poder dos parlamentos para as cortes superiores funciona como um tipo “pacto entre elites hegemônicas” para a proteção de sua agenda política. A tese é sedutora, mas perigosa. É possível imaginar que exista uma elite, em algum sentido da palavra, favorável à legalização do aborto, em contradição com a maioria da população. Ou quem sabe uma elite sindical favorável a volta de uma “contribuição” aos sindicatos, na contramão do parlamento. O ponto é que a dicotomia “povo x elite” é muito pouco precisa. O que parece ocorrer é que o STF, de fato, soube se afirmar, ao longo do tempo, como um tipo de poder moderador. E o fez pela convicção e habilidade de seus membros, por funcionar como árbitro entre grupos de pressão, e pelo vácuo de poder deixado por um legislativo dividido e letárgico no cumprimento de muitas de suas funções. Em especial, o fez por contar com o apoio de setores hegemônicos na sociedade. No mundo jurídico, em boa parte dependente de decisões da própria Corte, na academia e na polarização política mais ampla da sociedade, na qual a maioria do Supremo adotou uma posição bastante evidente. Se tomarmos medidas de recentes como a censura, o marco temporal das terras indígenas e a legalização da maconha, há um claro alinhamento. O Supremo surge como porta-voz do “progressismo”, contra o “conservadorismo” do Congresso. A pergunta é se cabe ao judiciário, em uma república, assumir esta ou aquela posição política. Muita gente acha que sim, no embalo das simpatias e antipatias políticas. Mas talvez isso não devesse ser assim. Existe uma mecânica elementar nas democracias: quem faz as leis e define políticas publicas deve se submeter ao julgamento dos cidadãos. Se um parlamentar legisla ou governa mal, os eleitores devem ter a chance de puni-lo, nas eleições. O sistema é accountable, isto é: faz com que o poder responda aos cidadãos. E é dos cidadãos que ele é retirado quando políticas públicas são definidas não por um representante eleito, mas por um ministro vitalício. Alguns dirão que os cidadãos comuns são míopes, sujeitos à “desordem informacional”, como já se escutou do próprio Supremo. Isto é nítido em diversas de suas decisões, apelando à “racionalidade”, ao dever de “curadoria”, ao senso das “pessoas equilibradas”, à hipossuficiência do “eleitor ordinário”. Visão que por vezes me lembra da “epistocracia”, ou o “governo dos que sabem”, do cientista político americano Jason Brennan. Lamento dizer, mas há o vezo de uma elitista aí, que confronta a pedra angular de todo edifício democrático moderno, dada pelo princípio da soberania popular. Elitista e perigosa. As instituições da democracia liberal, com seu delicado equilíbrio entre os poderes, freios e contrapesos, não são um preciosismo intelectual. São o resultado de um difícil aprendizado. Elas expressam um tipo de racionalidade de longo prazo, capaz de produzir coesão em sociedades divergentes, marcadas por múltiplas fraturas que (felizmente), não irão desaparecer, pois fazem parte daquilo que somos. Sua preservação, ao longo do tempo, exige um contínuo exercício de renúncia. A cada vez cedemos a tentação do uso indevido do poder, que flexibilizamos a regra do jogo, transferindo uma prerrogativa legislativa para um poder não eleito, todo o edifício republicano é fragilizado. Talvez sem querer, nos esquecemos de uma velha lição de Norberto Bobbio, de que as democracias liberais se definem como o governo das leis, e não dos homens. É esta, no fundo, a grande lição iluminista, feita de

O Natal Cancelado

“Depende do contexto”, respondeu a reitora da Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magil, no Congresso Americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de judeus”, na universidade. Acabou renunciando. Teria sido uma resposta infeliz, ainda que “legalista”, na visão do chairman da universidade, Scott L. Bok. Numa alegação puramente formal, seria possível sustentar que a retórica de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação contra este ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isto que estava em jogo. Se a pergunta fosse: “você considera admissível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou pessoas negras, na universidade”, é difícil imaginar que a reitora (ou qualquer pessoa minimamente razoável) fizesse aquela relativização. A conclusão óbvia é a de que o antissemitismo seria menos “problemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado. O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a discriminação saiu do universo do Campus Universitário e foi para o Congresso. Para o grande debate, na sociedade. É algo comum no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero, raça e orientação sexual. Nesta lógica, pouco importa que o Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquininha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opressor”, aliado do ocidente (!). E a violência do outro lado um tipo de “reação”. Ou ainda: uma reação perfeitamente justificada, quiçá de “inteira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado, todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas doações, das universidades, e uma ampla reação se formou. Niall Ferguson resumiu a questão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insano que vivemos, nos últimos anos. É possível que Ferguson tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “racismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos grandes jornais, a partir dos anos 2010. Agora os ventos mudaram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pesquisas mostrando que aqueles temas perderam terreno, nos últimos anos. “A terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drasticamente a procura por executivos de “diversidade”, nas empresas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e entender o que as pessoas de fora estão dizendo”, ao invés de simplesmente impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões ideológicas, nas universidades, apresentaram um recuo, segundo os dados da Fundação para os Direitos Individuais em Educação. Explicar este fenômeno nos faz voltar ao tema dos limites. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingleses anunciando que o Imperador romano Heliogábalo, no século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias como esta, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, passaram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma agenda perfeitamente legítima de inclusão foi se convertendo em um radicalismo algo exótico e avesso ao bom-senso. A partir daí, a reação difusa, na sociedade. Muitos intelectuais tomaram à frente, mas a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e acontecimentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão pateticamente ideológica, no último ENEM, sobre o agronegócio. A cada semana observo este conflito silencioso nas escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas e comportamentais muito específicas. Por vezes é a imposição de uma educação “étnico-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gênero, devidamente enviesados; em outros casos é a mais pura mesquinharia, como vi ainda esta semana, em uma escola bacana de São Paulo, proibindo uma foto das crianças com aqueles gorrinhos de papai-noel, para celebrar o final de ano, no que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”, me disse, desanimada, a mãe de uma aluna. O que se observa nestes casos é uma marca de nossa época, talvez acentuada pela revolução digital: a dicotomia entre a cultura dos ativistas e os valores do “common sense”. Pesquisa do The Hidden Tribes mostrou que os “ativistas progressistas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são ativos, no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultraconservadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento, e não é por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou  “exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que lê no Twitter, provavelmente terá uma visão distorcida, e muito mais radical, do que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoáveis, sem obsessões políticas e dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militante. Ele é amplamente minoritário, mas vai a todas as reuniões, é articulado e segue uma agenda da qual não abrirá mão. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês, sugerir atividades. E por nada desse mundo revisará seus bem-consolidados pontos de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “erro”. E como tal, precisam ser corrigidos. Vai ai um desafio. Em especial, na educação. Ele foi bem formulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política”, e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo: universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se virar por conta própria. O que é realmente inaceitável é que a doutrinação seja feita nas escolas, diante de crianças sem capacidade de se contrapor à “autoridade intelectual” de

Não estamos em guerra

Meu último artigo gerou uma boa discussão. Uma das observações que recebi lembrava de nossa Lei antirracismo e argumentava que era correta a ação da Confederação Israelita contra o jornalista que relativizou o terrorismo do Hamas, fazendo menção à frase do Deng Xiaoping sobre “não importar a cor dos gatos, desde que cacem os ratos”. Há um ponto interessante aqui. A Conib, como qualquer outra organização, tem todo direito de mover uma ação, nos termos da lei. Caberá à justiça decidir a questão. Vale o mesmo para os crimes contra a honra. Se alguém se sentir caluniado ou difamado, pode acionar a justiça. Ações desse tipo, respeitando o devido processo, não ferem, mas reforçam o princípio da liberdade de expressão. Não se deve confundir uma ação privada, à posteriori, fundada em lei, com atos de censura prévia e “de ofício”, amplamente praticados no Brasil, nos últimos anos. Agradeço às observações feitas ao meu texto, e digo aqui que é do debate de ideias franco e cordial que se faz uma grande democracia. Outra critica que recebi diz que vejo a liberdade de expressão como um “direito absoluto”. Não é o que penso. Até conheço algumas pessoas que defendem essa ideia, mas não é o meu caso. A liberdade sempre será regulada. A pergunta real é sobre como isto será feito. A partir de critérios restritos e bem estabelecidos, com base em lei aprovada no parlamento? ou a partir de critérios ad hoc, abertos a todo tipo interpretação e discricionariedade por parte de quem detém o poder?  Ainda na outra semana vi um exemplo disso. Um Ministro declarou que seria crime “comemorar o 8 de janeiro”. Na sua opinião, o 8 de janeiro foi um “golpe”, e comemorar um golpe seria crime. O exemplo é banal, mas está lá. Não há lei alguma no País dizendo que não se possa comemorar a tal data (seria de péssimo gosto, isso sim). Aquilo é simplesmente a opinião de uma autoridade, feita de um conjunto muito vago de interpretações. Um pouco a crônica do Brasil recente. Uma postagem, um documentário, um papo no Whatsapp, qualquer coisa pode ser um crime, desde que na opinião da autoridade aquilo seja um crime. Razões? A “verdade”, o “ódio”, não importa muito. Trata-se de uma visão com apoio na sociedade, mas vejo um crescente cansaço. Cada vez mais gente se dando conta que a intervenção arbitrária nos direitos individuais e a falta de isonomia nas regras do jogo é menos uma solução e mais uma causa da tensão política, no País. Há uma outra tradição que tenta compatibilizar a preservação do mais amplo “mercado de ideias” e os demais valores que prezamos, como sociedade. Sua melhor expressão (mas não a única) é o longo aprendizado em torno da Primeira Emenda à Constituição Americana. Sua base é a clara distinção entre o universo da “opinião” e o da “conduta” das pessoas. Gustavo Maultasch trata disso em seu livro “Contra toda a Censura”, cuja leitura recomendo vivamente. A distinção vem de longe. Está lá no clássico de John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”, quando ele diferencia uma opinião na imprensa, culpando a propriedade privada e os comerciantes de milho pela fome, e esta mesma opinião em um discurso irado, diante da multidão furiosa, ameaçando um comerciante de milho à frente de sua casa. O ponto de Mill: a opinião só deve ser punida “se for provável que um ato violento resulte daquela manifestação”. ​No Brasil, poucos traduziram melhor esta distinção do que o Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto minoritário no caso Ellwanger, em 2003. A questão era conceder ou não um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, escritor que relativizava a história do holocausto, entre outras barbaridades. O Ministro Marco Aurélio fez uma dura defesa do direito à expressão, dizendo que ele se prestava precisamente para as “ideias controversas, radicais, minoritárias, desproporcionais”. E acrescentou: “a única restrição deve ser quanto à forma da expressão”. E fez a distinção: haveria crime se Ellwanger “em vez de publicar um livro […], distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre”, com dizeres do tipo “vamos expulsar estes judeus do País”. A simples defesa de uma tese, por estúpida que fosse, não configuraria crime. A tese do Ministro se aproxima do clássico critério formulado por Oliver Holmes, na Suprema Corte Americana, em 1919: não havendo “perigo real e imediato” em um discurso, ele deve ser protegido. O argumento seria depois detalhado pelo Juiz Louis Brandeis, em um caso envolvendo a ativista comunista Charlotte Whitney. “O medo de danos graves”, diz ele, “por si só, não pode justificar a supressão da liberdade de expressão”. E foi direto: “se houver tempo para expor a falsidade, para reverter o mal pela educação, o remédio a ser aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado”. A tese foi confirmada em um julgamento clássico, no final dos anos 60, quando um, dirigente da Ku Klux Khan, Clarence Brandenburg, fez um discurso atacando os direitos civis, nos Estados Unidos. Entre outras coisas, disse que os “negros deveriam ser devolvidos à África” e os “judeus devolvidos a Israel”. Seu discurso era odioso, mas seu direito foi defendido junto à Suprema Corte por um advogado judeu, Allen Brown, e uma jovem advogada negra e progressista, Eleanor Norton. Eles ganharam. Norton se tornou uma grande ativista. E sempre explicou que não lutava por este ou aquele discurso, mas pela preservação de um princípio: que não deve caber ao Estado decidir “quem e o que se pode falar”. Algo que “por vezes me obriga”, acrescentou, a “defender pessoas que jamais me defenderiam”. Na vida americana, a tese de Brandeis e Holmes se tornou majoritária; No Brasil, aquela posição similar do Ministro Marco Aurélio, minoritária. Quem teria razão? Não sei. É possível que a tradição de Madison, Mill, Brandeis e Oliver Holmes esteja errada, e certos estejamos nós. Com direito a uma pergunta sobre quem somos “nós”. Escrevemos uma Constituição protetiva de direitos, derrubamos a lei de Imprensa, a lei de segurança nacional, vedamos

Soma Variável

“Ninguém deveria ter um bilhão!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de um bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passar da quota de um bilhão? Se ela ficar com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de um bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então porque eu iria continuar trabalhando, tomando risco”? Por esporte? E se ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá… Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia”, que a riqueza dos 5 mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-mad-man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um. Não há nenhum jogo de soma zero, funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas. Me lembro quando li “O Capital no Século XXI”, do Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (de “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim, De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “vamos seguir o Stiglitz”. “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história. Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a R$ 3.208 (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas no fundo mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É um discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “à favor”. É chato, complicado, exige buscar eficiência em política públicas, demanda soluções de mercado, em regra contraintuitivas, com resultados de longo prazo. E dá muito menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana . Indermit Gill,  do Banco Mundial, tem uma sugestão bastante simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem sucedidas na redução da pobreza. Países do sudeste asiático, como a Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnam. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação.  Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”, e coisas do tipo. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2,6 mil. O País que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isto não acontece por que “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, estabilidade das regras, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que haviam por lá. Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development,  avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a

Sobre os que dizem não

A história é conhecida, e bastante constrangedora. Um fazendeiro é pego em um automóvel praticando sexo com duas meninas, de 14 e 13 anos. Condenado a 8 anos de prisão, recorre. Na segunda instância, é absolvido. O magistrado que relatou o caso diz que era “crível” que o sujeito confundisse a menina com alguém maior de 18 anos e que, afinal de contas, a menina era uma “bêbada” e “prostituta”. O Conselho da Criança e do adolescente lamentou o fato, dizendo que o estuprador merecia uma “pena exemplar”. E não existe “sexo consentido” com uma menina de treze anos. Está bêbada? Deve ser protegida, não abusada. Só um País inteiramente doente pode empurrar uma coisa dessas para baixo do tapete. Pois bem, um jornalista, Tiago Pavinatto, usou palavras fortes, em uma rádio, para se referir ao magistrado que relatou o caso. A emissora não gostou e mandou que ele se desculpasse. Pavinatto disse não. Terminou demitido. Seu gesto ganhou alguma notoriedade. Em um País em que o medo se torna o pão de cada dia, alguém disse não. Pode-se concordar ou não com o gesto de Pavinatto. Muita gente acha que ele poderia ter feito uma crítica mais suave, e deve haver quem concorde, discretamente, com o magistrado. De minha parte, o que fascina é o gesto. O fato de que alguém, em um certo momento, decida pagar o preço de andar na contramão. E o faça em nome de algumas convicções. Ainda agora ando acompanhando o caso bem mais complicado de Jordan Peterson e sua disputa com a Associação de Psicólogos de Ontário, no Canadá. Peterson é um tipo politicamente incorreto e foi “condenado” pela Associação a fazer um “curso de reeducação digital” em função de meia dúzia de tuites sobre assuntos variados. Em um deles, Jordan diz achar que uma modelo obesa “não era bonita”; em outro, chamava o Justin Trudeau, o primeiro-ministro pop do Canadá, de “puppet”. Uma “marionete”, ou coisa assim, em função de decisões que ele tomou na pandemia. A associação decidiu que ele não estaria apto a atuar como psicólogo e exigiu que fizesse o tal curso. Jordan disse não. Recorreu à justiça e perdeu. Se for mesmo obrigado a fazer o curso, diz que transformará tudo em um espetáculo sobre a intolerância canadense atual. Caso isso aconteça, diria que será um strip-tease do ridículo contemporâneo. Dizer não, por vezes, pode sair caro. Meu caso favorito é do Oscar Wilde. Ele namorava o Bosie, filho do Marquês de Queensberry, era casado e a homossexualidade era crime, na Inglaterra do final do século XIX. Wilde era uma estrela. Havia acabado de lançar “The Importance of Being Earnest”, era ovacionado nos teatros londrinos e tinha uma sedução parecida com Jordan Peterson pela ironia debochada de quem anda na contramão da cultura. O pai do rapaz um dia lhe mandou um bilhete agressivo, chamando Wilde de “sodomita”, em uma evidente ameaça. Wilde poderia ter recuado, mas disse não. Resolveu processar Queensberry ele mesmo, e a partir daí cavou sua desgraça. O processo virou, o Marques demonstrou facilmente que ele era, de fato, um homossexual, o que lhe rendeu dois anos de trabalhos forçados, boa parte do tempo empurrando um moinho, como um cavalo, na prisão de Reading. Jordan Peterson talvez ganhe alguns milhares de seguidores, com sua petulância. Wilde morreu à mingua, em um hotel barato, em Paris, poucos anos depois. É evidente que seu gesto se tornou icônico. Eu mesmo fui até o Cadogan Hotel, em uma noite quente de Londres, apenas para capturar um pouco da atmosfera em que Wilde passou sua última noite, antes da prisão. Consta que ele bebeu muito naquela noite, e por muito tempo mais um bandido do que herói, e tremendamente embaraçoso pronunciar seu nome, na Inglaterra. Heroína mesmo foi Rosa Parks. O ônibus em que ela se recusou a levantar e ceder o lugar aos passageiros brancos conheci no magnífico Museu de História Afro-Americana, inaugurado pelo Obama, em Washington, e que ninguém deveria deixar de visitar. Naquele primeiro de dezembro de 1955, porém, em Montgomery, no Alabama, estado segregacionista do sul dos Estados Unidos, as coisas eram bem mais complicadas. Ela era costureira e ativista, mas fundamentalmente estava cansada daquilo tudo. Da humilhação cotidiana e sem sentido. E resolveu dizer não. O motorista chamou a polícia, ela foi presa, e a história é conhecida. Desencadeou um gigantesco movimento que, meses depois, levaria ao banimento da discriminação no transporte urbano na cidade. A história sugere uma imensa energia social em movimento, as longas marchas de cidadãos negros boicotando o transporte coletivo, a imagem de Martin Luther King triunfante, finalmente entrando pela porta da frente, em um ônibus dessegregado. Mas em um momento perdido naquela noite fria de dezembro o mais prudente teria sido obedecer a ordem do motorista, ir lá para trás, evitar a delegacia, a incerteza toda, ao invés de dizer não. Poderia ir longe aqui, o tema é fascinante, mas não é o caso. Talvez poucas coisas definam melhor a nossa época do que o súbito gosto pela regulação da fala, da arte, das ideias, e logo pela censura, que tomou de assalto nossa cultura. A plataforma da FIRE, Foundation for Individual Rights and Expression, uma jovem organização defensora da liberdade de expressão no mundo acadêmico americano. Os casos de “cancelamentos” foram de 4, em 2000, para 145, ano passado, numa escala crescente. As razões, em regra, são triviais. Uma crítica ácida ao governador De Sanctis, da Flórida; um tuíte “antissemita” contra Israel; uma postagem sugerindo que a definição de mulher guarda alguma conexão biológica. Tudo me lembrou um pouco a querela teológica, sobre a natureza da trindade e coisas do tipo, que podiam levar alguém à fogueira, nos inicios da modernidade, e por um momento me vi perguntando se não estamos andando em marcha ré. No Brasil, já vamos nos acostumando com a volta do cangote. Ainda esta semana li sobre a quase inacreditável censura ao “Joaquim Teixeira”, um personagem humorístico que nem o meu sobrinho

Carnegie e Eufrásia

Eufrásia era sinhazinha da fazenda de Hera, neta do Barão de Itambé, herdeira dos Teixeira Leite, nobreza do café e do embrionário capitalismo brasileiro, no triste século XIX. Quando o pai morreu, no início dos anos 1870, decidiu ser uma mulher independente e uma mulher do mundo. Foi para Paris, com a irmã, se fez investidora, multiplicou a fortuna que havia herdado. No meio do caminho teve um romance desses tórridos e enrolados, com Joaquim Nabuco, mas isso é outra história. No fim da vida, tinha ações de 297 empresas. Morava em um palacete, perto do Arco do Triunfo, e sua fortuna valia a coisa de duas toneladas de ouro. Pouco antes de morrer, em um apartamento de Copacabana, em 1930, Eufrásia fez seu testamento, legando quase tudo que tinha para Vassouras. Dona Ana Esméria, sua mãe, queria que ela deixasse um bom bocado para os primos. Não era o que ela tinha na cabeça. Entre muitas coisas, mandou que cuidassem da Chácara de Hera, do hospital da cidade, que abrissem dois educandários, um para ensinar as meninas a “lavar, engomar, coser, cortar e bordar”, e outro masculino, para iniciar os meninos nas “artes mecânicas”. Tudo com o cuidado de dar 20 contos para os mendigos de Vassouras e 20 mil Francos para os de seu quarteirão, em Paris. O futuro foi ingrato com as doações de Eufrásia. Os educandários tiveram fim melancólico. A unidade masculina acabou virando uma unidade do Senai. O instituto feminino fechou as portas quando as freiras se foram, no início dos anos 90. O hospital está lá, até hoje, decadente e endividado. A casa de Hera, ao menos, prossegue intacta. Virou museu, em 1968, e vale a visita a Vassouras. Para bancar a caridade, Eufrásia mandou liquidar seus bens, de modo a garantir “a importância em dinheiro necessária”. Comprou apólices da dívida pública, com juros de 5% ao ano. Não previu um detalhe: a hiperinflação brasileira, que ajudou a derreter seu legado. Alguns anos antes, no lado norte da América, uma outra história se desenhava. Andrew Carnegie, o “príncipe do aço”, também vinha fazendo suas doações. Só que de um jeito diferente. Imigrante pobre, self-made man, Carnegie fez fortuna na siderurgia, na segunda metade do século XIX. Com 66 anos vendeu suas indústrias ao J.P Morgan e se tornou o maior filantropo americano. Fez diferente de Eufrásia. Ao invés de dispersar seu dinheiro em doações assistenciais, optou por criar instituições. No coração de Manhattan, criou o Carnegie Hall. Tchaikovsky regeu sua Marche Solenelle, no concerto inaugural. Em Pittsburgh, na Pensilvania, criou o Instituto tecnológico que daria origem, muito tempo depois, à Carnegie Mellon University; criou o Carnegie Endowment for International Peace, muitas vezes escolhido como o melhor think tank do planeta. A síntese de sua estratégia foi a criação da Carnegie Corporation of New York, um trust instituído por Carnegie aos 76 anos para cuidar do que restava de sua fortuna (que não era pouco), e lidar com sua política de doações. A história de ambos conta um pouco sobre o nosso atraso. É evidente que a Fortuna de Carnegie era imensamente maior do que a de Eufrásia. Não é este o ponto. E é também verdade que Eufrásia foi um ponto fora da curva, na história de nossa riqueza, e em especial na de nossas mulheres, até os inícios do século XX. Era uma financista, independente, com um traço cosmopolita, e ao final da vida agiu com generosidade. Doou tudo para a “caridade”, e é aí que se revela não apenas a suas limitações, mas o atraso evidente da formação brasileira. Eufrásia poderia ter agido, como doadora, com a mesma sabedoria que o fez para acumular sua fortuna. Poderia ter criado uma corporação similar à estabelecida por Carnegie, em Nova Iorque. Bem administrado, talvez fosse hoje o maior fundo de filantropia do País. Não o fez. Investigar as razões disso eventualmente pode nos ajudar a entender quem nós somos. E a melhorar como País. A primeira razão, penso, está na cabeça das pessoas. Talvez vá aí, para além das instituições e das quase três mil bibliotecas que construiu, a maior contribuição de Carnegie. Em 1887, ele escreveu um texto que se tornaria uma espécie de bíblia da filantropia americana, The Gospel of Wealth. Ele começa com uma defesa do livre mercado e da acumulação da riqueza, base do progresso moderno e único sistema possível (o contrário implicaria em “mudar a natureza humana”), mas seu ponto é outro. A questão crucial era o que fazer com a riqueza. Há três opções. A primeira delas, tripudiada por Carnegie, é deixar para os filhos. É preciso deixar educação, não riqueza. Heranças gordas, para a prole, frequentemente são uma “maldição”. Algo feito mais por orgulho familiar do que preocupação genuína com o bem-estar dos filhos. Legar a riqueza ao morrer também seria um erro. Além do risco da má gestão, há o problema ético. “Morrer rico é morrer desonrado”, provocou. É preciso viver, e não apenas morrer, com um propósito. Carnegie achava inclusive que o Estado deveria dar um empurrão nisso, taxando as heranças. “Ao taxar pesadamente as propriedades no momento da morte”, dizia, “o estado marca sua condenação da vida indigna do milionário egoísta”. A grande sacada, para Carnegie, era que os ricos convertessem sua riqueza ainda em vida, na plenitude de suas forças, para fins públicos. O segredo era aplicar o dinheiro de um jeito inteligente e evitar a qualquer custo sua dispersão. Vai aí uma visão ética da vida. Ganhar dinheiro no mercado, acumular riqueza e depois investir em coisas que melhorem o mundo e façam subir os botes que não conseguiram subir, com a maré. Criar bibliotecas públicas, por exemplo. Ele estudou em uma muito precária, quando criança. Mandou construir perto de três mil, ao longo da vida. A ciência, a paz global e a democracia eram coisas cruciais, na sua visão. Coisa de 100 anos depois de sua última grande doação, Bill Gates e Warren Buffet criaram o Giving Pledge e transformaram

Os sonhos da Fadinha

“Trabalho desde os 14, durmo coisa de 5 horas, minha avó era doméstica e aprendi inglês sozinho”, diz Tallis Gomes, criador do Easy Taxi. “Sou fruto da meritocracia”, e arremata: “temos que parar de incentivar o coitadismo”. Lembrei da fala do Tallis escutando as histórias de nossos atletas, lá em Tóquio, por estes dias olímpicos. Rebecca Andrade, nossa campeã na ginástica, não deixou por menos: “dei duro e tive inteligência para aproveitar as oportunidades”. A outra Rebecca, do vôlei de praia, sempre lembrada por não ter o biótipo “perfeito” para o esporte, lascou: “vendi o carro e fiz empréstimo para competir. Não foi do nada que a gente apareceu”. São relatos apaixonantes. Eles dizem, de um jeito simples, que o mérito importa. Mérito entendido como um tipo de atitude diante da vida. A capacidade de tomar iniciativa, assumir riscos, evitar a saída fácil de terceirizar responsabilidades e dar a volta por cima, quando as coisas não vão bem. A pergunta é: há algum problema com a meritocracia? O tema se tornou algo explosivo, nos últimos anos, e basta ir a uma livraria para ver livros aos montes sobre o “mito”, a “armadilha”, a “perversidade” da meritocracia. Esta ideia “falsa, que encoraja o egoísmo e a indiferença em relação aos desafortunados”, e que “deveria ser abandonada”, como li em um texto, dias atrás. E aí, quem tem razão? Nossos empreendedores e atletas, quando atribuem ao trabalho duro e ao suor uma parte relevante de seu sucesso, ou nossos teóricos e sociólogos, com sua ira santa contra a meritocracia? Arrisco dizer que há uma confusão aí. Nossas sociedades podem não ser meritocráticas, e este será meu argumento, o que não implica em dizer que, na vida de cada pessoa, as virtudes associadas ao mérito não façam a diferença. Michael Sandel trata desse tema em seu livro “A tirania do mérito”. Em geral concordo com Sandel, mas não dessa vez. Ele diz que a ideia de que nosso sucesso depende de nós é uma “visão emocionante da agência humana”, mas que anda lado a lado com uma conclusão tanto confortável quanto equivocada: a ideia de que “recebemos o que merecemos”. Sandel reclama de Barack Obama e quase todos os líderes americanos recentes, que compraram esta ideia furada. Obama teria usado mais de 140 vezes o mantra “se você tentar, você consegue”, em seus discursos, enaltecendo a ideia da justiça como oportunidades para as pessoas, tão cara ao American Dream. A nossa fadinha do Skate, Rayssa Leal, vai em linha com Obama. “Nunca desista dos seus sonhos”, disse ela em uma entrevista, depois daquela incrível medalha. Ela conta que ganhou um Skate aos seis anos e nunca mais largou. Que teve uma chance, que deu sorte. Os pais deram força, havia uma pista de skate na cidade. Mas a verdade é que nada disso explica o seu sucesso. Há milhares de decisões que ela mesma tomou, sem ninguém mandar, todos os dias, para chegar até aquele pódio, em Tóquio. E há algo um tanto óbvio aí: não desistir dos sonhos é o conselho que os pais darão aos filhos e treinadores aos atletas. Até mesmo nossos sociólogos, imagino, dirão isso a quem eles de fato prezam, quem sabe ao pé do ouvido, pra ninguém escutar. O que me parece um equívoco de Sandel é a transposição desta ideia “emocionante” da agência humana (na linha do “acredite, você pode”), que funciona essencialmente no plano individual, para a tese mais geral de que as pessoas, na grande sociedade, “recebem o que merecem”. É um salto que não pode ser dado. Pela razão simples de que o destino humano é opaco. Contam a sorte, as dotações naturais, as circunstâncias, os talentos, as escolhas. Somos, no fundo, a mistura de todas essas coisas. Alguns irão sugerir que tudo, no fundo, remete ao acaso, e que isto nos deveria levar à empatia para com os outros e a uma preocupação com a justiça. John Rawls trilha este caminho. Outros dirão que não é bom pensar assim. Que fará bem para a sociedade que as pessoas ajam como se tudo dependesse de suas decisões. Um pouco como sugeriu o Tallis Gomes. Penso que ambos têm razão, e que será preciso encontrar um ponto de equilíbrio aí. A grande ilusão é a de que vivemos em sociedades meritocráticas. Sociedades de mercado, baseadas na igualdade de direitos remuneram o valor, não o mérito. Ninguém sai de casa pra comprar pão e pensa “qual foi o padeiro do bairro que mais ralou pra abrir sua padaria”? O raciocínio é inverso: quem faz o melhor pão? Avaliação que depende do gosto de cada um. Se o sujeito ralou anos para abrir a padaria, ou se herdou da família, pouco importa. As empresas, os clubes, as escolas, os bombeiros, cada qual pode ter lá seu critério de mérito e premiar quem desejarem. Na grande sociedade é simplesmente impossível regular isto. Os critérios são abertos, difusos, dependem de infinitas decisões tomadas a todo momento, por uma infinidade de pessoas. E por razões que ninguém controla. Ainda bem. O que podemos fazer é discutir objetivamente qual o modelo de justiça é mais adequado, em uma sociedade aberta. Arriscaria dizer que ele deve atender a dois critérios. Um vem da grande tradição liberal; outro da grande tradição socialdemocrata. O primeiro diz que devemos assegurar a todos uma base de direitos iguais. Isto é, uma sociedade sem privilégios. Sem castas, regalias e favores do Estado. A partir dessa base de direitos iguais, respeite-se as escolhas das pessoas. Aqui vem o segundo critério: a oferta a cada um de uma base de oportunidades iguais. Observem: não se trata da quimera da igualdade de oportunidades. As pessoas continuarão a nascer em regiões diferentes, de famílias diferente, com talentos distintos, e tudo isto definirá suas chances. O que se pode assegurar é um base, ou seja, um patamar razoável de oportunidades iguais, a partir do qual o caráter, preferências e decisões de cada um definirão o jogo. Assegurados os dois princípios,

O iliberalismo e as regras não escritas da democracia

Haveria mesmo um “iliberalismo” de esquerda? Ou “progressista”? É a pergunta que a revista The Economist fez dias atrás, com direito a chamada de capa. Por óbvio, a discussão não dizia respeito à esquerda hard core, que gosta do modelo cubano ou acha a Venezuela uma grande democracia. A questão é mais sofisticada. Ela diz respeito à corrosão de certos valores liberais que nos acostumamos a ver andando junto com as democracias e que historicamente foram defendidos pelo progressismo democrático. A liberdade de expressão era um deles. Outro era a recusa dos rituais de “purificação” da cultura. Coisas como a imensa fogueira com livros do Asterix e da Pocahontas, no Canadá, de que tivemos notícia por estes dias. O tema é interessante por muitas razões. Nos acostumamos, nos últimos anos, a associar o iliberalismo à “nova direita”, ligada a tipos como Trump e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban. Eram eles que andavam “corroendo a democracia por dentro”. Impondo “valores cristãos”, combatendo a “sexualização das crianças”, exalando um nacionalismo cafona, desafiando ritos institucionais e regras eleitorais. O conceito do iliberalismo apareceu em grande estilo nos anos 90. Fareed Zakaria sintetizou o tema em um artigo na Revista Foreig Affairs, em 1997, dizendo que “a democracia está florescendo, o liberalismo constitucional não”. Estaríamos diante de um divórcio: faz-se eleições, há partidos funcionando, mas um pouco abaixo da superfície vai se relativizando pilares essenciais das democracias liberais modernas: os freios e contrapesos, as garantias constitucionais, liberdade de pensamento, de reunião e de propriedade. Vale aqui uma distinção. A democracia diz respeito basicamente ao “quem governa” e às relações de poder na sociedade. A estrutura política, partidos e a alternância dos governos. O liberalismo supõe um programa muito mais amplo. Tem a ver com a limitação do poder, indo mesmo muito além das garantias constitucionais. Ele supõe uma agenda não escrita de valores envolvendo o respeito à pluralidade de visões de mundo, a tolerância cultural e uma interferência apenas muito moderada do Estado na liberdade das pessoas, inclusive no terreno econômico. É precisamente nestas regras não escritas, da “civilidade liberal”, na boa definição que li, que estaria o calcanhar de Aquiles do iliberalismo progressista. Seus pecados são conhecidos. Aceita-se prender um jornalista “do outro lado”, sem perguntar muito o porquê; topa-se queimar livros e vetar trabalhos acadêmicos “incorretos”, banir divergentes da internet, desmonetizar canais que não dizem a “verdade”, trocar o nome de escolas e derrubar monumentos de quem não atende aos (atuais) padrões morais. A lista é longa; promover “cancelamentos”, humilhando pessoas e destruindo carreiras de quem se discorda, impor padrões de fala, coibindo o uso de palavras, segundo uma lista sempre em expansão, exigir reservas de mercado para certos grupos, alegar um direito vago a não sofrer “micro agressões” em universidade e ambientes de trabalho. Há quem diga que tudo isto é positivo e anuncia uma nova sociedade livre de preconceitos que o excesso de liberdade só tende a favorecer. Cada um pode julgar. Há muito adquiri o gosto por explicitar um problema e deixar que as pessoas cheguem a suas próprias conclusões. Vinte e tantos anos depois de seu texto original, Fareed Zakaria reconheceria os males desta nova cultura iliberal, em uma carta pública assinada com intelectuais do porte de Cornell West e Anne Applebaum, dizendo que “o preço que estamos pagando é a aversão à tomada de risco de artistas, escritores e jornalistas, que temem destoar do consenso. E que o melhor jeito de derrotar as más ideias “é argumentar e persuadir, ao invés de silenciar os outros”. Há quem argumente que o recuo iliberal do progressismo atual surgiu exatamente como reação à onda conservadora que tem marcado as democracias. Michael Powell escreveu um longo artigo no The New York Times mostrando como mesmo a icônica American Civil Liberties Union, que defendeu desde o direito à expressão dos comunistas, na era do Macarthismo, até a Ku Klux Klan, nos últimos tempos recuou. O divisor de águas foi a eleição de Donald Trump e a ascensão da “nova direita”. Seus relatórios “falam na resistência ao Trumpismo”, diz Powell, e não da Primeira Emenda e dos valores liberais que sempre defendeu. Há muitos problemas aí. O primeiro deles é combater a “ameaça reacionária” com métodos que igualmente remetem ao reacionarismo. Acusa-se o “outro lado” de usar o Estado para impor determinado padrão ideológico, não raro referido à religião, mas topa-se usar este mesmo Estado para calar inimigos e impor sua própria visão de mundo. O traço mais característico do novo iliberalismo é sua aversão ao pluralismo de ideias, na política e na cultura. A própria dificuldade de aceitar a legitimidade dos novos conservadores tem muito disso. Ou a tendência a reduzir a complexidade social a algumas categorias simples associadas a grupos de identidade, seja de gênero, raça ou orientação sexual. Tempos atrás participei de um debate sobre “diversidade”. Achei bacana o sentido de inclusão que todos queriam fazer avançar. Lá pelas tantas perguntei se a diversidade de ideias também estava incluída, e na hora senti o mal-estar. O que significaria “gente que pensa diferente”? “O que estaria incluído aí?”. A conversa terminou por ali mesmo. O iliberalismo é ecumênico. Ele pode vir da direita ou da esquerda. “De maneiras distintas”, lê-se em The Economist, “ambos os extremos colocam o poder à frente do processo, os fins à frente dos meios e os interesses do grupo antes da liberdade dos indivíduos”. A tônica é a instrumentalização de valores fundamentais em nome da afirmação de um mundo perfeito, que por algum acaso “nós” representamos. Uma questão de poder, de um lado, e de medo e exclusão, do outro. À direita ou à esquerda, uma boa síntese dos novos iliberalismos poderia dizer: nós somos o lado certo da história, logo não precisamos de vocês. Talvez a culpa disso tudo seja da própria cultura liberal e sua complexidade, que no fundo exige um pouco mais das pessoas. Um saudável ceticismo em relação às próprias ideias; a aceitação de que as pessoas são falíveis, e quem

A democracia aprendiz

Desde o início do governo, e mesmo antes, escutamos que nossa democracia está por um fio, que estamos muito perto do abismo, que andamos, a cada duas ou três semanas, na iminência de um “golpe”. Nos últimos tempos tivemos o golpe do General Braga Neto, que teria ameaçado o presidente do Congresso (ambos negaram); o golpe do desfile de tanques, em Brasília, que terminou no impagável fumacê. E, claro, o 7 de setembro, com direito a toneladas de anúncios de invasão do Congresso ou de um novo 64. No dia seguinte, a sensacional explicação: “o golpe fracassou”. Bom humor à parte, a democracia supõe um estado permanente de atenção. Isto vale especialmente para Bolsonaro, que nunca escondeu seu gosto pelo regime autoritário e sua quase veneração por tipos como o Coronel Brilhante Ustra. É razoável supor que se ele pudesse entrar em um túnel do tempo e se transformar no Presidente Médici, nos anos 70, ele o faria com gosto. O problema é que ele não pode. Daí seu repertório de bravatas e ameaças vazias. Não acatar determinações do Supremo, não aceitar eleições sem o voto impresso, e por aí vai. E a mais curiosa, que alguém sugeriu lembrar o velho Getúlio: “daqui só saio morto”. Na sequência da fanfarronice, os sucessivos recuos. Sendo o último o mais espetacular. A “carta à nação”, explicando seus arroubos como “calor do momento”, dois dias depois daquela fala desastrosa na Avenida Paulista. O episódio é ilustrativo. O presidente diz algo fora de propósito e é logo enquadrado pela reação das instituições. Formais e informais. A opinião pública, redes e organizações da sociedade, partidos e lideranças no Congresso. E a linha dura: os pronunciamentos dos Ministros Fux, do STF, e Luís Fernando Barroso, do TSE, seguidos pela ação moderadora do ex-Presidente Temer. Tudo isto sinaliza resiliência democrática. E não é de hoje. Nos processos de impeachment de 1992 e 2016 já foi assim. O País vem mostrando, como li tempos atrás de um teórico da “crise da democracia”, que “seu arcabouço institucional é mais robusto do que havíamos imaginado”. Isto vem do pacto democrático dos anos 80 e da Constituição. Ela nos legou um modelo disfuncional de gestão pública, mas soube fortalecer instituições de Estado, em especial do mundo jurídico, e consolidou um sistema sofisticado de freios e contrapesos. Nosso modelo de coalisões majoritários, como enfatiza o cientista político Carlos Pereira, tem se mostrado inclusivo das elites políticas, e nossa Suprema Corte vem atuando como real poder de contenção e moderação do Executivo. Um dos efeitos da consolidação democrática foi a crescente organização da sociedade civil. Eram poucos os grupos de advocacy, à época da transição. Hoje há um tecido social estruturado, potencializado pelas redes de cidadãos na internet. O País desenvolveu uma tradição de grandes manifestações de rua, em regra pacíficas, desde as manifestações de 2013. Além disso, há um fator essencial: o apoio difuso na sociedade. Pesquisa recente do Datafolha mostrou que 75% das pessoas apoiam a democracia como “melhor forma de governo”. Maior suporte desde o início da série, em 1989. É igualmente interessante observar o retrospecto histórico. Adam Przeworski observou que “nenhuma democracia ruiu em países com renda per capita superior à da Argentina em 1976, com exceção da Tailândia em 2006”. Maior a renda média, maior a chance de sobrevivência democrática, e é fácil observar como somos diferentes hoje do que eramos em 64. O argumento mais forte de Przeworski, porém, diz respeito ao processo de “auto institucionalização” das democracias. Pesquisando mais de três mil processos eleitorais, desde o final do século XVIII, ele observou como o sistema democrático se reforça a si mesmo. A cada alternância pacífica de poder, vai se consolidando o processo, e que as chances de ruína democrática, “tendem a zero a partir de seis alternâncias”. Ano que vem teremos nossa nona eleição, desde 1989. Todas pacíficas, feitas com lisura e com direito a passagem de faixa, como manda o figurino. Se Bolsonaro perder e não quiser passar a faixa, como um dia insinuou, apenas repetirá o que fez o ex-Presidente Figueiredo. Sairá pela porta dos fundos. O fato é que fomos internalizando os procedimentos da democracia. Já sabemos como fazer. A cada novo ciclo, com suas dores e dramas, nos tornamos mais reativos a qualquer cheiro de virada de mesa. Há outro aspecto a considerar. Jogar “fora das quatro linhas” demandaria o ingresso dos militares em um tipo de aventura autoritária inteiramente estranha ao que as Forças Armadas vêm construindo. “Os militares não darão apoio a qualquer desvio constitucional”, diz Raul Jungmann, ex-Ministro da Defesa. Ele faz uma distinção entre os militares mais antigos, hoje na reserva, talhados na cultura da guerra fria, e os militares hoje no comando. Esta nova geração concebe a atividade militar como essencialmente profissional. “A cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores”, diz Jungmann, “pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia”. É evidente que há riscos. O mundo digital incentiva a radicalização, a guerra cultural envenenou o debate e há os novos populismos eletrônicos. Nossas democracias podem preservar a competitividade eleitoral e ao mesmo tempo andar ladeira abaixo em sua vida institucional. Sintoma disso, no Brasil, foi o uso generalizado, nos últimos tempos, da Lei de Segurança Nacional. A primeira lição a tirar disso é estar em alerta. Outra é a isenção: a democracia demanda um olhar dirigido a todos os lados do jogo. De nada vale o olhar seletivo. São inaceitáveis as falas do Presidente, relativizando o respeito a regras do jogo, assim como a censura prévia e as restrições indevidas à liberdade de expressão. Por fim, é preciso senso de proporção: não confundir, à direita ou à esquerda, a divergência quanto a políticas públicas com identificação de riscos à democracia. O tema da democracia não deve ser instrumentalizado como arma da guerra política. Seu debate não deve se tornar, ele mesmo, fonte permanente de toxina ideológica obstruindo o debate sereno dos problemas do País. A defesa da democracia supõe fidelidade a princípios,

O que vamos aprender disso tudo?

Lucas tem 17 anos e foi trabalhar, leio em uma reportagem. Cursava o último ano do fundamental e largou. Foi no ano passado, em meio à pandemia. A internet em casa não era das melhores para fazer as tarefas da escola e a situação econômica apertou. Quem sabe um dia volta em algum supletivo. Lucas não é exceção. A evasão escolar sempre foi alta, no Brasil. Um estudo do INEP mostrou que (entre 2010 e 2016) apenas 49,3% dos alunos e 61,3% das alunas do sexto ano do fundamental concluiram, no tempo certo, o ensino médio. A pandemia irá piorar isto e ampliar ainda mais o gap de gênero. A Unicef mostrou que o Brasil é um dos cinco países que mais permaneceu com escolas fechadas. Foram 191 dias entre março de 2020 e fevereiro de 2021, contra 52 dias na média europeia. São evidentes os danos que isto irá gerar. A “geração covid” terá um deficit de aprendizagem. Terá desvantagem quando for disputar espaços, no mercado. O Banco Mundial diz que o percentual de estudantes sem o conhecimento mínimo para ler adequadamente um texto irá de 55% para 77%, se as escolas fecharem por 13 meses. Exagero? Não creio. Há muitas questões aí. A primeira e mais inconveniente é sobre a real utilidade das medidas de fechamento. Estudo da Universidade de Zurique não mostrou alteração do ritmo da pandemia em 131 municípios paulistas que reabriram as escolas. Guilherme Lichand, coordenador da pesquisa, sugere que “é difícil para a população de menor renda ficar em casa”, e que “o ganho marginal de fechar escolas não supera o alto custo de deixar as crianças sem aulas” Há muitos estudos nesta direção. O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças apresentou uma ampla revisão de dados, concluindo que as escolas devem fechar apenas em última instância e que “o impacto negativo sobre a saúde física, mental e educacional das crianças, e o impacto econômico na sociedade, provavelmente superaria os benefícios”. O tema é difícil e é compreensível o receio dos professores. A reabertura, de todo modo, precisa ser feita com prudência, e a vacinação de professores deveria ser prioritária. Outro resultado da crise será o aumento da desigualdade. O estudo do Banco Mundial diz que irá a quase três anos letivos a diferença de aprendizagem entre os alunos de menor e maior renda. No Brasil, essa cisão equivale basicamente aos alunos que frequentam as redes públicas e privadas de ensino. Surge aí a pergunta: o que houve com o setor público? O argumento mais cruel que escuto por aí sugere que o problema são os próprios alunos. Dado que boa parte não possui um computador e boa internet, não haveria muito o que fazer. É um argumento confortável, que toma um dado óbvio da realidade brasileira e o transforma numa bela desculpa para nossa inércia. É evidente que a condição econômica pesa, e é exatamente para isto que existe o Estado. Para dar conta dessas carências e garantir o acesso ao ensino. Se não souber fazer isto, é preciso reconhecer e mudar a nossa maneira de gerir a educação. Daria para fazer diferente? O Peru, logo no início da pandemia, fez uma compra maciça de equipamentos para os alunos vulneráveis. No Brasil isto custaria R$ 3,9 bilhões, segundo dado do IPEA, percentual ínfimo do que foi gasto com a pandemia. Não fizemos, não nos antecipamos, não compramos, e agora não passa de desculpa fácil dizer que o problema é a condição social dos alunos. O que falta ao sistema é agilidade e senso de urgência. Na tomada de decisão, na compra de equipamentos, no treinamento dos professores para adaptação ao ensino remoto, para oferecer aulas híbridas, com uma parte dos alunos em casa, outra na escola. Tudo que o setor privado fez não por generosidade, mas pelo risco dos pais irem bater na porta da escola concorrente. A conta, como de hábito, será paga pelos alunos e famílias que não têm outra porta para bater, que dependem do monopólio do Estado, e sequer têm poder para fazer pressão no sistema político. Meu colega Naercio Menezes sugeriu uma medida audaciosa: colocar os alunos para cursarem dois anos em um. Dobrar o uso das escolas, se for preciso, de modo a recuperar o máximo do prejuízo educacional. “Acho possível fazer”, diz ele, “mas conhecendo o Brasil, acho difícil que aconteça”. Também acho. Mas se ao menos pudermos aprender um pouco com este strip-tease feito pelo nosso sistema educacional, já será alguma coisa Fernando Schuler é Cientista Político e Professor do Insper Publicado originalmente na Folha de São Paulo