A lei de segurança nacional voltou a ser pop. Foram 77 processos em 2019 e 2020, contra 44 nos quatro anos anteriores. Ela vem chancelada pelo Supremo, que ao utilizá-la dá a senha de que a vê como compatível com a Constituição. Mas é a reação das pessoas ao seu uso que revela muito sobre o que nos tornamos.
A lei vem sendo usada por diferentes lados do mundo político. Pelo executivo, pelo Supremo e mesmo pelo Congresso. Deste último foi, aliás, seu uso mais patético (se é possível classificar isto), naquela tentativa de enquadrar o perigoso humorista Danilo Gentili por um tuite “convocando” o povo brasileiro para “socar os deputados”.
A Câmara caracterizou o tuite como “grave ameaça ao livre exercício do Congresso Nacional”. Aparentemente estavam errados, visto que ninguém atendeu à convocação de nosso humorista revolucionário. Mas enfim, pela lógica da máxima birutice nacional (ou quem sabe de um país que perdeu o senso de humor), ele deveria ser preso, não?
O executivo também entrou de cabeça. A Lei passou a ser usada como um forma de intimidação. Um caso curioso foi o do advogado Marcelo Feller, acusado de “expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do Presidente”, nos termos da LSN, por ter chamado Bolsonaro de genocida, na TV.
Lendo a papelada do processo, impressiona, à parte o gesto autoritário, a incrível perda de tempo (e dinheiro do contribuinte). Dias depois, o caso foi encerrado pela juíza Pollyanna Maciel, que não identificou crime nenhum ali e disse algo essencial para este debate: que a lei só deve servir para “casos extremos”, que tenham possam “verdadeiramente atingir” a segurança do Estado. E deu por resolvida a questão.
Se estes casos envolvendo os críticos do Presidente, em geral, não têm prosperado, o mesmo não se dá nos que atingem o outro lado do jogo. Os casos são conhecidos. Derivam, em geral, dos inquéritos das Fake News e dos “atos antidemocráticos”, conduzidos pelo Supremo.
São inúmeros casos. Um deles envolveu um jovem negro de Salvador, o “mito show”, dançarino popularesco que costumava animar as passeatas bolsonaristas com uma coreografia típica do carnaval baiano. Um dia resolveu ir para Brasília, com uma mão na frente e outra atrás, e berrar contra o Supremo. Foi em cana, e até hoje tenta se virar por aí com uma tornozelera eletrônica.
Caso mais notório é o de Oswaldo Eustáquio, preso por meses. Em geral, ele é apresentado como “blogueiro bolsonarista” e isto parece resolver a questão. É óbvio que não resolve. Recentemente, a Polícia Federal disse num relatório não ter encontrado elementos contra os acusados no inquérito em que foi arrolado.
Ler sobre estes casos todos nos dá o retrato de um País doente e intolerante. São basicamente delitos de opinião, frutos da raiva política. Xingamentos, ameaças, discursos de ódio e palavrões. É isto. Nos tornamos uma espécie de democracia do palavrão.
O que mais chama a atenção é a seletividade das pessoas sobre o tema. É como se houvesse palavrões “autorizados”, e mesmo virtuosos, e palavrões marginais. Quem tem a hegemonia cultural define estas coisas. O mesmo vale para o uso da LSN. Com honrosas exceções, quando ela é usada do lado A do espectro político, o lado B vibra. E vice-versa.
O fato é que o debate em torno do tema diz muito sobre a fragilidade de nossa cultura democrática, à direita e à esquerda. O uso de uma lei do arbítrio como ferramenta de guerra política, nos tempos atuais, é apenas um sintoma. E talvez a triste conclusão, no fim deste debate todo, é que as pessoas no fundo gostam de um instrumento como a LSN, desde que sempre usada para o lado “certo”.
De minha parte, faria o que sugeriu a pesquisadora Clarissa Gross, da FGV, dizendo que não cabe ao Estado punir o simples uso da palavra, mesmo se uma ameaça. “Ela tem que ser crível”. Nas agressões ao STF, demandaria “indícios de que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas” impedindo o trabalho da Corte. Respeitado este critério, a maioria dos atuais usos da Lei cairiam no vácuo.
A solução óbvia seria a aprovação no Congresso de uma nova lei, adaptada aos tempos democráticos. O ponto é que não existe o mínimo consenso no País sobre o tema. O mais provável é que o Supremo decida a parada, a curto prazo, e ficam as perguntas: a lei será clara? vai valer pra todo mundo? teremos um Estado que trate a todos com igualdade?
Estamos muito longe do consenso mínimo que Países como os Estados Unidos construíram em torno da Primeira Emenda, ou como a Alemanha, em torno da nova legislação combatendo o discurso de ódio na internet (NetzDG).
Enquanto isto não ocorre, vamos nos arrastando (para o deleite do general Figueiredo, onde estiver), com a velha e rasgada Lei de Segurança Nacional.
Fernando L Schüler é cientista político e professor do Insper
(Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo)