Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

E se Bloomberg fosse brasileiro?

No final do ano passado, Michael Bloomberg anunciou a doação de US$ 1,8 bilhão para a Universidade Johns Hopkins. Bloomberg se formou lá, em 1964, e de alguma forma queria retribuir. O dinheiro vai para um fundo financeiro, um endowment. Vai financiar bolsas para alunos de menor renda, do mundo inteiro, que queiram ter a mesma oportunidade que ele teve, um dia.

Observem bem. O dinheiro vai para um fundo financeiro, boa parte lastreado em ações. A universidade é privada, sem fins lucrativos. É ela mesma uma grande organização social. E um enorme caso de naming rights, em homenagem ao empreendedor Johns Hopkins, que no final do século 19 doou US$ 7 milhões para criar a instituição.

Caso Bloomberg fosse brasileiro e quisesse fazer sua doação para uma de nossas universidades federais, possivelmente não conseguiria. Enfrentaria uma discussão bizantina sobre criar um “fundo financeiro”, dar seu nome a alguma coisa, sobre suas “reais intenções” em doar a dinheirama toda e, por fim, sobre o risco de que tudo não passe de uma forma disfarçada de “privatização” da universidade.

Sobre naming rights, tive uma aula interessante, semanas atrás, visitando o novíssimo African American Museum, em Washington. O teatro do museu chama-se Oprah Winfrey; o centro de memória, Robert Frederick Smith; o centro de imagem, Earl W. And Amanda Stafford. Museu público não estatal, acervo e gestão impecáveis e entrada franca. E aparentemente nenhuma discussão bizantina em torno do nome dado a alguns espaços a partir de generosas doações.

No Brasil, criamos um modelo de gestão de universidades e museus dependente do Estado. Nossas universidades são enormes autarquias manietadas pela malha burocrática brasileira, feita de rigidez orçamentária, de pessoal, lei de licitações e quase ausência de fontes próprias de receita.

Quando museus pegam fogo, banheiros não funcionam e a verba das universidades é cortada, nos dedicamos ao velho jogo de empurrar responsabilidades, cobrar que o outro lado é culpado, que o partido A ou B é que está no governo, na reitoria, seja o que for. O fato é que nos acostumamos.

O Ministério da Educação acaba de apresentar o programa Future-se. O programa ainda é bastante vago, mas aponta na direção correta. Ele propõe, no fundo, que se complemente o modelo estatal brasileiro com mecanismos de filantropia, fundos financeiros e rentabilização de patrimônio típicos do mundo universitário anglo-saxônico.

Nada, diga-se de passagem, que o Brasil já não faça, em escala reduzida. É o caso, por exemplo, do uso das organizações sociais. Elas têm funcionado bastante bem na gestão do Impa, de hospitais públicos e de algumas de nossas melhores instituições culturais, como a Osesp e o Museu do Amanhã. A pergunta óbvia é: por que elas não serviriam como apoio à gestão nas universidades?

O mesmo vale para os fundos de endowment. Um ex-ministro da Educação atacou a ideia sob o argumento de que ações, no mercado, “podem subir ou cair”, e que não se poderia submeter a educação a esse risco. Perfeita lógica sem nenhuma lógica. Milhares de universidades, mundo afora, usam fundos lastreados em ações para seu custeio. A começar pela mais renomada de todas, a Universidade Harvard, que formou uma multiplicidade de fundos que hoje somam US$ 39 bilhões.

Não precisamos ir tão longe. O Brasil tem exemplos altamente meritórios, como o fundo criado pelos ex-alunos do ITA em 2014, o Fundo Amigos da Poli, ligado à Escola Politécnica da USP, e o Fundo Centenário, criado pelos formados na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eles têm algo muito simples em comum: são feitos por gente que decidiu tomar a iniciativa. Por que isso não poderia ser feito nas demais universidades, de maneira coordenada, com apoio federal e tudo mais?

Penso que, no fundo, todos sabemos disso. O ponto é que andamos em um ambiente carregado de toxina ideológica, que não vem apenas do governo ou da oposição, mas é algo entranhado em nosso mundo político. Oxalá a lógica da polarização política não destrua, no nascimento, uma pauta que no fundo vai muito além deste ou de qualquer governo.

 (publicado originalmente na Folha de São Paulo, 01/08/19)

Publicações relacionadas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações recentes

Categorias

Publicações populares

Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

Siga-me nas redes sociais