Crise econômica sem precedentes. Um governo com baixa popularidade e sérias pendências na Justiça Eleitoral. Pessoas engalfinhando-se nas redes sociais pelos mais variados motivos. Políticos e empresários do primeiro escalão a engrossar as estatísticas do sistema carcerário.
Motivos não faltam para enxergar o caos no Brasil de 2017. E é justamente em cenários assim, de posições extremadas, que o papel do intelectual e do analista político se torna ainda mais necessário.
É o que afirma o cientista político, professor e doutor em filosofia Fernando Schuler, novo colaborador do LIVRE. Segundo ele, em tempos de “pós-verdade”, fatores como racionalidade, bom senso e estatísticas confiáveis nunca foram tão necessários.
“Uma das primeiras tarefas do analista político é separar a sensação de caos do caos verdadeiro. Nós temos a impressão, por exemplo, de que a violência está aumentando, mas os dados mostram que ela vem caindo historicamente, com oscilações”, diz.
Gaúcho, ex-secretário de Justiça e Desenvolvimento Social do governo do Rio Grande do Sul, Schuler vê em sua terra natal um exemplo claro da necessidade das polêmicas reformas propostas pelo governo de Michel Temer.
“Hoje há incerteza no cenário político em relação a uma reforma que é absolutamente vital, inclusive para a manutenção dos direitos sociais, para que o Brasil não vire um Rio de Janeiro, um Rio Grande do Sul”, afirma.
Sobre a impopularidade das medidas, especialmente em relação à Previdência, Schuler afirma que nunca esperou um contexto diferente. “Nunca se fez reforma da previdência com amplo consenso e sem uma boa dose de conflito social”.
O país entra em 2017 com um presidente impopular e sob risco de cassação em meio à discussão de reformas polêmicas e crise econômica. É possível enxergar alguma luz no horizonte?
O Brasil vive uma situação paradoxal. Temos boas e más notícias. Existem dois processos andando, paralelamente. Por um lado, uma agenda econômica de reformas sendo conduzida com grande dificuldade, que é basicamente o ajuste fiscal que o governo vem fazendo, a PEC que limita o gasto público, a reforma da Previdência, a reforma trabalhista e a liberação das terceirizações. São reformas importantes para a modernização da economia, que vão permitir mais agilidade e dinamismo para a gestão empresarial e beneficiar as pequenas empresas. A longo prazo, isso trará maior sustentabilidade fiscal, permitindo que o governo cumpra as suas obrigações sociais e faça investimentos. Estamos assistindo a uma ampliação do modelo de parcerias público privadas, como esse recente leilão de quatro aeroportos, mostrando que o Brasil recuperou um certo padrão de credibilidade internacional. O leilão apresentou um ágio muito significativo. O aeroporto de Porto Alegre chegou a 800% de sobrevalorização. Existem notícias positivas, ou seja: o governo vem acertando na área econômica.
E o que seriam as más notícias, na sua opinião?
O grande teste vem agora, com a reforma da Previdência. O governo foi bem-sucedido na PEC do controle de gastos públicos, mas precisa mostrar força agora na Previdência, pois o desafio é muito maior. São necessários 308 votos. É um tema delicado e que mexe com expectativas de milhões de pessoas. Os deputados sofrem pressão nas bases e as eleições são no ano que vem. E o governo vem recuando. Primeiro, em relação aos militares. Depois, as polícias militares e os bombeiros. Agora, os servidores estaduais e municipais. A pergunta que se faz hoje é: até onde o governo vai recuar? Existem vários pontos de dúvida: vai recuar sobre a igualdade entre homens e mulheres? Vai recuar no tema da assistência social? Vai recuar na idade mínima de 65 anos e flexibilizar as regras de transição? São perguntas no ar. Hoje diria que é muito difícil aprovar a reforma. O resultado da votação da lei de terceirizações mostrou que o governo tem uma certa dificuldade. Como não era uma Emenda Constitucional, mas uma lei ordinária, o governo conseguiu 231 votos, o que é muito distante dos 308 necessários para uma PEC. Há incerteza no cenário político em relação a uma reforma que é vital para a manutenção dos direitos sociais, a longo prazo. No fundo, estamos decidindo hoje se vamos assegurar para as próximas gerações os direitos inscritos na Constituição.
Já houve manifestações significativas nas ruas e, em especial, nas redes sociais, com duras críticas às reformas propostas. Como o governo está se saindo na chamada batalha da comunicação?
Ninguém imaginava que fosse possível aprovar uma reforma da Previdência com amplo apoio social. As pessoas não pensam com esse nível de racionalidade. Nenhum país do mundo fez reformas desse tipo com amplo consenso e sem uma boa dose de conflito social. E aí tem um lado positivo do governo Temer: talvez fosse necessário um governo impopular para fazer as reformas. Um governo preocupado com popularidade, às vésperas da eleição, jamais faria isso. O presidente Temer não tem expectativas eleitorais. Sabe que é um presidente impopular. A missão dele é com a história.
E como avalia o desempenho do presidente nesta tarefa?
Temer pensa no legado. É um homem de certa idade, faz um governo de transição que nasce de um impeachment, mas pode deixar um legado ao país, ao ajustar a economia e recuperar a credibilidade externa. A taxa de risco do país vem caindo e chegou ao nível pré-crise. A Petrobras recuperou uma parte do seu prestígio internacional, as ações recuperaram boa parte do valor, e o governo vem desempenhando bem o seu papel. O ponto é que o governo não tem como ganhar a guerra da comunicação. Não pode alimentar essa expectativa, pois não há como ganhar. O que o governo pode fazer é o que os cientistas políticos chamam de controle de dano, ou seja, não deixar que a oposição conquiste as ruas. Isso o governo vem conseguindo fazer, pois as manifestações contrárias à reforma da previdência ainda são basicamente restritas à militância sindical e partidária, setores do funcionalismo público e redes sociais. Mas não ganhou um contorno popular. Não há manifestações de massa. Enquanto isso não acontece, o governo vem lidando bem com o problema.
Mas, para além das questões políticas e sindicais, não existe uma preocupação legítima das pessoas com o seu futuro?
É preciso definir políticas públicas a partir de critérios objetivos. O Brasil hoje gasta 13% do PIB com a previdência, praticamente três vezes mais o que gasta um país com o mesmo perfil demográfico. O Brasil tem um gasto previdenciário semelhante ao de países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 34 países europeus com elevado padrão de desenvolvimento], que tem um processo bem mais acelerado de envelhecimento da população. O Brasil é um país jovem que gasta como um país velho. Então, existe um grave problema de desequilíbrio nas contas públicas. E por que isso? Porque o Brasil não tem idade mínima, e, com isso, tem uma Previdência cujo déficit, só neste ano, será de R$ 180 bilhões. Existe um problema estrutural e não adianta criar teorias fantasiosas, como se houvesse uma solução mágica. Não existe. O segundo dado importante é a sobrevida a partir da idade aproximada da aposentadoria. A sobrevida do Brasil após 60 anos é de 22 anos, em média. Esta taxa de sobrevida é praticamente igual à dos países da OCDE. Há outro dado: a maior parte dos países latino-americanos já estabeleceu uma idade mínima para a previdência. Na Argentina e no Chile, para homens, é 65 anos. Por que o Brasil insiste em ficar para trás?
Mas a análise de muitos críticos da reforma está amparada na expectativa de vida ao nascer, que ainda está muito abaixo do padrão europeu…
Que é um dado falso. Quando você faz análise de previdência, não adianta considerar expectativa de vida ao nascer, porque este dado leva em conta a mortalidade infantil, a mortalidade de jovens homens, a taxa de violência. Não podemos reduzir a idade mínima na previdência porque existe mortalidade infantil. Pelo contrário, nós precisamos fazer a reforma da previdência para que tenhamos mais recursos para investir no que importa e reduzir a mortalidade infantil, diminuir as taxas de violência, educar melhor as crianças e jovens. Esse é o raciocínio correto: o Brasil tem uma taxa de sobrevida alta e está em rápido processo de envelhecimento. Gastamos muito em previdência e precisamos da reforma. É obvio que todo esse raciocínio é complexo. Mas acho que aí entra o debate público, o papel da imprensa, das universidades. Esse debate terá que ser feito. Mato Grosso ainda é um Estado relativamente jovem. No Rio Grande do Sul, que tem uma curva demográfica mais acentuada, a situação é muito mais grave.
Em tempos de Fla-Flu político dentro e fora das redes sociais, qual é o papel do intelectual que se dispõe a analisar os fenômenos políticos? Qual o desafio?
Primeiro é agir, formatar hipóteses e analisar a sociedade e a economia com bom senso e com base em dados. A internet é um grande mar de impressões e palpites. Vivemos a era da pós-verdade. Um universo de preconceitos, distorções e meias-verdades. E pior: um problema sem solução. Há 20 ou 30 anos, havia duas ou três mil pessoas que se expressavam na vida pública brasileira, nos jornais, colunas de opinião. Hoje são milhões de pessoas. Gosto de brincar dizendo que somos um país com milhões de economistas e cientistas políticos palpitando 24 horas por dia. Isso é bom para a democracia? Em parte sim, pela maior participação. Por outro lado não, ao amplificar a influência dos grupos de pressão e de criar uma sensação permanente de instabilidade e caos. Vivemos a época do “breaking news”, da notícia bombástica. Achamos que a corrupção aumenta, que a violência aumenta, que os políticos são piores do que no passado. Isto será verdade? Por certo, não. Apenas estamos sendo bombardeados por mais informação, e a informação negativa tende a ser mais sedutora que a positiva.
Há muitos movimentos pregando a ideia de uma nova política, desvinculada das instâncias tradicionais de representação. Onde este caminho nos leva?
É certo que precisamos de uma reforma política. Nosso modelo de voto em lista aberta se esgotou. As campanhas são muito caras e quase ninguém se lembra em quem votou para deputado nas últimas eleições. Mas qual o caminho? De minha parte, não tenho muitas dúvidas: é o voto distrital. É o modelo adotado em grandes democracias, como Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. Alemanha tem um modelo misto, mais complexo. Precisamos considerar o seguinte: temos 25 partidos funcionando hoje no Congresso Nacional. A quem exatamente eles representam? O financiamento público e nosso sistema eleitoral criou uma “indústria” de formação de partidos políticos. Não temos cláusula de barreira e as coligações partidárias são liberadas. Então é preciso mudar. A tese hoje em curso no Congresso, de mudança para o voto em lista fechada, não resolve o problema. É preciso deixar este debate para o próximo período. Fazer como fez a Nova Zelândia, através de uma ampla consulta popular. Foi a sugestão dada, aliás, pela presidente do Supremo, ministra Carmem Lúcia. Fazer uma consulta plebiscitária, com um bom tempo para o debate público. O Brasil fez isto em 1993, quando decidiu pelo regime presidencialista. O ponto é que precisamos de uma reforma que reaproxime o sistema político da sociedade. O eleito do eleitor. Que reduza o número de partidos políticos e facilite a geração de consensos. Uma democracia com mais governabilidade e capacidade de refletir o que se passa na sociedade.