O projeto Escola se Partido é um tema difícil de tratar. Ele produz um debate necessário e toca em um problema real, ainda que não necessariamente ofereça a melhor solução para este problema.
Meu ponto não é discutir o projeto, mas o tipo de debate que se criou ao seu redor. Acho curioso, em particular, um certo efeito avestruz que parece ter tomado conta de boa parte de nossa elite intelectual. A turma que simplesmente nega o fato óbvio de que existe um problema de doutrinação ideológica em nossas escolas.
Há várias estratégias nesta direção. Alguns dizem que até pode existir algum viés político em nosso ensino, mas que é difícil medir seu tamanho. Faltaria algo como um “doutrinômetro”, um método ou instrumento para medir quantas horas/aula de doutrinação os estudantes receberiam, ano a ano, país afora.
Outros apelam a argumentos com algum efeito retórico: se há doutrinação, como é possível que Bolsonaro tenha ganhado as eleições? Por esta lógica, deveria haver doutrinação quando Lula ganhava, com folga. Isto não quer dizer nada. É puro jogo de palavras sugerir alguma relação direta entre resultados eleitorais (por definição afetados por múltiplas circunstâncias) e o que se passa nas aulas de humanidades em nossas escolas.
Há ainda os que apelam ao argumento da irrelevância: temos mais o que fazer do que pensar em livros didáticos ou no que dizem os professores nas salas de aula. A reforma da Previdência, por exemplo, ou quem sabe o desmatamento da Amazônia. E por aí vai.
De minha parte, digo o seguinte: fiz uma pesquisa sobre o tema. Avaliei os livros de história e sociologia mais usados em nosso ensino médio. Observei o uso dos conceitos, a seleção factual, as fontes de informação e as indicações de livros e filmes. O viés ideológico é claro e brutal.
Exemplo rápido: FHC é um desastroso neoliberal (“apesar de tentar negar”), que vendeu nosso patrimônio em meio a “denúncias e escândalos por todos os lados”, e Lula, o primeiro presidente “que não é da elite”. Seu governo foi acusado de um certo “mensalão” amplamente explorado pela “imprensa liberal”.
É só um aperitivo. Está tudo lá. O problema é real. Parte de nossa elite intelectual não se importa com isso simplesmente porque concorda com o viés político. Inclui-se aí boa parte da academia. Outro tanto não concorda muito, mas não quer se incomodar. Gente que descobriu o óbvio: o melhor jeito de escapar da patrulha ideológica é concordar com ela, ou ao menos fazer de conta.
Falácia bastante comum no debate sobre a doutrinação, na educação, é sustentar que a discussão se dá entre os que defendem a censura e os que defendem a liberdade de pensamento para os professores e alunos em sala de aula.
Sejamos claros: o professor, em sala de aula, não detém nada parecido com uma liberdade absoluta para expressar suas posições políticas e visões de mundo. Ele não é livre, por exemplo, para dizer aos alunos em quem eles devem votar nas eleições.
Foi este o sentido dado por Kant, no final do século 18, quando estabeleceu a distinção entre o que chamou de uso privado e uso público da razão. Qualquer um de nós, na condição de um cidadão, é perfeitamente livre para expressar suas convicções sobre a vida e o mundo da política.
O mesmo não é verdade quando fazemos um uso privado da razão, isto é, quando cumprimos um determinado papel social. O âncora de um programa jornalístico, por exemplo. Ele simpatiza com esta ou aquela posição política, não há problema, mas no exercício de sua função profissional trata a informação com isenção e apego aos fatos.
O mesmo ocorre com o professor. Sua função é promover o aprendizado e criar o melhor ambiente possível para o crescimento intelectual dos alunos.
Seu papel não é convencer os alunos sobre esta ou aquela doutrina ou posição política, religiosa ou cultural. Para usar a expressão de Max Weber em “A Ciência como Vocação”, ele não deve agir como “profeta ou demagogo”, usando de sua posição de poder e sua audiência cativa para fazer a cabeça dos alunos.
Isto é particularmente relevante para o ensino médio e fundamental, quando se está lidando com crianças e adolescentes no início de seu processo de formação intelectual.
Dito isto, não é claro que o projeto Escola sem Partido ofereça a solução mais adequada para o problema da doutrinação, em nossas escolas.
Confesso não gostar da ideia de incentivar que alunos denunciem seus professoresa órgãos de Estado. Considero bizarra a imagem de alunos gravando professores para posterior acusações públicas ou coisas do tipo.
Isto sem prejuízo de que as direções de escolas, secretarias e mesmo o Ministério Público façam o seu trabalho, quando abusos de qualquer ordem forem cometidos.
Que se coloque um cartaz nas salas de aula, contendo princípios consagrados na Constituição e nos documentos que regem nossa educação? Não vejo problema, mas desconfio que não irá adiantar muita coisa.
Seja qual for a solução a ser dada ao tema da doutrinação ideológica em nossas escolas, ela começa com o reconhecimento simples de que o problema existe e deve ser discutido com franqueza.
Dias atrás li um artigo sustentando que ideologização do ensino não tem nada a ver com a qualidade da educação oferecida a nossos alunos. Tem sim. Doutrinar, seja para que lado for, significa desprezar a lógica mais elementar do pensamento científico.
Significa abrir mão do cultivo de competências analíticas fundamentais à vida profissional e à vida do cidadão, que envolvem apego ao dado empírico, distanciamento crítico e recusa do viés de confirmação.
Não se trata apenas de induzir os alunos a apoiarem este ou aquele partido ou ideologia. Isto é ruim para a democracia, mas não é o maior problema.
A questão central é recusarmos um tipo de educação que forma torcedores, em vez de pessoas capazes de pensar com racionalidade, isenção e método. E que possam, a partir daí, defender com propriedade as ideias que julgarem mais apropriadas, em qualquer terreno.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
3 respostas
Melhor artigo que li sobre esse assunto. Expõem verdades corajosamente. Problema extenso e de complexa solução. Passa por: revisão geral dos livros texto do MEC e currículo unificado; reciclagem dos professores; controle dos pais etc. Porém acredito que a exposição pública dos casos mais extremado tem um ótimo efeito demonstração para a mudança geral de comportamento.
Professor Fernando;
Que belo artigo… muito esclarecedor e uma fonte de pesquisa.
Permita-se, solicitar uma alteração… ao que tudo indica, no primeiro paragrafo, acredito por erro de digitação, faltou a letra “m” no termo “Escola sem partido”. Está grafado “O projeto Escola se Partido” .
No mais meus parabéns! Te acompanho pelas rede sociais e pela TV… E sou um grande admirador do seu trabalho.
Abraços
Fernando Jorge
Excelente texto. Me provovou uma reflexão bem bacana. Sou professor de História e tenho me posicionado de modo frontal contra o ESP. Mas entendo bem que o viés apontado no artigo se manifesta sim em algumas coleções didáticas, sobretudo qdo lidamos com a História do Tempo Presente. Talvez uma abordagem pela via da narrativa e dos diferentes interesses em disputa no processo histórico seja mais adequada. De todo modo, creio que a mobilização de critérios científicos e a promoção de debates a partir de distintos referenciais teóricos sejam o melhor caminho para formação de um cidadão intelectualmente autônomo.