Lembro da entrevisa de um jovem professor de história, à época do finado debate sobre a reforma da previdência. Ele parecia um cara articulado, 28 anos, “de esquerda”. Dizia que seu sonho era se aposentar aos 53 e abrir um clube de poesia, mas que tudo se perderia com a reforma. Se ela sair, teria que repensar as coisas.
Quando li aquilo fiquei pensando: “O que há com esse cara? Podia pensar em ser empreendedor, não é mesmo? Abrir uma editora, um ‘TED poesia’, uma ‘casa do saber’, sei lá. Vai lá no Sebrae, pesquisa, pede alguns conselhos. O sujeito é jovem, sem uma ruga no rosto, joelhos em dia. Compra um livro de autoajuda”. Daqui a 25 anos não sei nem se ainda vão existir livros de papel ou computadores pessoais. E o sujeito preocupado em se aposentar pelo INSS?
O Brasil velho é assim. Feito de 76% de jovens com até 24 anos e preocupados em se aposentar ainda cinquentões. Isso num país que gasta 12% do PIB com Previdência, quase três vezes a média do que gastam países com mesmo perfil demográfico. Não acho que as pessoas estejam preocupadas com números ou com a “sustentabilidade fiscal”. Estamos simplesmente imersos em uma cultura política que desconfia do “mercado”, foge do risco e das escolhas difíceis. País de cultura paternalista, da qual a “esquerda” é sem dúvida a vanguarda, mas está longe de andar sozinha.
O Brasil velho gosta de coisas esquisitas como o imposto sindical. Criado na Constituição de 1937, a “polaca”, o tributo sustenta hoje uma enorme máquina feita de 10.817 sindicatos de trabalhadores, 5.251 sindicatos patronais, 549 federações, 43 confederações e 7 centrais sindicais. Lembranças nebulosas nos dão conta de que o sindicalismo liderado por Lula, nos anos 70, teria defendido a livre associação sindical, o princípio elementar de que as pessoas, querendo apoiar o seu sindicato, decidam pagar por isso.
O tempo tratou de apagar tudo isto. A esquerda que um dia ensaiou alguns passos de independência caiu de boca no colo quente do Estado.
O Brasil velho gosta de voto obrigatório. Dia desses fui a um debate com uma professora da Universidade de São Paulo. O debate andava meio morno e resolvi dar uma provocada. Disse que precisávamos acabar com a obrigatoriedade do voto. A senhora retrucou que não. Que isso iria apenas favorecer os “mais ricos”. Na sua visão, brasileiro pobre precisa de um empurrão do governo para votar. Se não acaba ficando em casa, no domingo, assistindo ao Faustão.
Olhei pra ela e me lembrei de Kant. O velho filósofo dizia que a gente só aprende a ser livre exercitando a própria liberdade. É como andar de bicicleta. As pessoas, independentemente da renda, vão aprendendo a exercitar seus direitos. Leva algum tempo, mas aprendem. Olhei pra ela e fiquei quieto. Mudei de assunto e continuei o debate.
O mesmo vale para o financiamento eleitoral. Sugeri, em um seminário, que os próprios indivíduos, eleitores, apoiadores, deveriam financiar, com recursos próprios, os partidos políticos. Cada um vai lá e apoia o partido de sua preferência. Meu debatedor, bom cientista político, pareceu irritado. O Brasil não tem tradição de apoio individual a coisa nenhuma, disse ele. Ninguém põe dinheiro, ninguém acredita. Não tem jeito, o Estado tem que bancar. Ato seguinte sugeriu um aumento do fundo partidário para coisa de R$ 2,5 bilhões.
Lembrei a ele que o tempo “gratuito” de TV, para os partidos, já custa R$ 500 milhões e que o fundo partidário era de pouco mais de R$ 300 milhões antes das últimas eleições. Ele olhou pra mim com cara de tio sabido e disse: “Democracia custa caro, Fernando”. O debate seguiu, e hoje estamos perto de aprovar no Congresso um fundo partidário “turbinado” de algo mais do que R$ 2 bilhões.
O ponto é que vivemos em um tempo surpreendente, neste ano confuso de 2017. Há a reforma da Previdência, há a chance real de acabar com o imposto sindical e há mesmo a chance de fazer uma minirreforma política, que devolva ao voto o sentido de um direito. Há um Brasil que tenta se livrar de velhos fantasmas do Estado Novo, da velha conversa fiada de que nossa gente é incapaz de andar com as próprias pernas. Há um país que, talvez embalado por essa crise toda, tenta andar um bocadinho à frente. Oxalá.
(publicado originalmente na Revista Voto, em junho de 2017)
Fernando Schuler é é cientista político e professor do Insper