Sempre apreciei a convivência com o Professor Jorge Castañeda, ex-Chanceler Mexicano e autor de bons livros, como Utopia Desarmada. Ontem me surpreendi com seu artigo no The New York Times sustentando a posição de que o Brasil deve permitir a candidatura de Lula à presidência da República.
Seu artigo vai na mesma linha da recente nota do comitê de direitos humanos da ONU (não confundir com o Conselho de Direitos Humanos). Ambos não dão muita bola para pormenores da vida brasileira, como a Lei da Ficha Limpa, nem se preocupam muito em especificar a quem se dirigem quando falam que “o Brasil deveria fazer” alguma coisa.
Talvez devessem se dirigir à Ministra Carmem Lúcia, visto que o assunto está com o judiciário, um poder independente, mas intuo que ambos não estejam muito preocupados com detalhes desse tipo.
Na lógica de Castañeda, não há propriamente um sistema judiciário no País, com regras, autonomia e hierarquia. Há um “debate”. Há argumentos que apontam uma perseguição do Juiz Sérgio Moro a Lula, há uma campanha internacional a seu favor, contando inclusive com uma carta do senador Bernie Sanders, e há mesmo uma reunião em que o Papa teria escutado com atenção alguns aliados do ex-Presidente.
A parte do Senador Bernie Sanders me pareceu particularmente curiosa. “Quem é essa gente”, parece perguntar Castañeda, “quem são esses juízes brasileiros para julgar, ou este Congresso para fazer uma lei da ficha limpa, se o próprio senador americano já se manifestou?”
Castañeda comete um equívoco que vem pautando boa parte do barulho externo sobre o caso Lula: ele compra a retórica de campanha do ex-Presidente pelo valor de face. Sugere que poderia ser “pesado demais” para a democracia brasileira caso Lula não concorra e não consiga eleger seu substituto e que os fãs do ex-presidente poderiam se sentir privados do direito de votar.
Há muitas coisas interessantes a observar nesta linha de argumentação. Em primeiro lugar, a visão algo fantasiosa do que se passa no Brasil. A começar pela confusão elementar entre “povo” ou “sociedade” e a militância organizada e relativamente restrita (ainda que ativa e barulhenta) de um partido politico, seja ele qual for. Ativismo e retórica são essenciais na democracia, mas não a definem.
Em segundo lugar, há um problema evidente de equidade. As mesmas regras deveriam valer para todos (incluindo personagens pelos quais Castañeda ou o comitê da ONU, imagino, não teriam lá grande simpatia) ou deveríamos instituir, no País, um direito próprio para quem tem militância e algum apoio externo?
Por fim, aposta-se na ideia difusa de que somos um País feito de uma elite política degenerada, com os juízes no comando e funcionando como “árbitros das eleições”. Uma espécie de república de bananas gigante, cujas leis e instituições não mereceriam ser levada muito à sério.
O ponto é que vai aí uma visão fantasiosa sobre Brasil, a qual deveríamos rechaçar em respeito àquilo que nós mesmos soubemos construir nestas mais de três décadas de democracia.
Uma democracia com muitos defeitos, a começar pela falta de consenso sobre o que deve, afinal, ser reformado em nosso sistema político. Vai daí o fato óbvio de que precisamos dobrar a aposta na moderação e no diálogo, e não jogar mais lenha na fogueira.
Um bom ponto de partida seria observar o País sob o prisma daquilo que o País construiu na história recente. A Constituição de 1988 completa trinta anos, em nosso mais longo período de normalidade democrática. Soubemos respeitar uma rigorosa alternância de poder e sobrevivemos a dois processos de impeachment. Consolidamos instituições independentes, o que no fundo é o que parece incomodar muita gente.
E em nenhum momento, ao menos até agora, estivemos diante de uma escolha entre a democracia e o estado de direito, como sugere o Professor Castañeda. Mesmo porque, no mundo moderno, do qual felizmente fazemos parte, essas coisas necessariamente andam de mãos dadas.
(originalmente publicado pela Folha de São Paulo, em 21/08/2018)