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O capitalismo fair play

No alto do Grand Canyon, há um aviso pedindo que os turistas não alimentem os animais. E com uma explicação. Eles vão gostar de ganhar um biscoito, mas vão se acostumar, e com o tempo perderão o ânimo de caçar por conta própria. O economista italiano Luigi Zingales gosta de contar esta história, e diz que o mesmo vale para o mundo dos negócios. Cita o modo como foi feito o resgate dos bancos americanos, na crise de 2008. Uma vitória da K Street, a meca do lobby da indústria financeira, em Washington, sobre o “contribuinte indefeso”. Em geral é assim, quando o governo dá uma ajuda. Alguns ganham, e quase todos pagam a conta, de um jeito ou outro, no longo prazo.

Zingales esteve no Brasil, na outra semana, para lançar seu livro, Capitalismo para o Povo. O livro é uma espécie de manifesto contra o que ele chama de “capitalismo de compadres”. Poderia ser “estatismo de compadres”, daria na mesma. O conceito cai como uma luva em um país como o Brasil. País do BNDES e seus “campeões nacionais”; da política de “conteúdo local” nas compras do pré-sal; do nosso “presidencialismo de coalisão”, de vezo patrimonial, movido a vinte e três mil cargos de confiança; da incrível máquina de sindicatos atrelados ao estado, sustentados via imposto sindical.

Zingales trás algo novo ao debate público: defende que a economia de mercado pode ser uma bandeira popular. Em diversas partes de seu livro, menciona os movimentos Occupy Wall Street e Tea Party. Nas alegorias tradicionais da política, eles não teriam nada em comum. Para Zingales eles expressam um mesmo mal estar. O mesmo, quem sabe, que assistimos nas ruas do Brasil, em 2013 e 2015. Por vezes é a orgia de dinheiro público nos estádios da Copa; por vezes é a corrupção na Petrobrás. Mas o fio condutor é o mesmo: a zona cinzenta, pouco republicana e eticamente insustentável entre a política e o mundo dos negócios.

Zingales diz que não é um filósofo moral, mas há uma evidente base filosófica em tua teoria. Ela diz que o senso de justiça das pessoas não requer que a distribuição da renda, na sociedade, seja mais ou menos igualitária. A exigência dos cidadãos diz respeito ao fair play. Todos querem ganhar, mas antes de tudo querem que o jogo seja limpo. Isso requer não apenas regras iguais, mas certa equivalência nas condições de partida de cada um, na sociedade. Numa analogia com o futebol, ficamos furiosos com os 7 a 1, na Copa, mas ninguém reclamou que o resultado foi injusto. É como funciona a meritocracia: aceitamos que o resultado se defina pelo talento, ou mesmo pelo acaso. O que não vale é o truque, a sensação de jogo-jogado. Vem daí a ideia de um certo nivelamento do sistema de oportunidades. E este é o foco de Zingales.

Não é pouca coisa. Isso requer, por exemplo, o acesso de todos a uma escola de qualidade. De cara, rodaria no teste o modelo África-do-sul-na-época-do-apartheid, que vigora no Brasil, em que os mais ricos estudam em boas escolas e os mais pobres nas escolas “do governo”. O que diferencia os dois modelos é, essencialmente, a existência ou não de competição. As escolas estatais funcionam à base de um duplo monopólio: elas não podem ser “descontratadas” pelos estudantes, e não podem, por sua vez, descontratar seus piores professores. O modelo funciona como uma máquina de gerar desigualdade social, mas vamos levando.

Zingales observa que, nas devidas proporções, é o mesmo que ocorre nos Estados Unidos. E não é à toa que define o “lobby da escola pública” como o mais poderoso lobby norte-americano. Ele custa U$ 56 milhões, anualmente, é bancado pelos sindicatos de professores públicos. É o lobby do status quo, em educação, que torna sem sentido a ideia do “sonho americano” para a maioria da população. A proposta de Zingales é simples: que o estado financie a educação, mas largue de fazer a gestão das escolas. Ofereça um vale-educação e permita que os estudantes mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de famílias com maior renda. Fair play, nos pontos de partida. Atenção aos alunos, não ao lobby dos sindicatos.

A agenda sugerida por Zingales passa ao largo da habitual clivagem “esquerda x direita”, que há tempos envenena nosso debate político. Seu tema central é como fazer com que a definição de políticas públicas expresse de modo mais apurado os interesses difusos da sociedade, em uma perspectiva de longo prazo. Como evitar que o espaço público seja capturado por grupos de interesse, de dentro e de fora da máquina pública.

Uma forma de fazer isto é evitar a expansão contínua do aparato estatal. Quanto maior o tamanho do bolo, diz Zingales, mais incentivo as empresas e corporações terão para abocanhar sua fatia. Ao cidadão interessa um Estado enxuto, porém rigoroso na defesa igualitária de direitos. Garantidor de equidade, e por isso avesso à miríade de vinculações, monopólios, privilégios funcionais, subsídios e incentivos fiscais setoriais.

Subsídios e incentivos fiscais funcionam como uma espécie de ladeira escorregadia. Concedidos a um determinado setor, dificilmente serão recusados aos demais. Cada setor terá sempre bons argumentos a seu favor. Dirá que o segmento X ou Y também recebeu, que outros países fazem a mesma coisa, e que é preciso gerar empregos. Qualquer lobista tem na ponta da língua o número de empregos que irão pelo ralo se o governo cortar o seu subsídio favorito. E terá muita gente a seu lado, falando grosso.

Incentivos são como gatos de sete vidas. Feitos para estimular, temporariamente, uma atividade econômica, tendem à imortalidade. Vide o caso clássico da Zona Franca de Manaus, com seus quase cinquenta anos e incentivos recém prorrogados até 2073. Tudo para criar uma indústria muito cara, e até hoje muito pouco competitiva. Observe-se o bem sucedido lobby das montadoras brasileiras para renovar, ano a ano, a redução do IPI para automóveis, com os sabidos efeitos sobre o caos urbano brasileiro. Vide o exemplo pitoresco da chamada “lei do audiovisual”, que há mais de duas décadas oferece 125% de incentivo fiscal para a realização de filmes nacionais. A empresa patrocina um filme e recebe, além do abatimento integral, mais 25% como presente do erário público.

O contribuinte, por óbvio, não sabe disso. O Estado não só cresce em tamanho, mas também em complexidade. Não há a menor chance do eleitor-contribuinte competir, em informação, com lobistas, políticos e burocratas do setor público. Isto ocorre simplesmente por que não vale a pena, para cada cidadão, gastar muito tempo e energia com temas sobre os quais terá pouca ou nenhuma influência.

É por isso que o “capitalismo fair play” não pode funcionar sem transparência nos negócios públicos. A imprensa livre e investigativa cumpre um papel aí, mas é preciso ir adiante. Governos devem fornecer informação precisa à sociedade. No Brasil ninguém sabe, por exemplo, quanto custa um estudante, no sistema estatal de ensino, ou quando custa um emprego, no setor privado, gerado via subsídios públicos. Sem essa informação, como é possível comparar políticas e buscar soluções mais eficientes? O Brasil engatinha neste quesito, e ainda alimenta um mecanismo perverso de desinformação: a avalanche de propaganda institucional dos governos. Propaganda governamental que expõe dados de maneira seletiva e trata a informação pública como peça de marketing. O eleitor-contribuinte termina pagando por uma informação de má qualidade. Cujo preço ele também desconhece, diga-se de passagem.

Além da transparência, um capitalismo fair play exige que as leis sejam simples e inteligíveis. Legisladores e burocratas deveriam pensar muitas vezes no custo que irão impor, aos indivíduos e às empresas, a produzirem cada nova exigência ou complicação legal. A preocupação deveria vir em dobro, se o foco é criar um País de empreendedores. Em geral, não é o que acontece. Zingales exemplifica com a lei americana da reforma financeira, pós-crise, em 2010. Confessa que, mesmo sendo um especialista, não conseguiu ler as suas 2.319 páginas. Só leu o resumo. E aposta que sua elaboração gerou mais horas de trabalho, para lobistas e advogados, do que o pacote de estímulo ao emprego, do Presidente Obama, no ano anterior.

O tema é saboroso, em um País como o Brasil. Nossa legislação trabalhista, com seus quase mil artigos, vem dos anos 40. Há uma justiça do trabalho inteira para lidar com ela, com mais de sete milhões de processos trabalhistas em curso. Nossas empresas gastam, em média, 2.600 horas/ano para lidar com o cipoal tributário, o que nos coloca no 177º lugar entre 189 países, no ranking do Doing Business, do Banco Mundial. É evidente que há aí uma agenda. E há sinais, no Brasil, de que este é um caminho possível. A legislação do SIMPLES, para as pequenas empresas, é um exemplo, e muitos ainda se lembram dos esforços do ex-ministro Hélio Beltrão, nos anos 70 e 80, nesta direção.

O capitalismo fair play pode ser a melhor agenda para as pessoas que foram às ruas, por esses anos, Brasil afora. Suas exigências se chocam frontalmente com o atual estado de coisas da política brasileira. Mas seus valores se estendem para muito além da política cotidiana. A simplicidade das leis, a redução da máquina do Estado, o freio ao privilégio, a equidade no sistema de oportunidades. Uma agenda oposta à tradição dos “donos do poder”. Que toma força no coração do cidadão comum, a quem deve pertencer, verdadeiramente, o espaço público.

(Texto originalmente publcado na Revista Época em 06.07.2015)

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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