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O que é mais importante: eliminar a pobreza ou combater os mais ricos?

Publicado originalmente na revista Época

Alguém aí está preocupado com o tamanho da conta bancaria de Jeff Bezos? Bezos é o criador e principal acionista da Amazon. De vez em quando eu adquiro um livro por lá. Leio um trecho grande que eles disponibilizam no site e, se achar bacana, vou lá e compro. Não dou a mínima para a posição de Bezos no ranking de bilionários globais. Suspeito que ele também não. Eu leio meu livro e ele ganha alguma coisa com isso. Estamos quites.

O mesmo vale para um espanhol discreto chamado Amâncio Ortega. Filho de um ferroviário de Valladolid, Amâncio começou trabalhando como office-boy em La Coruña, aos quatorze anos. Nos anos setenta criou a Zara e fez uma pequena revolução no varejo, não isenta de altos e baixos. De vez em quando compro uma camisa por lá. Sorte de quem comprou ações da Zara, tempos atrás. A valorização foi de 580% entre 2008 e 2016. Para uns, a Zara trabalhou bem e muita gente investiu na empresa para ganhar algum dinheiro. Para outros, o capitalismo “concentrou” riqueza.

Ortega e Bezos fazem parte da lista de oito bilionários que a ONG global Oxfam, em relatório recente, afirma possuírem uma riqueza equivalente à metade mais pobre dos seres humanos. Segundo a Oxfam, se trata de uma aberração. Talvez seja mesmo. Talvez o mundo fosse melhor sem essa turma de bilionários abrindo lojas reais e virtuais, vendendo livros, roupas e oferecendo ações no mercado. Talvez não. Vai que o problema esteja do outro lado da pirâmide. Na falta. É o que vamos discutir rapidamente a seguir.

O relatório sustenta que o rendimento dos mais ricos, mundo afora, não é proporcional ao valor efetivamente adicionado à atividade econômica. Inútil perguntar como os técnicos da Oxfam fizeram esta conta. Não há, por óbvio, cálculo nenhum. Apenas uma colagem de notícias dispersas e narradas de um certa maneira. Elas vão desde a existência de paraísos fiscais, passando pela esperteza dos contadores que fazem planejamento tributário, privatizações russas, subsídios e isenções fiscais, políticas de austeridade, pela destruição de terras indígenas no Brasil até o lobby da indústria farmacêutica contra a Tailândia e a crise na indústria têxtil de Bangladesh. A colagem produz uma narrativa trágica do mundo atual. Um “sistema” ordenado para beneficiar o 1% mais rico e liderado por gente que sabe o que faz.

A colagem também funciona para a estatística. O relatório diz que a riqueza dos 62 seres humanos mais ricos cresceu 45% entre 2010 e 2015, enquanto a metade mais pobre perdeu 38%. O mesmo gráfico, porém, mostra que, nos dez anos anteriores, a riqueza da metade mais pobre cresceu 3,5 vezes mais do que a conta bancaria dos 62 felizardos. O que isto significa? O capitalismo era bacana até o natal de 2010 e se tornou “obsceno a partir de 2011? Perfeita falácia estatística. Padrões de renda e crescimento econômico apresentam enormes variações de curto prazo, mas é possível perceber uma tendência ao longo do tempo.

O relatório da Oxfam traz à tona mais uma vez uma das perguntas fundamentais da nossa época: devemos, como sociedade, priorizar a eliminação da pobreza ou o combate aos mais ricos? Alguém sempre poderá dizer que as duas respostas estão erradas. Que a prioridade deve ser bem mais modesta: preservar a liberdade, a igualdade diante da lei e não ficar imaginando coisas. É possível. Mas por ora deixo de lado essa alternativa e concedo que tenhamos que decidir sobre um conceito de “justiça social”. E há duas opções: a guerra aos ricos ou a guerra à pobreza.

Os que optam pela guerra aos mais ricos não chegam a dizer, em regra, que os 50% da base da pirâmide está mais pobre porque um punhado de bilionários está enriquece demais. Mas essa é a sua mensagem. Trata-se de um exercício de correlação com uma vaga causalidade. Também não se explica em que consistiria uma “desigualdade razoável”. Vamos imaginar que a riqueza da metade mais pobre correspondesse à fortuna dos 800 mais ricos, ao invés de oito. Faria alguma diferença? Quem acha que a desigualdade é importante deveria definir essas coisas, dizer qual é, afinal de contas, a linha vermelha de assimetria de renda que não devemos cruzar. Ou quem sabe bastem apenas as impressões e intuições de quem escreve um relatório? Não sei. Fui em frente.

Meu ponto: concentrar o foco de uma visão sobre a justiça social no combate à desigualdade ou aos mais ricos é simplesmente um erro. Entre 1990 e 2010 (o próprio relatório da Oxfam reconhece isto), a proporção de pessoas vivendo na extrema pobreza caiu de 36% para 16%. Houve um incremento da igualdade entre os países, ainda que um aumento da desigualdade de renda em países avançados como os Estados Unidos, França e Inglaterra, assim como na China e na Índia. A revolução tecnológica produziu ganhos assimétricos. Os muito ricos ganharam, mas ganhou também uma enorme e multiforme camada de trabalhadores pobres do mundo em desenvolvimento. É o caso da ascensão da chamada “classe C”, no Brasil. Nada muito diferente do que ocorreu na maioria dos países latino-americanos.

A própria ONU identificou o equívoco da “narrativa da desigualdade”. Eliminar a pobreza extrema do planeta até 2030 é a primeira de suas “metas para o desenvolvimento sustentável”, lançadas em 2015. A ONU acertou o foco. Ninguém daria a mínima para a desigualdade se não fosse a existência da pobreza. Este é o ponto enfatizado pelo filósofo Harry Frankfurt, professor em Princeton e autor de On Inequality. Não há um problema ético na distância que separa a renda da classe média bem estabelecida e dos mais ricos. Se todos tivessem o suficiente, ninguém daria atenção ao valor das ações de Amâncio Ortega no pregão de segunda-feira.

O ponto é que errar o foco em um tema delicado como este acaba por produzir imensos equívocos na formulação de políticas públicas. No Brasil a carga tributária alcançou 32,7% do PIB em 2015. Será mesmo que nosso problema é aumentar impostos? Nosso investimento em educação, como proporção do PIB, é maior do que a média da OCDE, enquanto nossos alunos de escolas públicas tiram último lugar no PISA. O problema é dinheiro? É a “desigualdade” a causa da péssima qualidade de nosso sistema estatal de ensino básico? Gastamos mais para cobrir o déficit da previdência do setor público (cuja média de vencimentos é de R$ 7,5 mil) do que em programas de transferência de renda aos muito pobres. Precisamos mais impostos ou corrigir nosso sistema previdenciário?

Vai aí um dos mistérios da “narrativa da desigualdade”. Sua receita quase única é aumentar a arrecadação fiscal, por óbvio sobre os “mais ricos”. Na prática, a receita é transferir recursos do mercado para o governo. Governos são administrados por políticos e respondem à lógica do mercado político. Isto implica em acreditar que os políticos serão mais eficientes do que o mercado para alocar recursos, seja qual for o conceito de justiça em jogo. E explica porque a narrativa da desigualdade se ponha sempre como irmã siamesa da crença no governo. Venha daí, quem sabe, o discurso do relatório da Oxfam combatendo as “reformas de mercado” na educação e na saúde e pedindo, contra todas a evidências disponíveis, mais “setor público” nestas áreas.

Há um elemento moral na “narrativa da desigualdade”. A visão turva da riqueza como um “problema”. O relatório da Oxfam afirma que, do jeito que as coisas estão indo, “poderemos ter o primeiro trilionário nos próximos 25 anos”. Quando li isso achei bacana. Não apenas um. Quem sabe dezenas de trilionários. De preferencia, pensei, fazendo como Bill Gates, Warren Buffet, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e Michael Bloomberg, que já se comprometeram a doar a maior parte de sua fortuna para a filantropia. Na retórica da desigualdade, o virtual surgimento de um trilionário soa como ameaça. Não importa como ele ganhe sua fortuna ou o que faça com ela.

Há certa coerência aí. Nas alegorias da narrativa da desigualdade, empresários e altos executivos são tipos malandros que convidam uns aos outros para os conselhos das empresas e trocam gentilezas na distribuição de bônus e dividendos. O relatório sugere mesmo que os espertos concentram a divulgação de boas notícias na hora de retirar pacotes de ações, concluindo que um modelo alternativo poderia se inspirar na gestão coletiva de cooperativas do setor de vegetais na Tanzânia. Lendo isso me lembrei de minhas primeiras aulas de sociologia, nos anos 80. O raciocínio era o mesmo, e um dia arrisquei perguntar: mas o pessoal não fica rico também porque trabalha? A professora sorriu, irônica. Havia me esquecido daquele sorriso, mas agora me lembrei dele, lendo o relatório da Oxfam.

O ódio aos mais ricos tem uma longa biografia. Suspeito que ela se ponha, em nossa época, no lugar um dia ocupado pela retórica do socialismo. O socialismo ainda tinha a vantagem de representar uma “utopia positiva”. O ódio aos ricos soa como um resmungo. Nietzsche, mais do que ninguém, identificou este traço da cultura ocidental que consiste na condenação moral “dos espíritos mais fortes”. Aqueles que “reascenderam várias vezes as paixões adormecidas, despertaram o senso de comparação, de contradição, o encanto pelo novo, pelo arriscado, pelo inusitado”. Não importava que fosse o poeta ou o condottieri. Também não importaria que fosse o herói da inovação da economia global. O bilionário self-made-man, capaz de romper paradigmas e construir um mundo próprio, em regra ligado à revolução tecnológica. Eles são os “bons”. Servem de exemplo e definem um modelo. E precisamente por isso que devem ser “julgados”. Sua riqueza é obscena. Não importa que doem 99% para a filantropia. Seu pecado é de um tipo que não pode ser perdoado.

A retórica da desigualdade e sua fixação nos mais ricos é um discurso de combate político. Daí seu charme e interesse. Trata-se de uma retórica mobilizadora, ao contrário do tema complexo e “morno” como o enfrentamento da pobreza. É mais fácil mobilizar uma passeata “contra o 1%”, do que arranjar pessoas dispostas a ir a uma comunidade periférica e por a mão na massa para apoiar projetos emancipadores.

Estimular movimentos sociais e comunidades a ocuparem seu tempo “combatendo os mais ricos” é induzir pessoas pobres a empregar sua melhor energia em um universo retórico que conduz a lugar nenhum. Focar naquilo que faz falta, ao invés de apostar nas melhores possibilidades de cada um. Espécie de “armadilha da escassez”, na expressão do professor de Harvard Sendhil Mullainathan. Intuo que fariam melhor seguindo a trilha de um outro indiano, o Prêmio Nobel Amartya Sen e sua concentração de foco na expansão das capacidades humanas. De sua “liberdade” para exercitar talentos e inventar novos mundos. É uma agenda menos excitante do que erguer um cartaz em Wall Street ou à frente da Fiesp contra um grande culpado por tudo. Mas talvez seja a que de fato possa produzir algum resultado.

Por certo há um tipo de desigualdade “obscena”: a que surge da fraude e do “capitalismo de compadres”, fruto da pressão de corporações públicas ou privadas no mercado político. Também a igualdade que surge desse modo é obscena. O erro é confundir as coisas. Imaginar que toda assimetria de renda e riqueza surge da fraude e deva ser em si mesma condenada. A desigualdade é o resultado natural do uso que cada pessoa faz de seus talentos e circunstâncias. Ou simplesmente da sorte. Ela é também uma fonte de aprendizado. Eu posso aprender com os acertos de Jeff Bezos e com os erros de Eike Batista.

O que parece não deixar dúvidas é que todos tem direito. Que a pobreza extrema é a vergonha de nossa época, assim como foi a escravidão até quase o final do século XIX. É aí que deve residir o foco de qualquer visão sensata da justiça social. O resto funciona como uma espécie de luxo. Luxo de brincar com a estatística, de fazer de conta que não foi exatamente a globalização capitalista e suas “assimetrias” que produziram o recuo monumental da pobreza nas últimas décadas. Luxo de produzir espuma ideológica com o sofrimento humano e arrumar boas manchetes no “mercado” global de informação.

 

 

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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