Ódio do bem
Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais.
Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo?
É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir dai achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitaozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”?
No caso de Holiday, a justiça não caiu nesta conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime, no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou.
Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou.
Há muito o que aprender, com estas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano.
Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fakenews vinham apenas de um lado do jogo.
Fascinante é este fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo.
Tudo isto vem de muito longe mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral.
Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump, achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi.
A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política?
A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 50, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes”.
Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto.
Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo.
Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 30, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso, em nossa democracia.
É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale à pena pensar a respeito.
(publicado originalmente na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2020)