Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa “ágora digital”. Ainda lembro do projeto Gwan, que conheci nos anos 90, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro gótico. A ideia era forjar uma música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.
A ideia me pareceu muito boa. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da “sociedade civil mundial”. Era isto que embalava aquela turma esquisita, nas madrugadas frias de Barcelona, no sótão empoeirado e forrado de computadores.
Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas logo ali adiante as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal. Elas funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e suas regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí o diálogo aberto e a aproximação dos divergentes.
O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.
Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinaliza a recente onda de “etiquetagem” e supressão de postagens, restrição de compartilhamento de mensagens (sendo exemplar o caso das notícias envolvendo Hunter Biden) e finalmente os desligamentos de usuários, pura e simplesmente. Tudo envolvendo evidentes juízos políticos, com os quais se pode ou não concordar. Não é o ponto aqui.
As redes agem assim porque podem. São empresas privadas, suas regras vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e “bom senso”, e que censurar estas ou aquelas contas, e não aquelas outras, terminaria sempre sendo o melhor para a civilização e para democracia.
Não sei porque (talvez seja a idade), me tornei cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a “verdade” e a infalibilidade de seus juízes.
É o sentido da frase desconfiada da Chanceler Ângela Merkel, dizendo “problemático” o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um “bem fundamental”, a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.
É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase-monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. À longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo.
Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século XVII. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, “os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo”.
Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.
A ideia das “ágoras universais” vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.
A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no ziguezague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas, nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.
Fernando Schüler é Cientista Político e professor do Insper
(originalmente publicado na Folha de São Paulo, 13.01,21)