Publicado originalmente na Revista Época
As primárias americanas começam em fevereiro, em Iowa, mas a campanha já tem sua primeira imagem icônica: Rose Hamid, com seu véu muçulmano, sendo retirada do comício de Donald Trump na Universidade de Winthrop, na Carolina do Sul. Rose é militante do Partido Democrata e foi fazer um happening no comício de Trump. Na sua roupa, trazia a frase: “salam, eu venho em paz”.
Rose conta que foi bem recebida, comeu pipoca com o pessoal da arquibancada, tudo numa boa. Até que Trump começou sua arenga vinculando refugiados sírios a militantes do Estado Islâmico. Ela se levantou, alguém falou em “bomba”, a multidão começou a gritar e a polícia entrou em ação.
No outro dia, ela aparecia tranquila, dando uma entrevista na CNN, como uma efêmera celebridade. Fica a pergunta: o episódio tem alguma gravidade? ou tudo não passa de um grande espetáculo? Trump se apresenta como o americano menos racista de todos, mas tem colocado lenha na fogueira do preconceito anti-islâmico, nos Estados Unidos. Ninguém leva muito a sério, mas ele propôs fechar, por uns tempos, o país aos muçulmanos, até que se entenda melhor “o que está acontecendo”.
Foi mais adiante: propôs expulsar do país todos os imigrantes ilegais (algo como 11 milhões de pessoas) e depois trazer de volta os “caras legais”. A proposta mais bizarra, e a de maior sucesso, até agora, é construir o grande muro na fronteira com o México. Karl Rowe, estrategista republicano da era Bush, fez troça, perguntando se Trump sabia que a fronteira tinha 1.254 milhas, e se tinha ideia de quanto essa brincadeira iria custar. Trump respondeu chamando Rowe de “perdedor” e dizendo “não me importo, os mexicanos é que vão pagar”.
Bizarrices à parte, parece não haver dúvidas de que ele conseguiu transformar em simpatia eleitoral o desconforto contemporâneo com a explosão migratória. A lenda popular que associa a perda de empregos, a mutação de valores e a violência com a abertura comercial e os “excessos” do multiculturalismo.
Vai aí um paradoxo: Trump, o empreendedor global, ícone americano do livre mercado, fatura eleitoralmente revivendo um nacionalismo caipira. Do tipo que reclama da invasão dos carros japoneses e quinquilharias chinesas. Diz que tudo anda errado na América. Que o país virou uma terra de dumping, um “tigre de papel”, e por aí vai.
Numa síntese: protecionismo econômico com um toque de xenofobia. Nada que não pareça em sintonia com a onda contemporânea de partidos e movimentos ultraconservadores, na Europa, como a Frente Nacional, na França; o partido Lei e Justiça, na Polônia, ou o Partido do Povo Suíço.
Isso tem lhe rendido apoios desconfortáveis. Em Iowa, uma coalisão de “nacionalistas brancos” trabalha duro para Trump. Sua última iniciativa foi financiar trezentas mil mensagens telefônicas em que se pode ouvir Jared Taylor, editor da revista American renaissance, dizendo “nós não precisamos de muçulmanos. Precisamos de gente branca esperta e bem educada, capaz de assimilar nossa cultura”. No Brasil, uma frase dessas configuraria crime inafiançável. Nos Estados Unidos, seu autor está protegido pela Primeira Emenda à Constituição.
Trump rejeita o apelo racista, mas diz entender a raiva que o motiva. Aqui há um ponto importante: os EUA vivem uma transição acelerada de uma sociedade relativamente homogênea para uma sociedade multirracial e multicultural. 2011 foi o primeiro ano da história americana em que o número de bebês brancos não hispânicos foi superado pelos nascimentos “não brancos”. Em menos de três décadas, os brancos não hispânicos serão minoria nos Estados Unidos. Trump parece expressar o mal estar da transição.
Mas as razões para o sucesso de Trump vão muito além do tema da imigração. Ele encarna à perfeição um tipo popular na cultura americana: o self made man, espécie de caubói contemporâneo, que se fez sozinho, não depende de ninguém e diz o que pensa. “Eu financio minha própria campanha”, repete Trump, à exaustão. “Vejam a campanha do Jeb Bush”, faz graça, “torrou 68 milhões e não consegue fazer um comício!”.
Os comícios de Trump funcionam como um talk show, quando não uma comédia stand-up. Ed Pilkington, analista do The Guardian, bem observou que, antes de bombardear seus ouvintes com política, Trump os faz rir. E estamos falando de comícios com milhares de pessoas, em um ritmo alucinante. Nada parecido acontece com os demais pré-candidatos republicanos. Alguns dizem que é pelo espetáculo. As pessoas vão lá comer pipoca e se divertir, mas nada garante que terão paciência para votar nas primárias. É o que se saberá em fevereiro.
O talk show de Trump é como um programa de domingo, na TV aberta. Uma sequência de gracinhas e simplificações. A mensagem básica é: tudo vai mal, nos Estados Unidos, porque colocamos as pessoas erradas para governar. Quando eu estiver lá, tudo vai mudar. Em segundo lugar, a narrativa excludente. O discurso fácil no “nós contra eles”. Em algum lugar que não me lembro onde, algo na linha do “nunca antes neste país”.
A dicotomia de Trump não é entre ricos e pobres, mas entre os “espertos” e os “estúpidos”. Os estúpidos são todos os “outros”, os adversários, em especial Obama e Hilary Clinton. Estes dois, além de tudo, não gostam muito de trabalhar. Hillary faz um comício e desaparece por uma semana. Seu oponente democrata, Bernie Sanders, quer aumentar os impostos para 90%. “Alguém aqui está disposto a pagar 90% em impostos?”, pergunta Trump, e recebe uma tremenda vaia como resposta.
Alguns identificam em Trump apenas um fenômeno do moderno marketing político, mas intuo que estejam errados. Por uma razão: ele não parece ser um fenômeno reproduzível. Seu maior trunfo é precisamente resgatar uma certa autenticidade perdida no teatro da política profissional americana. Trump orgulha-se de falar sem telepronter, e de fato parece dizer exatamente o que lhe vem à cabeça. Daí a gafe, a piada por vezes grotesca, o show politicamente incorreto que encanta boa parte da classe média eleitora do Partido Republicano. E a mídia: Trump obteve, até aqui, perto de 70% da cobertura das primárias republicanas.
Não deixa de ser curioso que um personagem como Trump surja na sequência de Obama e sua era do politicamente correto. A era do multilateralismo, do discurso moderado e inclusivo, cujos símbolos maiores são os acordos com Cuba e com o Irã. No seu lugar, entra a retórica da “América grande de novo”. Versão popularesca do “excepcionalismo americano”, da “cidade acima da colina”, popularizado por Reagan, agora em uma versão Tonight Show.
Muita gente se pergunta se uma vitória de Trump representaria um risco à democracia americana. Haverá, de fato, um muro na fronteira com o México? 11 milhões de imigrantes serão deportados? Na minha modesta opinião, bobagem. As instituições americanas são muito mais poderosas do que um punhado de frases de efeito, em uma campanha eleitoral. Lembro-me da quantidade de besteiras que se escreveu, no auge da era W. Bush, sobre a emergência da “teocracia americana”. Depois veio Barack Obama.