Pergunta rápida. O que há em comum entre instituições tão diferentes quanto a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a OSESP, o Projeto Sirius, o acelerador de partículas e um dos mais complexos empreendimentos científicos brasileiros, em Campinas, e o Hospital Regional de Jundiaí?
Em primeiro lugar, são instituições de excelência, mas este não é o ponto. Elas tem em comum o fato de que representam inovações estratégicas para a gestão pública brasileira. São iniciativas fomentadas pelo poder público mas gerenciadas via contratos de gestão, com o setor privado. A OSESP tem o comando da Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; o Projeto Sirius tem a gestão do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM, e o Hospital Regional de Jundiaí é gerenciado pelo Instituto Sírio Libanês.
Vai aí uma tendência da gestão pública contemporânea. Assim como aconteceu com o setor privado, a integração global e a pressão por eficiência fez com que os governos passassem por um processo de especialização. Ao invés do antigo modelo do governo horizontalizado, prestador de serviços, do governo que “faz de tudo”, vem crescendo a ideia do governo que regula, fixa metas de longo prazo, garante a vigência de direitos, mas deixa que o setor privado e o terceiro setor executem a gestão de serviços.
Com isso, produz-se uma equação ganha-ganha: o governo faz o que sabe fazer melhor e tem um mandato democrático para fazer: o macroplanejamento social, enquanto o setor privado, com ou sem fins lucrativos, igualmente faz o que sabe: o gerenciamento na ponta, em uma ambiente competitivo.
Esta metamorfose das funções dos governos de sua relação com o mundo privado remonta à chamada Nova Gestão Pública, que explodiu nos anos 80 e 90 com o processo de globalização. A integração dos mercados pressionou os países a reduzir custos, tributos e burocracia, sob pena de perda de espaço e competitividade diante da abertura global.
No Brasil chegamos um tanto atrasados a este processo. A Constituição de 1988, em que pese todos os seus méritos democráticos, consagrou um modelo pesado de burocracia pública, baseado na centralização orçamentária, regime jurídico único dos servidores, estabilidade no emprego, ausência de meritocracia e engessamento dos processos de gestão, cuja expressão mais conhecida é a lei das licitações (Lei 8.666/93)
A adoção do modelo burocrático levou a uma contínua perda de qualidade na oferta dos serviços públicos. O resultado foi a migração da classe média para os mercado privado. Para as escolas particulares para saúde privada. Os mais pobres permaneceram atados aos serviços oferecidos pelo Estado, em regime de monopólio. O resultado final foi o progressivo agravamento da desigualdade social brasileira.
A reversão desse estado de coisas começa com o processo da reforma do Estado, nos anos 90. Seu aspecto crucial foi a criação da lei das Organizações Sociais e a introdução, em maior escala com a devida base jurídica, dos processos de contratualização na administração pública brasileira. A ideia básica está contida nos exemplos que trouxemos no inicio do texto: se o Sirio Libanês pode disponibilizar toda sua expertise, firmar um contrato de gestão com o governo e gerenciar um hospital público, aberto a toda a população, por que isto não deveria ser feito?
A essência dos processos de contratualização é oferecer à população mais desfavorecida o mesmo padrão de serviços de que dispõe a classe média e os mais ricos, no mercado. Trata-se de uma política de equidade. Sua base filosófica é o entendimento claro de que para que um serviço seja público ele não necessariamente precisa ser estatal. Esta foi uma confusão que por muito tempo marcou a cultura politica brasileira, e que aos poucos vem sendo desfeita.
Nos últimos anos, criou-se no Brasil uma base de legislações abrangente e sofisticada que permite que os governos criem modelos inovadores e sistemas de parcerias público-privadas em todas as atividades não exclusivas de Estado. Além das legislações de Organizações Sociais, que hoje existem em praticamente todos os Estados, tivemos a lei das PPPs, em 2004, e mais recentemente a criação do Marco Regulatório da Sociedade Civil, a lei 13.019/14.
Com base nestes modelos, o País vem se transformando em um canteiro de inovações surpreendentes e que apontam para o futuro da gestão pública brasileira. É o que vemos, por exemplo, na rede de escolas infantis construídas e gerenciadas via PPP, em Belo Horizonte; é o que vemos na experiência pioneira de gestão, igualmente via PPP, do Hospital do Subúrbio, em Salvador.
É o que vemos em experiências que vão desde uma instituição de impacto internacional, como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, até a prestação de serviços de atenção à saúde. Apenas na cidade de São Paulo, mais de 60% das unidades básicas de saúde já são prestadas via contratos de gestão.
Há muito o que caminhar pela frente. Talvez a educação seja o maior desafio que temos pela frente. O Brasil soube desenvolver modelos inovadores, como o ProUni, no ensino superior, mas ainda pouco evoluiu no que diz respeito ao ensino básico. Dias atrás o Congresso aprovou, pela primeira vez, a possibilidade de parcerias de gestão com instituições filantrópicas no ensino fundamental e médio. São boas notícias no final de um ano difícil. E um chamado à responsabilidade que temos com a construção de um País mais justo para todos.
Escrito em conjunto com Regina Esteves
Publicado originalmente na Revista Exame, em dezembro de 2020