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Lula em quatro estações

Em abril de 2009 Lula era “o cara”, o político mais popular do planeta, na frase de Barack Obama em uma reunião londrina do G20. Obama estava certo. Nos dois anos que se seguiram, Lula atinge a consagração política. A revista Time o escolhe o líder mais influente do mundo e ele conclui o governo com 83% de aprovação. Passados alguns anos, as coisas mudaram. Uma densa neblina paira sobre sua biografia. Seu legado é posto em cheque, e o futuro incerto. Defini-lo, longe da paixão dos dias, é tarefa para os historiadores. Mas vale tentar capturar suas mutações, ao longo do tempo. Com algum risco e leveza, tentar contar a história de Lula em suas quatro estações.

Primeira estação

A história de Lula diz muito da saga brasileira no século XX. O filho do sertanejo que sai de Caetés, no interior de Pernambuco, rumo ao litoral paulista com a mãe, Dona Lindu, mais oito irmãos. História de desalento e da vida que se renova. Do guri que cuida da vida, na Vila Carioca, que engraxa sapato e vende tapioca. E que um dia dá a virada. Vai cursar o Senai. Vira torneiro mecânico. O especialista da família. E vai trabalhar como metalúrgico no ABC.

Lula podia ter feito carreira na fábrica e tocado sua vida operária, mas no final dos anos 60 começa a frequentar o sindicato. Diz-se que foi pela mão do irmão, Frei Chico, então ligado ao partido comunista. À época trabalha na Aços Villares. Não é um tipo ideológico, nem ligado à política. Faz carreira por dentro da máquina sindical oficial. Em 1972, recusa concorrer à presidência do sindicato pela oposição. Prefere ficar ao lado de Paulo Vidal, o presidente consentido pela estrutura de poder. É eleito primeiro secretário e responsável pela caixa de aposentadoria. Devagarinho vai virando o Lula, o cara boa praça que joga bola e bebe com a peonada. Um dia aparece lá no sindicato uma moça bonita com um filho para criar. É Marisa Letícia, a galega, viúva de um motorista de taxi de São Bernardo. Será a mulher de Lula durante 42 anos, até sofrer um AVC e falecer no inicio deste ano.

Lula soube se reinventar, após 1975, quando assume a presidência do Sindicato. Com seis meses de mandato, faz uma viagem ao Japão e na volta fica sabendo da prisão de Frei Chico. Anos depois, Lula dirá que aquele foi um momento de virada. Diz que perdeu o medo. Acrescentou um elemento político a seu discurso. O fato é que os três anos que se seguiram mudaram não apenas a trajetória de Lula, mas do sindicalismo brasileiro. Foram três campanhas salariais, nos meses de maio de 1978, 79 e 80. Em 1979 Lula permanece preso por 31 dias, período no qual lhe é permitido visitar a mãe, no hospital, e logo ir a seu enterro. A prisão é um ponto de inflexão. Acrescenta um elemento dramático a sua trajetória e afirma a independência do chamado “novo sindicalismo”. Lula completa sua primeira estação. As imagens da massa operária em silêncio, no estádio de Vila Euclides, sob a batuta mágica do filho de Dona Lindu, haviam criado o mito.

O Lula da primeira estação emerge no contexto do divórcio entre Estado e sociedade produzida pelos militares, no Brasil dos anos 60 e 70. O ciclo militar fez da estrutura sindical brasileira uma máquina burocrática distante da tradicional influência dos comunistas e trabalhistas. Lula não carrega a “herança de 68”, nem recebeu formação teórica de esquerda. Ele surge no espaço vazio, “por dentro” e ao mesmo tempo crítico do sindicalismo oficial e do imposto sindical, defendendo uma relação ganha-ganha entre capital e trabalho.

Em 1978 ainda chama o golpe de 64 de “revolução” e critica o velho movimento sindical por fazer muita politicagem. Critica os intelectuais e diz que os estudantes “serão os patrões de amanhã”. Lula é o líder que convida o governador arenista Paulo Egydio para sua posse, que negocia com o governo e conversa de igual para igual com a elite empresarial. É respeitado pelo sistema e surge, aos olhos dos arquitetos da transição, como uma liderança alternativa ao Brizolismo.

Segunda estação

No final dos anos 70, Lula lidera o movimento de criação do PT. No mês de julho de 1978, em um encontro de petroleiros na Bahia, diz que “havia chegado a hora” dos trabalhadores formarem seu próprio partido. Lula é intuitivo. O País vivia tempos de abertura, a campanha pela anistia tomava corpo e se anunciava a reforma partidária. Lula percebeu o espaço para a formação de um novo partido. Sua base? Não apenas a liderança do novo sindicalismo mas um leque difuso de grupos marxistas, intelectuais acadêmicos, comunidades de base da igreja, movimentos comunitários e de estudantes.

Depois de uma década e meia de poder militar, era brutal a hegemonia da esquerda nas universidades e na sociedade civil brasileira. O ciclo militar estigmatizaria por muito tempo a ideia de uma “direita” política. Antônio Candido, em seu Direito à literatura, de 1988, registra o fenômeno, observando ser raro, naqueles anos, encontrar algum político ou empresário que arriscasse se definir como conservador. E arremata: são todos “invariavelmente de centro, até de centro-esquerda, inclusive os francamente reacionários”.

Lula percebe o momento. É sua segunda estação. Antes crítico da politização dos sindicatos, Lula lidera a tomada da máquina sindical pela esquerda; avesso à partidarização do movimento social, torna-se ele mesmo seu protagonista; cético com o movimento estudantil, surge como sua referência. De um líder pragmático e aberto ao diálogo capital-trabalho, submerge à lógica fácil do “conflito de classes” e à retórica difusa da “construção do socialismo”.

O PT da primeira década usou e abusou da palavra “socialismo”, que depois morreu à mingua. Na vida real, seu foco sempre foi a ocupação de estruturas de poder. A máquina, o sindicato, o imposto, o diretório, o parlamento, o governo. Um tipo particular de patrimonialismo regado a ideologia e grandes palavras. Os documentos do partido falavam em “estatizar os bancos” e “romper com o FMI”, mas ninguém sabia bem o que isto significava. A retórica vazia cumpria a função pragmática de “acumular forças”. A democracia criara um mercado político, e Lula percebe que seu lugar no jogo era à “esquerda”. Um perfeito encontro de almas: a esquerda encontrara seu herói-operário e Lula sua máquina de fazer política.

Nos anos 90, Lula anda na contramão. Perde as eleições de 1994 e 1998 para Fernando Henrique. A retórica é anacrônica e o partido já apresenta sinais evidentes de burocratização. Lula vai contra o Plano Real, as privatizações, a reforma do Estado e a Lei de Responsabilidade Fiscal. No final da década, chama o programa Bolsa Escola de “bolsa esmola”. Foi a época da denúncia ao “modelo neoliberal” e das política de “desmonte do Estado”. Retórica banal mas eficiente. Ela soube expressar o sentimento dos descontentes com o processo de modernização do Estado.

Terceira estação

No início dos anos 2000, a nova reinvenção. Sob a batuta de Duda Mendonça, Lula surge como o líder brasileiro, capaz de conciliar interesses e melhorar a vida dos mais pobres. De algum modo, é a volta de Luiz Inácio. Seu reencontro com o Brasil supunha dar um chega-pra-lá na retórica abstrata da esquerda acadêmica. Lula lança sua “carta ao povo brasileiro” e faz um pacto silencioso com a era Fernando Henrique. Ganha as eleições em 2002 e estrutura uma equipe econômica de corte liberal. Lula espanta velhos fantasmas. Parece flertar com o líder pragmático que ensaiou representar nos anos 70. Diz ter aprendido com Celso Furtado que “ultra-esquerdistas são um alerta para o caminho que não se deve seguir”. Lula busca o caminho do meio. Por um brevíssimo período, foi um líder reformador. Aprova a nova lei de falências, a lei das PPPs e uma reforma parcial no sistema previdenciário.

Lula governou o Brasil como um democrata. Seu maior deslize foi a ideia infeliz de expulsar do País o jornalista Larry Rohter, do The New York Times, em 2004, por uma matéria especulando se as dificuldades do Presidente não estariam ligadas a seu gosto por “bebidas fortes”. A menção é provocativa. Pode-se discordar das políticas de Lula, e por certo um amplo sistema de corrupção esteve em ação em seu governo, mas ele representou à risca, de um ponto de vista institucional, o tipo de esquerda que Jorge Castañeda chamou de “vegetariana”.

O gosto vegetariano não se estendeu à política interna. Em seus anos de poder, Lula esqueceu-se de ser magnânimo. Optou por uma ostensiva narrativa excludente, perfeitamente “carnívora”, cujo mote foi o “nunca-antes-neste-País”. A lógica fantástica de que toda a virtude pública nascera, no Brasil, em janeiro de 2003. As razões dessa escolha? Difícil dizer. O cacoete do “combate” herdado da velha esquerda? A personalidade autoritária que muitos identificam por trás do tipo bonachão? O fato é que Lula optou pela lógica amigo-inimigo, elite x povo. Recusou a posição do estadista lhe estava ao alcance numa época de boom das commodities e rápida ascensão social dos mais pobres. Recusou-se a ser um Juscelino. Boa parte da toxina ideológica que envenenou o País, nos últimos anos, vem desta opção feita por Lula em seus anos de poder, da qual hoje imagino que faça uma silenciosa autocritica.

Quarta estação

Os anos recentes marcam a desconstrução. Acuado, Lula ensaia aquela que pode ser sua última metamorfose: a do líder perseguido. Sua narrativa parte do não reconhecimento da justiça. Da ideia de que formalidades jurídicas simplesmente escondem a intenção de tirá-lo do jogo. Nesta tese, a elite não lhe perdoa por ter retirado alguns milhões de brasileiros da pobreza. Não suporta ver gente simples no saguão dos aeroportos. Os novos donos do poder querem “destruir o legado de Lula”, retirar “direitos dos trabalhadores” e entregar o Pré-sal para as “seis irmãs”, como adverte Marilena Chauí em um curioso video no Youtube. Difícil saber se alguém de fato acredita nessas coisas ou tudo não passa de mais um jogo de grandes palavras, como era a “construção do socialismo” do início do partido.

Lula parece acreditar que a política pode vencer a justiça. Faz sentido. Ele deve à política uma vida improvável. E dispõe e uma arma que nenhum outro politico brasileiro possui: uma multidão de ativistas dispostos a acreditar em qualquer coisa que ele disser. Gente boa que um dia já se definiu como imensamente crítica, mas que há muito parece incapaz de crítica alguma. Lula sabe disso e vai em frente. Recorre à ONU, faz comícios, ganha manifestos de Leonardo Boff e Chico Buarque e a promessa da invasão a Curitiba no dia de seu encontro com Sérgio Moro. Tudo pode parecer meio barroco, mas tem se mostrado eficiente. Em meio à tempestade, Lula cresce nas pesquisas. Faz troça dos adversários e comanda a “resistência” às reformas de Temer. O filho de Dona Lindu não se entrega. É inverno e faz frio. Mas talvez não seja ainda esta a última estação do caminho.

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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