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A dupla face do reacionarismo brasileiro

Há um duplo reacionarismo no debate brasileiro. O primeiro deles é de base cultural. Poderia chama-lo de “conservadorismo de costumes”, mas sempre que faço isso alguém lembra que o termo conservadorismo é mais amplo, que há a grande tradição de Burke a John Kekes.

Não é disso que estamos falando. É algo bem mais caseiro. Não se trata de Oakeshott, mas de Marcelo Crivella. O “militante de sua nostalgia”, na frase de Mark Lilla. Aqui pelos trópicos, seu grande momento foi a censura à revista com o beijo gay, na Bienal do Livro.

Luc Ferry criticou esta visão dizendo ser um absurdo supor que a natureza deva definir a ética. Perfeito. Hayek, e seu clássico “porque não sou um conservador”, ironizou a posição que aplaude a gradual evolução dos costumes, no tempo, mas decide que o raciocínio só vale para o passado. Em algum momento tudo deveria ser congelado.

São críticas elegantes, que vão muito além do que merece o nosso conservadorismo de programa de auditório. Ele é legítimo e expressa a visão de uma parcela relevante do eleitorado, mas é um tigre sem dentes, no mundo real da política. Rodrigo Maia sequer coloca seus temas em pauta, no Congresso.

O segundo reacionarismo brasileiro diz respeito ao estado e à economia. Ele tem apoios na academia, nos sindicatos e na intelectualidade bacana. Faz menos barulho, mas é mais efetivo. Seu mote é a defesa do corporativismo estatal. Observe-se bem: não se trata da defesa do Estado como instituição, ou do arcabouço institucional de direitos que protege o indivíduo e organiza a vida social.

Trata-se de uma defesa da velha e arcaica máquina pública brasileira, fruto de nossa tradição autárquica e corporativa. Sua paixão são as autarquias e repartições públicas. O status quo de nossas escolas e hospitais estatais quebrados, dos quais todos que recursos, incluindo-se aí a elite pensante, fogem como o diabo da cruz.

Sua pedra de toque é a rejeição de qualquer ideia de reforma do Estado. Foi assim nos anos 90, à época da Emenda 19 à Constituição e da criação das organizações sociais; foi assim com a lei de responsabilidade fiscal; foi assim mesmo quando Lula, em 2003, fez a mini-reforma a previdência com o apoio da oposição, do DEM e do PSDB.

Mais recentemente foi assim com as reformas que o País fez a partir de 2016. A ridícula negação do déficit previdenciário, a defesa do velho imposto sindical. A lista é grande e conhecida. Sua última façanha é cruel: a recusa de que os estudantes possam fazer sua carteirinha pela internet, sem custos. Tudo para alimentar, ainda que parece risível, os cartórios do movimento estudantil oficial.

Ninguém percebeu, entretidos que andamos com bobagem do dia, mas um episódio na última semana reuniu os dois reacionarismos brasileiros. O prefeito Crivella resolveu reestatizar os servidos de atenção à saúde, no Rio de Janeiro, extinguindo os contratos de gestão com as organizações sociais.

A medida foi elogiada pelo PSOL. Encontro do Bispo com Marcelo Freixo, com tudo que tem direito. Engorda a máquina, abre concurso, põe o sistema sob o mando político. Tudo que soa “progressista” em dia de comício, mas inferniza a vida das pessoas comuns na segunda-feira pela manhã, na fila do posto de saúde.

O próximo teste para a modernização brasileira é a reforma administrativa. As hesitações de Bolsonaro são previsíveis. Bolsonaro foi, no passado, uma síntese do reacionarismo brasileiro: conservador nos costumes, estatizante na economia. De uns anos pra cá se aproximou de posições liberais, ainda que parece sem sentido chama-lo de um político liberal.

A reforma começou mal. Ela deveria ter sido apresentada logo após a aprovação da reforma da previdência. Não foi; deveria abranger não apenas os futuros servidores, mas também os atuais; deveria abranger todos os poderes, sem distinção, para ter força moral e capturar o apoio da sociedade.

De qualquer modo, é uma reforma a ser feita. O debate sequer iniciou mas já milita no Congresso a frente em “defesa do serviço público”, com o velho discurso do “desmonte do Estado.” A nostalgia, no Brasil, não tem lá grande criatividade, mas não duvido que possa ganhar o jogo.

(Publicado originalmente na Folha SP em fevereiro, 2020)

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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