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É correto assegurar liberdade de expressão para ideias que odiamos?

Charlottesville (Foto: Chet Strange/Getty Images)

Tudo começou com uma estátua do general Robert Lee, herói confederado. Ela anda por lá desde 1924, e não se sabe bem quando surgiu a ideia de colocá-la abaixo. Diz-se que foi em meio à comoção envolvendo a morte de Michael Brown, em Ferguson, à época de gestação do movimento Black Live Matters. Em 2017, o Conselho de Charlottesville aprovou a retirada do monumento e o caso foi parar na Justiça. Líderes supremacistas perceberam a oportunidade. Nossa democracia nervosa se faz de ação e reação. A bizarra marcha de tochas é marcada para um sábado que prometia ser tranquilo, nos arredores do Emancipation Park. Não foi. Havia um campo de batalha e muito pouco bom senso. No início da tarde, James Fields, um tipo pró-nazi, acelerou seu carro sobre a multidão e matou a jovem ativista de direitos humanos Heather Heyer. “Era uma pessoa que chorava com a injustiça do mundo”, disse sua mãe.

O debate que se seguiu, como era de esperar, caiu na vala comum do maniqueísmo reinante nas redes sociais. A própria ideia de que poderia haver algo a ser discutido sobre os eventos de Charlotte passou a ser vista como suspeita. Ponderar sobre o quê? Sobre um bando de nazistas? A America Civil Liberties Union, entidade histórica na defesa das liberdades civis, defendeu o direito à manifestação supremacista e foi duramente atacada. A jornalista Sheryl Stolberg, do The New York Times, no coração do conflito, falou em violência de ambos os lados e tuitou: a “extrema-esquerda parece tão cheia de ódio quanto a alt-right”. Foi achincalhada nas redes sociais, mas não recuou.

A gritaria tem sua razão: não há nada a discutir com um grupo racista ou nazista. Eles estão fora do “consenso razoável” em qualquer democracia. No contexto americano, porém, isso não impede seu direito de expressão. Se o país é capaz de proteger o direito à expressão das piores ideias, significa que também o das melhores ideias está protegida. Em 1977, a Suprema Corte autorizou uma marcha nazista em um bairro judeu de Illinois. Foi uma opção da cultura americana pelo valor da liberdade, consagrado pela Primeira Emenda à Constituição. Ainda recentemente o juiz Samuel Alito, da Suprema Corte, resumiu o tema: o ponto é proteger a “liberdade de expressão das ideias que nós odiamos”.

É o que diz a tradição, mas alguma coisa não vai bem. Os acontecimentos de Charlottesville mostraram que a sociedade americana está longe de um consenso em torno dos valores da Primeira Emenda. Há um crescente contingente de ativistas de direitos que simplesmente não reconhece a ideia de “liberdade plena de expressão”. Em fevereiro, um exército antifa ocupou a Universidade da Califórnia em Berkeley para impedir uma palestra do ativista alt-right Milos Yiannopoulos. Semanas atrás, também em Berkeley, a tradicional Rádio KPFA cancelou uma conferência do cientista britânico Richard Dawkins por suas supostas “ofensas ao islã”. A rádio deixou claro que defende plenamente a liberdade “séria” de expressão.

Estará em curso um afastamento progressivo entre as ideias de república e democracia? Entre o direito individual e a imposição da norma coletiva? O tema é delicado, pois contrasta duas ordens de valores: nosso desejo de viver em uma sociedade livre e ao mesmo tempo de assegurar “respeito”. Uma sociedade livre, desde que sem estátuas do general Robert Lee ou passeatas de gente que detestamos. Não vejo como compatibilizar essas coisas, mas talvez possa estar me faltando alguma criatividade. De qualquer modo, não gostei de perceber que aquela marcha patética, no sábado passado, era convocada também em defesa da liberdade de expressão.

Nos dias seguintes, o debate se concentrou em torno da reação do presidente Trump. A questão era saber se ele faria uma condenação explícita aos movimentos supremacistas ou se manteria na posição crítica a “ambos lados”. Trump fez as duas coisas, mas na terça-feira, dia 15, parece ter falado com o coração. Disse que do mesmo jeito que havia a alt-right, havia a alt-left, e foi duro na crítica à derrubada dos monumentos históricos. Com direito a uma pergunta incômoda: “George Washington era um escravocrata. Vamos derrubar as estátuas de Washington também?”.

O experiente jornalista Mark Landler fez uma boa provocação. Ele disse que a posição ambígua de Trump joga por terra uma velha tradição americana: de que cabe ao presidente, em momentos críticos, apontar um “caminho moral para o país”. Foi o caso de Lincoln ao final da Guerra Civil e de Obama, em 2015, após o massacre dos jovens negros em Charleston, dizendo que “a Justiça se alimenta do nosso reconhecimento nos outros”. Isso antes de entoar “Amazing grace”,  à capela.

É difícil imaginar Donald Trump fazendo estas coisas. Ele sabe que é presidente em um pais dividido e que não há a menor chance de diálogo com o “outro lado”. Ele sabe também que pode continuar contando com o apoio de grupos racistas porque há base social para isso. Há um eleitorado silencioso que não dá muita bola para ameaças da Ku Klux Klan e parece claramente aberto à ideia de que há realmente dois lados criando confusão.

Como lidar com isso? Na cidade alemã de Wunsiedel, onde também há passeatas nazistas, os grupos de direitos humanos descobriram um jeito: com humor. Para cada metro percorrido pelos nazistas, os moradores se comprometem em doar € 10 para uma campanha antinazista. A ideia se espalhou por diversas cidades alemãs e já foi adotada em Charlotte, Carolina do Norte, onde as pessoas se vestiram de palhaços para receber uma passeata neonazista.

Não tenho a menor ideia se o humor daria certo em casos como o de Charlottesville. Por certo, a violência não funcionou. Ela permitiu que os supremacistas se fizessem de vítimas e ainda se posicionassem no lado da liberdade de expressão. Talvez valesse a pena, para quem ainda acredita na ideia de direitos humanos, prestar atenção aos valores da não violência que pautaram a longa marcha de Martin Luther King nos anos de 1960. Isso, por evidente, se o que realmente está em jogo é a defesa de direitos humanos, e não algum tipo de guerra surda cujo sentido ainda me escapa.

(publicado originalmente na Revista Época, em 18/08/17)

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Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

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