Houve tempo em que a assim chamada esquerda dominava amplamente o debate público brasileiro. Seu auge parece ter sido em algum momento, entre os anos noventa e os inícios da década passada. Depois as coisas começaram a mudar.
Trata-se de uma hegemonia que vem de longe. Em seu ensaio “Cultura e política, 1964-1969″, escrito no final dos anos sessenta, Roberto Schwarz observa o fenômeno e tenta algumas explicações. Em pleno regime militar, escreve, “há relativa hegemonia cultural da esquerda. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais…na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado”. E conclui: “nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom”.
O próprio Schwarz corroborava a dicotomia, um tanto óbvia para aqueles anos duros, em que a palavra “esquerda” surge sempre como polo positivo, e “direita” como polo negativo. Direita e esquerda não passam disso: palavras, em regra destituídas de um sentido preciso. Funcionam como peças do xadrez político, a cada momento. Não compreender isto é enxergar metafísica, no mundo plástico da política. Ou fazer o jogo. Schwarz usa o conceito nos termos dos anos sessenta. Esquerda são os comunistas e a “gente boa” das universidades e da vida cultural. Direita são os militares e sua turma. Seu temor era de que a esquerda perdesse sua hegemonia cultural, com a repressão e o endurecimento do regime, após o AI5. Seu prognóstico estava errado.
No País que emerge do regime autoritário, nos ano 80, a hegemonia intelectual desta mesma esquerda é brutal. Antônio Candido, em seu Direito à Literatura, de 1988, observa ser raro, naqueles anos, encontrar algum político ou empresário que arriscasse se definir como conservador. E arremata: são todos “invariavelmente de centro, até de centro-esquerda, inclusive os francamente reacionários”.
De minha parte, guardo a memória incômoda dessa época, em que a vulgata marxista e suas variantes formavam uma espécie de atmosfera, fora da qual era difícil respirar. Estudante, em Porto Alegre, ainda me lembro quando conheci, na virada para os anos 90, os dois primeiros jovens “liberais”. Observei-os como aves raras, e os achei mais cultos e menos dogmáticos do que quase todos os meus amigos da “esquerda”. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Percebi que a doutrinação, na universidade, havia produzido uma limitação intelectual importante, a toda uma geração. E que era preciso recuperar o tempo perdido.
Este mundo explodiu em algum momento, na virada para o século XXI. O fez por muitas razões. A queda do muro, o fim da guerra fria, a abertura comercial e a redução da pobreza global. O aumento da informação sobre o que dava certo, ou não, em matéria econômica. Alguém pode dizer que tudo isto já era sabido uma década antes. Mas as coisas demoram a chegar por aqui, e hegemonia cultural supõe um processo lento de sedimentação.
Os intelectuais fizeram a sua parte. Seja organizados em think tanks, como o instituto liberal, criado por Donald Stewart Jr, no início dos anos 80, seja atuando de modo independente. Funcionou, para o lado contrário, o mesmo enredo descrito por Schwarz para a ascensão da esquerda, nos anos 50 e 60, quando ela, ao mesmo tempo que lamentava seu “confinamento e a sua impotência”, foi “estudando, ensinando, editando, filmando, falando etc., e sem perceber contribuíra para a criação de uma geração maciçamente anticapitalista”. O novo “lado contrário”, não obstante, é plural. Move-se por valores ora republicanos, ora conservadores; ora com vezo social-democrata, ora liberal. Qualquer definição tende a deixar escapar sua diversidade.
Decisivo, neste percurso, é o efeito da internet. A hegemonia intelectual da esquerda dependia do seu controle sobre instituições. Universidades, escolas, instituições culturais. Sobre órgãos da igreja, redação de jornais e diretórios estudantis. E, por óbvio, sua eficiência brutalmente maior na ação partidária.
A internet explodiu este mundo relativamente fechado. O poder da palavra se diluiu, ou melhor, disseminou-se pelo tecido social. Foi a via de expressão de uma contra-hegemonia. No começo bastante tímida, feita como guerra de foco, de blogs, artigos de opinião, tradução de literatura “não alinhada”, de corte liberal, antes rarefeita. Da presença cada vez maior no debate de ideias, em todos os níveis.
A eleição de Lula, em 2002, acelerou este processo. Não contente em simplesmente ser governo, o PT fez algo que não se via, no Brasil, desde o ciclo militar: propôs uma narrativa sobre o Brasil. Uma narrativa escludente, que levou a lógica do partido para dentro do Estado. Lula surge como divisor de aguas. Demiurgo do novo país, voltado para os “de baixo”. Dai o mantra “nunca antes neste país”. Em uma sociedade plural, era previsível que esta narrativa produzisse reação. E é ela que tem dado o tom de nossa guerra cultural.
Engana-se quem atribui a oposição ao petismo à aversão da classe média à redução da pobreza, no País. A reação diz respeito à toxina ideológica. Numa expressão, faltou grandeza aos novos donos do poder. Ao invés da afirmação de consensos, a aposta no conflito. Como escutei de um observador arguto, tempos atrás, tipos como Bolsonaro são, em boa medida, produtos da crispação política produzida pelo petismo. Ocorreu o mesmo no debate entre liberais e conservadores, na era Bush e, em menor escala, no governo de Obama. Cada povo tem o Tea Party que merece.
A guerra cultural se diferencia do debate comum, no dia a dia das democracias. O debate se torna grandiloquente. Cada questão é vista como dizendo respeita a um “projeto de país”, ou a “modelos de sociedade”. Direitos LGBT? querem destruir a família…Reúnem-se partidos de esquerda? estratégia do comunismo internacional…Investiga-se o caixa dois na campanha da Presidente? o lacerdismo golpista…Redução da maioridade penal? querem criminalizar jovens negros e pardos. A guerra cultural se instala quando falta um consenso básico em torno de valores, na sociedade. Um dos elementos definidores de nossa “democracia instável”, na precisa definição do nosso sistema político, feita pelo cientista político Francisco Ferraz (em seu livro recente, com o sugestivo título: Brasil: cultura política de uma democracia mal resolvida).
É possível algum otimismo, em meio à guerra cultural. Se é verdade que a esquerda perdeu a hegemonia cultural, nenhuma outra parece ter entrado em seu lugar. O jogo ficou apenas mais equilibrado. O debate é mais agudo, mas há mais liberdade. Indivíduos tem mais poder de expressar opiniões e formar suas próprias redes de influência. Não há dúvida de que isto incomoda muita gente.
Dito isto, desconfio que a democracia, doravante, será tendencialmente mais instável e o debate político mais acirrado, com marcas de vulgaridade, na arena digital. Podemos pedir que internautas escrevam com moderação, e tenham educação. Mas os incentivos caminham na direção oposta. A rede funciona ao ritmo caótico da busca de audiência, das manchetes estridentes, do tribalismo de opinião. E da bullshit, o besteirol, na impagável definição do filósofo Harry Frankfurt. Coisas que se diz e se escreve sem muita preocupação em saber se é ou não é verdade.
Bullshit define boa parte do que se habituou a chamar de onda conservadora, no Brasil atual. Dias atrás, li um estudo acadêmico sobre os sites mais influentes da “nova direita” brasileira. Boa parte deles não passava de páginas de humor politicamente incorreto. Em regra, piadas contra o governo. Fiquei imaginando como seria um site humorístico a favor do governo. Ou restrito apenas a piadas de “bom gosto”. Imaginei uma espécie de “ministério do bom gosto”, censurando tirinhas e vídeos do Porta dos Fundos. Tenho vaga memória de que isto já foi tentado, por estes trópicos, com resultados funestos. Soa um tanto ridículo tentar enquadrar o humor em categorias políticas. Parece coisa de quem esteve acostumado, por muito tempo, a fazer piada dos outros, sem levar o troco.
Há, por certo, a disseminação de um certo moralismo comportamental, nas redes sociais. Em parte, é uma expressão popular, em um país em que 51% da população jovem considera moralmente errado (e não apenas mau gosto) assistir a um filme pornográfico. Em parte, expressa o crescimento dos cultos evangélicos. Em vinte anos, o número de evangélicos, no Brasil, saltou de 10% para quase 23% da população. É simplesmente um direito dessas pessoas expressar a sua opinião. E elas o farão.
É possível imaginar que boa parte dessas pessoas votou com o governo, nas últimas eleições, e seria um erro elementar confundir posições conservadoras e liberais com o moralismo de costumes, que graça na internet. Tome-se o debate sobre o casamento gay. Alguém pode concordar com o pastor Silas Malafaia, de que não havia casais gays, na arca de Noé. Convém apenas não confundi-lo com Edmund Burke. É um direito ser contra o casamento gay, tanto quando a favor. Sem sentido é pretender que o Estado transforme qualquer ponto de vista privado em regra pública, a obrigar os que pensam de modo diferente.
Quando a Suprema Corte tornou legal o casamento entre pessoas do mesmo sexo, nos Estados Unidos, não feriu os direitos de nenhum indivíduo. Simplesmente reafirmou a laicidade do Estado, cuja pedra de toque é a igualdade de todos, diante da lei. Ideia perfeitamente liberal, e quiçá um dos grandes movimentos de viés conservador, em nossa época. Tradições não devem mudar de uma hora pra outra. O que não significa que não devam mudar nunca. A parte isto, o casamento monogâmico é, em si mesmo, uma longa tradição ocidental, e a comunidade gay parece desejar dela participar.
O debate segue. Sou daqueles que alimenta a crença em um avanço progressivo, ainda que tortuoso, da sociedade de direitos e dos valores republicanos. Não sei porque, quando escuto o presidente Obama, esta ideia me vem com mais força. Em meio ao universo barroco, multifacetado, por vezes vulgar, que compõe nossa esfera pública, por estes tempos, vamos caminhando. A idade média pertence ao passado, não ao futuro.
(Texto publicado originalmente na Revista Época em 20.07.2015)