Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A nova rebelião das massas

Luiz Felipe Pondé escreveu um artigo provocativo, dias atrás, e a certa altura se referiu a uma mulher com quem conversou em sua recente visita a China. Ela tem 30 anos e abriu um restaurante com o marido. Diz gostar de viver em um país seguro e estável, sem as confusões que enfrentam no dia a dia seus irmão de Hong Kong. Confusões típicas das democracias atuais.

“A ideia que trocamos facilmente liberdade por estabilidade é fato”, diz Pondé. A frase é de um intelectual sabidamente cético em relação à crença iluminista no progresso moral e na fidelidade humana aos valores universais da liberdade e da democracia.

Certo ou errado, ele tem um ponto. Se é verdade que a democracia liberal é um sistema vitorioso, no mundo moderno, também é verdade que ela vive um momento de mal-estar. E que o sucesso chinês, prometendo um sociedade aberta e de mercado, ainda que sem democracia, é de longe o maior desafio vivido em nossa época pelas democracia liberais.

O Brasil é exemplo disso. Uma pesquisa internacional coordenada pelo professor Dominique Reynié, e divulgada recentemente, mostrou que 73% dos brasileiros concordariam com a ideia de um pouco mais de ordem, mesmo que ao custo de menos liberdade. O segundo maior percentual entre 42 países pesquisados.

É evidente que não se sabe bem de que liberdades estamos falando. Os dados foram colhidos no momento em que o país vinha de uma enorme crise ética, radicalismo político, desemprego nas alturas e em meio a explosão da violência urbana. Parece plausível que exista uma demanda difusa por ordem.

David Brooks se referiu a um fenômeno parecido, na democracia americana, sugerindo que as pessoas estão “exaustas” da confusão e da guerra política. Brooks vê dois campos em guerra. Simplificando, são os eleitores de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, mais jovens e presos às soluções tradicionais da esquerda, e os entusiastas de tipos como Trump, desejosos de um líder forte que restaure valores e ponha ordem na casa.

Ambos alimentam uma leitura alarmista do mundo atual, tendem a apoiar programas irrealistas e possuem um vezo autoritário. Estão muito convencidos de que são os missionários do lado certo e esquecem que a democracia é basicamente um modo frágil de “resolver diferenças com pessoas de quem discordamos”.

O pulo do gato é a ideia de que estes dois campos radicalizados formam uma minoria, na grande sociedade, mas são amplamente dominantes, no debate público. Haveria uma imensa maioria relativamente silenciosa e exausta do bate-boca politico e da sensação de permanente instabilidade e paralisia, que surge daí.

Há muitas evidências, nesta direção. Se é verdade, como mostrou o Pew Research Center, que a distância entre as posições ideológicas dos grandes partidos americanos mais do que dobrou, desde os anos 90, também é verdade que se trata de um debate comandado por tribos entrincheiradas no universo das mídias sociais.

Para estas pessoas, a política se tornou um tipo de entretenimento. Pensava nisso quando relia Ortega y Gasset e sua tese cruelmente atual sobre a “rebelião das massas”. A inédita erupção da multidão da cena pública. O homem-massa avesso ao comedimento, dono de uma autoconfiança vulgar, que fala sobre tudo “cego e surdo como é, impondo as suas opiniões”.

Ortega y Gasset escreveu estas coisas nos anos vinte. Diria que vivemos hoje uma segunda rebelião das massas. A primeira levou, nos extremos, à barbárie. O destino da atual é incerto. O homem comum dispõe, agora, de um poder muito maior de fazer barulho. E novamente a democracia liberal se vê desafiada.

Diferente de Pondé, tendo a cultivar um sereno otimismo iluminista. O tempo e o senso do ridículo irão esvaziar a fúria inútil das tribos digitais e voltaremos logo adiante a prestar atenção ao que diz a jovem empreendedora chinesa que meu amigo encontrou em Pequim.

Ela ecoa, à distância, a maioria silenciosa imaginada por Brooks, que deseja apenas um pouco de ordem e previsibilidade para tocar a vida. Prestar atenção em sua exaustão é o melhor caminho para que muita gente não venha a se cansar, ali adiante, da própra democracia.

Publicações relacionadas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações recentes

Categorias

Publicações populares

Sobre o autor

Fernando Luís Schüler é um filósofo, professor universitário, articulista, cientista político e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas.

Fernando Schuler

Fernando Schüler é Professor do Insper, em São Paulo, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).

Foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e Diretor da Fundação Iberê Camargo. É criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. Possui experiência na área de análise política, com ênfase nas áreas de políticas públicas, história e filosofia política. É colunista da VEJA e da rádio e TV BandNews.

Siga-me nas redes sociais